Como Ursula von der Leyen quer conquistar um segundo mandato à frente da Comissão Europeia
Depois de cinco anos marcados por uma pandemia e duas guerras, a alemã antecipa a segurança como prioridade de um segundo mandato e não exclui acordos com partidos à direita do seu.
Em 2019, a promessa de um Green Deal, a transição digital, a conclusão do Brexit, a defesa de um novo pacto de migração e asilo e a ideia de uma Comissão geopolítica marcaram o discurso de Ursula von der Leyen, diante de um Parlamento Europeu desconfiado de um nome que não tinha sido previamente indicado para liderar o Executivo comunitário. Volvidos cinco anos de um mandato recheado de crises inesperadas, a alemã nascida em Bruxelas confirmou, no início desta semana, que pretende manter-se no cargo após as eleições europeia de junho, ambicionando agora tornar a Europa “mais competitiva”.
O tabu sobre a candidatura de von der Leyen para continuar à frente da Comissão Europeia foi desfeito na passada segunda-feira. “Tomei uma decisão consciente e ponderada e sou candidata a um segundo mandato. Estou muito grata à CDU [União Democrata-Cristã] por me ter nomeado para ser a cabeça de lista do PPE [Partido Popular Europeu]”, anunciou, ao lado do presidente da CDU, Friedrich Merz, na Konrad-Adenauer-Haus, a sede federal do partido, em Berlim.
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Depois de, há cinco anos, a sua nomeação ter surpreendido os eurodeputados, que criticaram o facto de a então futura presidente do Executivo comunitário não se ter apresentado ao escrutínio dos eleitores europeus, von der Leyen — cuja candidatura será confirmada no congresso do PPE de 6 e 7 de março, em Bucareste — deverá agora submeter-se ao princípio dos Spitzenkandidaten, introduzido antes das eleições de 2014 e que só foi seguido na escolha do seu antecessor, o luxemburguês Jean-Claude Juncker.
O descontentamento refletiu-se no momento da votação no Parlamento Europeu, com a antiga ministra dos governos de Angela Merkel a ser eleita presidente da Comissão Europeia com 383 votos a favor, 327 votos contra, 22 abstenções e um voto nulo. Uma maioria “curta” e que “foi difícil de conquistar”, como reconheceu na altura.
Para garantir os votos das principais bancadas parlamentares de Estrasburgo, designadamente dos seus parceiros do PPE, dos Socialistas & Democratas, dos Liberais e dos Verdes, a alemã, à época com 60 anos, desenhou um programa político à volta de duas grandes linhas: uma na área ambiental, com o Pacto Ecológico; e outra na área digital, que dava destaque à investigação e à inovação no seio da União Europeia (UE).
No entanto, uma série de desafios globais testaram a ambição de Ursula von der Leyen. Desde logo ter de concluir o processo de saída do Reino Unido do bloco comunitário, a que se seguiu uma pandemia, numa altura em que ainda não cumpria um ano de mandato, o que viria a obrigar a Comissão a introduzir a área da saúde — uma matéria de competência exclusiva dos Estados-membros — nas suas prioridades.
Não tenho dúvidas que ela tem um estilo mais centralista que outros presidentes [da Comissão Europeia]. Agora, isto também resulta, por um lado, de um certo enfraquecimento das lideranças europeias. Não há uma Angela Merkel nem um Nicolas Sarkozy para dar instruções ao presidente da Comissão
Embora considere que a conclusão do Brexit decorreu “em termos bastante positivos” para a UE, o eurodeputado Paulo Rangel (PSD) destaca a gestão da pandemia de Covid-19 como o primeiro grande sucesso do atual mandato da líder do Executivo comunitário. Por um lado, pela “capacidade de investir” na investigação, que tornou possível a produção de uma vacina no espaço de um ano, e a própria distribuição célere das vacinas pelos 27; e, por outro lado, o acordo para a emissão conjunta de dívida pública para financiar a recuperação da economia europeia.
Para Paulo Rangel, foram a “liderança” e o “carisma” de Ursula von der Leyen que tornaram possíveis essas decisões. “A Comissão tem hoje uma importância que só teve no tempo do Jacques Delors“, assinala, em declarações ao ECO. O mesmo reconhece Paulo Sande, especialista em Assuntos Europeus, que vê na alemã uma “figura forte” e “assertiva”, que conferiu “alguma credibilidade às políticas europeias” ao longo dos últimos cinco anos.
