Joséphine Goube está à frente da Techfugees, que junta cérebros da informática para procurar respostas tecnológicas para a crise de refugiados. "São atalhos", explica, "porque não podemos esperar".
A crise de refugiados “não vai abrandar”, afirmou Joséphine Goube, perante uma plateia cheia no Centro de Congressos do Estoril, esta segunda-feira. Na sua intervenção, a CEO da organização sem fins lucrativos Techfugees explicou como tudo começou com um grupo de Facebook, uma hashtag e uma ideia do editor do site de tecnologia TechCrunch, Mike Butcher. Hoje, a organização que tem como objetivo canalizar o poder da tecnologia e informática para facilitar a vida a migrantes e refugiados tem 25 polos em todo o mundo, e organiza hackathons — maratonas de programação — com o tema das migrações. Em breve, virá a primeira vez a Lisboa, a 24 e 25 de junho.
Ao ECO, a jovem CEO Joséphine Goube explica não só como a Techfugees funciona mas também a sua filosofia: a forma como vê e trata os refugiados e migrantes e a sua visão de como a tecnologia deve evoluir.
Sempre trabalhou em assuntos ligados com a migração e os refugiados. O que a levou a esse campo?
Dirigi uma startup que ajudava os migrantes a obter vistos para entrar na Europa em 2012, quando tinha 23 anos. Comecei a investigar porque era tão difícil obter vistos, e apercebi-me de coisas horríveis. Vi a discriminação nas regras da imigração. Não se fala disto, mas a quantidade de documentação que te pedem serve para discriminarem certos tipos de pessoas que vêm de certos países. É simples: um afegão pode viajar para 23 países sem um visto. E esses sítios são o Sudão, a Síria… Já com um passaporte português, acho que são 157 países onde se pode ir sem visto.
Então tudo começou com os vistos.
Sim. Criei um algoritmo que dava às pessoas informação personalizada, rapidamente, para não perderem a oportunidade de fazer corretamente o pedido para o seu visto. Ao fazê-lo, familiarizei-me com o assunto e apercebi-me de que as pessoas que estava a ajudar a arranjar vistos eram refugiados, mas tinham medo de fazer a viagem. Uma pessoa não se pode candidatar para o estatuto de refugiado se estiver no próprio país, por isso eu ajudava-os a pedir vistos para trabalhar, para estudar… E, ao ajudá-los com isso, fiz com que fugissem ao mar.
Mas houve pessoas que não consegui ajudar. E essas situações foram muito difíceis para mim. Como é que, com a tecnologia, consigo vistos para umas pessoas e para outras não? Pensei que precisávamos de um exército de pessoas a fazer tecnologia para os refugiados.
Entretanto, há dois anos que colabora com a Comissão Europeia nas questões migratórias. Que avanços tem visto nesse campo?
Fui nomeada pela Comissão Europeia como perita na migração. O meu trabalho é apenas ser perita, é um conselho consultivo e não sou paga pelo meu trabalho. Mas é interessante porque estou lá, junto de todos estes lóbis, quando eu não tenho nenhum interesse além do dos refugiados. Eles entendem, mas o processo é longo. Eu sei que eles estão a dar o seu melhor. Mas é por isso que eu trabalho com tecnologia.
Acha que a tecnologia pode preencher os espaços onde a burocracia e as organizações, por serem lentas, não conseguem chegar?
São atalhos. Vejo a tecnologia como um atalho, porque não podemos esperar. Eu percebo que os governos e a Comissão não queiram apostar na nossa tecnologia, primeiro porque ia acabar com empregos na própria administração deles e, depois, porque é simplesmente assustador, porque poderia torná-los mais vulneráveis. Mas os traficantes de pessoas, os “maus”, já estão a usar tecnologia, por isso se não competirmos eles vão ganhar.
São atalhos. Vejo a tecnologia como um atalho, porque não podemos esperar.
Sente que está a lutar em duas frentes, com os traficantes de um lado e os interesses das organizações e administrações do outro?
Eu não seria tão rígida em relação aos interesses, porque sei que as organizações estão a esforçar-se. Não quero dizer coisas más sobre a União Europeia quando há tão boas intenções, mas isso não estará longe da verdade. E acho que as pessoas que me conhecem na Comissão Europeia estão contentes por fazermos o que fazemos, mesmo que não o digam. E também conheço pessoas, que não vou nomear, que nos dizem que nos financiam desde que não as identifiquemos.
Qual é o papel dos próprios refugiados e migrantes nos eventos promovidos pela Techfugees?