Contudo, a primeira polémica do mandato de von der Leyen surgiu precisamente na resposta à pandemia. Lembrando que negociou diretamente a compra de vacinas com o CEO da Pfizer, situação que levou o jornal norte-americano The New York Times a processar o Executivo comunitário por não revelar as mensagens entre ambos, Paulo Sande aponta que uma decisão do tribunal desfavorável à presidente da Comissão pode pôr em questão a sua “legitimidade”.
A “grande figura europeia” assumiu, depois, a liderança do apoio a Kiev e ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, na sequência da invasão russa há dois anos, dando razão àquela “Comissão geopolítica” que ninguém sabia bem o que é que era. Este é um dos pontos positivos, além da resposta à pandemia, que o eurodeputado Pedro Silva Pereira (PS) realça na líder da Comissão Europeia, considerando que “foi firme” na solidariedade com a Ucrânia.
Foi aqui que começaram a surgir fricções com alguns líderes europeus, que sentiam que a alemã estaria a agir além das suas funções, nomeadamente em matéria de política externa. Von der Leyen é conhecida nos corredores de Bruxelas como sendo workaholic, ao ponto de dormir no Berlaymont, e funcionando muito sozinha, de perto apenas com uma equipa de conselheiros — características que, segundo Paulo Sande, tornam o seu estilo de liderança “muito autocrático”.
“Não tenho dúvidas que ela tem um estilo mais centralista que outros presidentes [da Comissão Europeia]. Agora, isto também resulta, por um lado, de um certo enfraquecimento das lideranças europeias. Não há uma Angela Merkel nem um Nicolas Sarkozy para dar instruções ao presidente da Comissão”, reconhece, por sua vez, Paulo Rangel, para quem o atual chanceler alemão, Olaf Scholz, é um líder “fraco” e Emmanuel Macron, chefe de Estado francês, viu o seu poder enfraquecido desde que perdeu a maioria absoluta na assembleia nacional.
A antecipação de von der Leyen às decisões políticas do Conselho tornou-se ainda mais evidente com o conflito em Gaza. Em outubro passado, após um dos seus comissários anunciar a suspensão do apoio à Palestina — aparentemente sem consulta prévia — e de ter visitado Israel e, ao lado de Benjamin Netanyahu, ter apelado ao direito de o país se defender do ataque do Hamas, sem se pronunciar acerca das consequências humanitárias para os palestinianos, choveram críticas contra a líder do Executivo comunitário, provenientes de membros das várias instituições da UE.
“Tardou a encontrar o registo certo perante a tragédia de Gaza e demorou a alinhar o passo com a posição de Josep Borrell [Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança], que se apercebeu que era preciso uma posição mais enérgica para a defesa dos direitos humanos” na região, constata o socialista Pedro Silva Pereira, apontando este aspeto como uma das “sombras” do mandato “globalmente positivo” de Ursula von der Leyen.
Outro ponto negativo da liderança da alemã, segundo o eurodeputado do PS e vice-presidente do Parlamento Europeu, foi o recuo em alguns aspetos do Pacto Ecológico, em particular na Lei de Restauro da Natureza. Fora do texto final aprovado ficaram medidas sobre a gestão de áreas agrícolas e também os pontos relativos a madeira morta, contestados pelo PPE, aliado aos grupos de extrema-direita e a parte dos liberais do Renew Europe.
“Foi também notória uma reduzida ambição da Europa social, apesar de alguns progressos e impulsos nas presidências portuguesa e espanhola do Conselho da UE. Mas aí, manifestamente, a ambição da von der Leyen foi insuficiente para as necessidades”, bem como “em relação às migrações e às novas regras de governação económica”, acrescentou Pedro Silva Pereira. Justamente por considerarem ser preciso uma Europa “mais ativa contra as desigualdades”, os socialistas avançaram com o seu próprio spitzenkandidat — o luxemburguês Nicolas Schmit, comissário europeu para os Assuntos Sociais.
Paulo Rangel e Paulo Sande, por seu lado, veem a candidatura de von der Leyen como “uma boa notícia” para a Europa. “A UE precisa de ter um líder reconhecidamente forte – que eu acho que ela é, tendo a vantagem também de ser alemã e a herança política, e até de visão, da própria Merkel. O pior que podia acontecer à UE nestes anos era ter um líder fraco”, sublinha o especialista em Assuntos Europeus.
Defesa no topo das prioridades para o segundo mandato
A atual legislatura do Parlamento Europeu foi eleita no auge das manifestações pelo clima, lideradas pela jovem sueca Greta Thunberg, que catapultaram as alterações climáticas para as prioridades políticas e impulsionaram os partidos verdes em toda a UE. Neste contexto, Ursula von der Leyen lançou o Pacto Ecológico Europeu, declarando-o o “momento do homem na lua” do bloco comunitário.
Mas, como reconheceu no anúncio da sua candidatura, o ambiente é “completamente diferente” do de 2019. Agora são agricultores, e não ativistas do clima, que bloqueiam estradas em várias capitais do continente, com queixas contra a lista crescente de regulamentos ambientais que visam conduzir a UE à neutralidade climática até 2050. As sondagens mostram uma queda dos partidos verdes nas intenções de voto.
A imigração, o aumento do custo de vida e a guerra na Ucrânia lideram as preocupações dos cidadãos europeus em detrimento das alterações climáticas, num momento em que um novo pacote de apoio dos EUA a Kiev está encurralado no Congresso norte-americano e Donald Trump pode regressar à Casa Branca após as eleições de novembro, cenário que ameaça a aliança com os restantes países da NATO.
Um obstáculo que é a questão relacionada com a compra das vacinas na pandemia de Covid-19, em que ela negociou diretamente com o CEO da Pfizer. Se houver uma decisão do tribunal desfavorável [no processo que o The New York Times moveu contra a Comissão Europeia por não revelar as comunicações entre Von der Leyen e o CEO da Pfizer], isso pode ser complicado e fazer questionar a sua legitimidade .
Não surpreende, por isso, que o clima quase não tenha sido mencionado por von der Leyen na conferência de imprensa de segunda-feira. Em vez disso, sublinhou a segurança como “um dos principais tópicos” do seu programa, cujo slogan poderá resumir-se à frase “defender a democracia e os nossos valores”. Outro grande ponto será a promoção da competitividade da economia europeia.
Se, politicamente, esta mudança de prioridades pode ser necessária para a alemã de 65 anos conquistar o segundo mandato — seria apenas a quarta presidente da Comissão Europeia a consegui-lo –, ao mesmo tempo terá de defender o seu próprio legado. Por isso, prometeu “manter a direção dos grandes temas”, como o Pacto Ecológico Europeu e a transição digital, que foram as figuras de proa do seu primeiro mandato.
Os próximos cinco anos de Ursula von der Leyen em Bruxelas, a confirmarem-se, deverão, assim, procurar satisfazer duas frentes. Para a frente militar, quer criar uma pasta na Comissão para a área da Defesa — ainda que seja uma das funções do Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança; no clima, quer colocar a tónica menos em objetivos climáticos ambiciosos e mais na forma de manter as empresas europeias a funcionar enquanto se atingem essas metas.
Apesar de ser da oposição, Pedro Silva Pereira concorda com a necessidade de atenção à área da Defesa. “É incontornável que estas questões subam na hierarquia de prioridades da União Europeia”, defende, ressalvando que apenas existirá uma divergência “se depois, na concretização dessa prioridade, estivermos a sacrificar financeiramente outros objetivos, nomeadamente as políticas de coesão“.
O âmbito do cargo de um comissário europeu para a Defesa ainda não é claro, especialmente no que toca à inclusão do espaço, mas deverá passar pelo reforço da capacidade industrial do setor na UE, no que toca, por exemplo, à produção de armas e ao desenvolvimento tecnológico. Alguns passos nesse caminho já têm sido dados: em 2019, a Comissão criou um departamento nesta área — a Direção-Geral da Indústria de Defesa e do Espaço –, e o comissário para o Mercado Interno, Thierry Breton, chegou a abordar a produção de munições e a indústria aeroespacial ao longo do mandato.