Nos nossos hackathons, o papel deles é, das duas uma: ou são participantes, e estão a criar tecnologia, enquanto engenheiros, ou vão organizar os eventos connosco, e representar a Techfugees. Em ambos os casos, não lhes damos um autocolante a dizer “refugiado” nem nada do género. Tem piada porque as pessoas depois perguntam: “Onde estão os refugiados?”
Em ambos os casos, é importante olhar para eles como pessoas capazes, sejam participantes sejam voluntários, e incluí-los tal como os restantes. Tem um efeito de empoderamento para eles, fá-los sentir bem-vindos, e também ajuda a criar laços com pessoas com empregos, bons empregos, com boas capacidades necessárias no mercado de trabalho, e cria-se, assim, um laço com o mercado de trabalho.
Os eventos também são uma plataforma para os refugiados mostrarem o que sabem fazer?
É exatamente isso. Podem comunicar aquilo que fazem e mudar a narrativa: eles contribuem para a sociedade, e querem contribuir ainda mais.
Acha que isto pode ajudar a mudar o discurso à volta dos refugiados?
Sim. Nós fazemo-lo. Não queremos falar sobre mudar o discurso, queremos falar sobre isso quando o tivermos feito. Por isso, a resposta curta é que sim. E que acho que funciona.
Lembra-se de algum exemplo?
Estou a pensar nos rapazes que ganharam o Hackathon de Paris em 2016. Sete refugiados que vieram de regiões muito diferentes em África. Acho que aquilo lhes trouxe dignidade, independência. Deixam de ser vistos como objetos ou como um fardo, e tornam-se independentes. Em França, eu já nem sequer vou a eventos. Envio-os no meu lugar para representar a Techfugees. E eles não dizem que são refugiados, mas sim que são Techfugees.
De que projetos criados em iniciativas da Techfugees mais se orgulha?
Há a Meshpoint, um router que é impresso numa impressora 3D. Estou muito contente com essas pessoas, porque construíram um protótipo mesmo barato que fornece uma fonte sustentável e fiável de Internet, e que pode ser usada por até 150 pessoas de uma vez. É bom nos campos de refugiados, onde não há técnicos que possam compor a ligação à internet quando ela avaria. E é tudo open source, por isso pode ser replicado.
E o que têm que possa ajudar as pessoas que já se instalaram nos seus novos países?
Há a Kom Inn. No hackathon de Oslo, a equipa que mais tarde venceu chegou com informação de uma página de Facebook que tinham criado que juntava os noruegueses que queriam ajudar refugiados. Tinham tanta gente, e uma folha de Excel com 1.400 nomes, chegaram ao hackathon e disseram: “Temos isto, mas não sabemos o que fazer com isto”. Mas agora o processo está automatizado. A máquina sabe a localização das pessoas e alguma informação sobre aquilo de que gostam, e depois faz ligações com refugiados que vivem na mesma área e têm as mesmas preferências.
É quase como uma aplicação de encontros…
Sim, é tipo o Tinder para refugiados, não é? Podemos dizer só isso. E é automatizado. E isto está a funcionar. As pessoas vão a festas e vão praticar yoga juntas, e arranjam empregos, porque estas relações são criadas. Pensava que estávamos a falar de tecnologia, mas agora está a tornar-se tão real. São histórias de seres humanos. Não queremos criar tecnologia para eliminar os humanos. É uma ferramenta.
Como acompanham os projetos que são criados no âmbito de iniciativas da Techfugees?
Damos-lhes uma estrutura. Um hackathon é fixe, mas isso é só a ponta do icebergue. Apoiamo-los, incubamo-los, ajudamo-los a encontrar financiamento e pessoas que pensem como eles. E muitos deles têm as mesmas perguntas: fazemos uma empresa ou uma organização sem fins lucrativos? Comecem por uma sem fins lucrativos, e depois mudem se quiserem. Open source, ou não? Open source, sempre, porque queres que os engenheiros voluntários sejam capazes de ajudar.
Então também existe uma visão tecnológica forte ligada à visão humanitária da Techfugees?
Temos princípios, sim. Temos princípios fortes em relação à ética da tecnologia que é criada. Se estás a recolher dados das pessoas, por exemplo, é preciso justificar para que é que são necessários. Estamos num mundo cheio de pessoas que recolhem dados para ganhar dinheiro, e temos de dizer [aos nossos]: “Não. Não podem”. De uma população vulnerável, não podem recolher número de telefone, nome, nacionalidade, religião, etnia… O que acontece quando forem pirateados, e vão sê-lo? Estão a pô-los em risco.
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A CEO que quer “um exército a fazer tecnologia para ajudar os refugiados”
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