Segundo Paulo Rangel, o objetivo é ter na Comissão uma pasta só para a Segurança, sendo provável que o comissário em questão fique depois sob a alçada do Alto Representante. Numa eventual “redistribuição de funções”, o novo cargo deverá, em primeiro lugar, reafirmar e consolidar o compromisso no âmbito da NATO, que passa por cumprir as metas de investimento que estão previstas (2% do PIB), e reforçar a coordenação dos equipamentos militares e da capacidade de resposta militar dos Estados-membros para promover a operacionalidade do sistema de forças europeu.
Ainda assim, o foco na Segurança da UE “não é estritamente no sentido da Defesa, mas também na proteção das fronteiras, a proteção civil e a própria segurança social“, aponta o eurodeputado do PSD. A esta prioridade acrescenta a “ideia de prosperidade sustentável, no sentido de que é preciso criar outra vez crescimento económico, aumentar a competitividade das economias europeias e apostar na inovação e no digital”.
Von der Leyen não exclui apoio de partidos à direita do PPE
Antes de avançar com a sua candidatura, Ursula von der Leyen certificou-se de que dispõe de um apoio alargado no Conselho Europeu. De acordo com o Politico, a alemã deverá contar com os votos de todos os líderes, exceto do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que ainda recentemente espalhou cartazes contra a UE pelo país, utilizando a fotografia da presidente da Comissão Europeia e prometendo que “não vai dançar ao som da sua música”.
No entanto, a alemã precisa também de reunir apoio suficiente no Parlamento Europeu. E se, em 2019, teve o voto favorável dos partidos autodenominados pró-europeus — o PPE, o S&D e o Renew Europe –, essa coligação poderá não ser suficiente para receber ‘luz verde’ para um segundo mandato, já que as sondagens antecipam que os grupos à direita da sua família política, dos quais fazem parte partidos eurocéticos e de extrema-direita, podem passar a representar um quarto dos votos do hemiciclo.
Daí que, na quarta-feira, tenha dado a entender que estaria aberta, após as eleições europeias, a trabalhar com o grupo dos Reformistas e Conservadores Europeus (ECR, na sigla em inglês) — do qual fazem parte partidos como o polaco Lei e Justiça (PiS), a Alternativa para a Alemanha (AfD), o espanhol Vox ou Irmãos de Itália –, ainda que nas suas condições. “Contra o Estado de direito? Impossível. Amigos de Putin? Impossível“, disse, quando questionada sobre uma coligação entre o PPE e o ECR, fugindo a uma resposta direta de “sim” ou “não”.
Quando a Ursula von der Leyen, logo no anúncio da candidatura, não é clara a afastar esse cenário de alianças [com o ECR] e a reafirmar o seu compromisso com uma maioria pró-europeia, isso só pode ser preocupante e é mais uma razão para os socialistas terem outro candidato nestas eleições europeias.
“Tem muito a ver com a perceção de que pode haver surpresas” no resultado que sair das eleições europeias, realça Paulo Sande sobre a posição “equívoca” de von der Leyen, lembrando que, há cinco anos, foi eleita por apenas nove votos. “No fundo, o que ela tenta fazer é abrir um bocado mais esse leque e tentar ir buscar a outro lado a garantia de que não vai morrer na praia“, sustentou o especialista em Assuntos Europeus.
Paulo Rangel, que, tal como von der Leyen, é do PPE, admite a possibilidade de que “alguns partidos do ECR, com bastantes eurodeputados e moderados, possam ser chamados a entrar na lógica de aliança entre PPE, S&D e Liberais“, lista em que inclui o partido de Georgia Meloni, que se “tem revelado de direita moderada”. Rejeita, contudo, uma aliança com a direita radical. “O PiS, o Vox, a AfD não entrarão nesse acordo”, garante o eurodeputado social-democrata.
Por sua vez, o socialista Pedro Silva Pereira considera que a alemã “não começou bem a campanha eleitoral“. “Quando von der Leyen, logo no anúncio da candidatura, não é clara a afastar esse cenário de alianças e a reafirmar o seu compromisso com uma maioria pró-europeia, isso só pode ser preocupante e é mais uma razão para os socialistas terem outro candidato nestas eleições”, critica o vice-presidente do Parlamento Europeu, argumentando que as diferenças entre o ECR e o Identidade e Democracia (ID) — ao qual pertence o português Chega — “às vezes não são assim tantas como parecem”.
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