Falta de encomendas está a parar fábricas e a destruir empregos no calçado. Industriais apontam a “novo salto qualitativo” assente na sustentabilidade, na moda de luxo e no segmento profissional.
Os empresários portugueses do calçado estão habituados a enfrentar crises e até agora têm contrariado todos os vaticínios de morte desta indústria em Portugal. Mas perante a tempestade perfeita que varre o setor já há um ano e meio, as preocupações avolumam-se em movimento contrário ao da entrada de encomendas e os sussurros evoluem para gritos de alerta. Consciente de que precisa de “dar um novo salto qualitativo”, o setor prepara a estratégia, a produção, a tecnologia e o dinheiro para competir pelas grandes séries na moda de luxo e para se diferenciar da concorrência no calçado técnico e na sustentabilidade.
Para um setor que exporta mais de 90% da produção, a evolução favorável dos mercados internacionais é essencial para a obtenção de bons resultados. Que não chegaram no ano passado, com a indústria nacional a perder dez milhões de pares e 8,2% em valor de exportações face a 2022; nem parece que estejam para chegar tão cedo, a avaliar pelo “sentimento” das empresas que estiveram em Milão a mostrar as novas coleções na Micam, a feira mais relevante a nível mundial. Paulo Gonçalves, porta-voz da associação do setor (APICCAPS), reconhece que “o ano de 2023 foi muito difícil para as empresas — para algumas foi mesmo o pior ano de sempre — e 2024 será igualmente exigente”.
O ano de 2023 foi muito difícil para as empresas – para algumas foi mesmo o pior ano de sempre – e 2024 será igualmente exigente.
“O abrandamento económico quase generalizado, em particular nos principais mercados de destino do calçado português; duas guerras próximas e com forte impacto; e o aumento da inflação e das taxas de juro retiraram confiança aos consumidores, dinheiro à economia e, em especial, emagreceram os orçamentos familiares”, contextualiza o responsável, sublinhando que nos últimos 18 meses desapareceram centenas de pequenos pontos retalhistas independentes na Europa Central que compravam sapatos made in Portugal.
No ano passado, o setor do calçado perdeu 56 empresas e 1.361 postos de trabalho face a 2022, ano em que tinha criado mais de 3.000 empregos e “praticamente esgotado a mão-de-obra disponível nos principais polos produtivos do setor”. É o caso dos concelhos de Felgueiras, Guimarães, Santa Maria da Feira e Oliveira de Azeméis. Paulo Gonçalves aponta que esta indústria dita tradicional “não [está] imune naturalmente aos ciclos conjunturais”, mas salvaguarda que não está à espera de que volte a haver “oscilações significativas” durante este ano.
Embora se tenha “aguentado” durante o ano passado com uma faturação a rondar os 50 milhões de euros, o dono da Carité Calçados refere que “é óbvio que [o prejuízo] calhou a alguém” e que “seria louco se dissesse que não” tem receio da atual conjuntura. “Não acontece só aos outros”, completa Reinaldo Teixeira, que é um dos principais industriais portugueses do setor, com um total de 700 funcionários ao nível do grupo e um volume de produção anual a rondar um milhão de pares. Além do fabrico em regime de private label, tem duas marcas próprias: J. Reinaldo (segmento moda) e Tentoes (técnico e profissional).
“Há empresas em que as coisas não têm corrido tão bem. E isso é mau para todo o setor e perdem também o país e as cidades [em que estão implantadas]. Ficamos mais empobrecidos quando vemos desaparecer empresas centenárias, com muita história e que vêm de outras gerações. Dá que pensar que temos de redobrar o investimento no exterior à procura de novos clientes e mercados”, descreve o empresário nortenho. Tomou a decisão de voltar a vender para os Estados Unidos, que no passado chegou a ser um “mercado importante” e para onde já tem viagem marcada para expor em feiras profissionais.
Ressalvando que o setor “tem tido crises duras e sabido ultrapassá-las”, o também presidente do Centro Tecnológico do Calçado sustenta que “o Estado tem de estar atento a estes sinais”, argumentando que “muitas destas empresas, com alguma ajuda, eram capazes de não fechar” portas, com danos para o Estado na perda de receitas fiscais e no pagamento de subsídios de desemprego. Já dentro do setor, se “antes cada um olhava para a sua horta”, vê agora “mais flexibilidade e humildade” na cooperação entre as empresas. “Antes era um ‘Deus me livre’. Ninguém queria trabalhar para ninguém. Não pode ser vergonha nenhuma pedir trabalho. Já o fiz no passado e amanhã pode ser ao contrário, o mercado é volátil”, expõe.
Ficamos mais empobrecidos quando vemos desaparecer empresas centenárias, com muita história e que vêm de outras gerações. Seria louco se dissesse que não tenho receio. Não acontece só aos outros.
Segundo dados oficiais, a massa salarial na indústria do calçado progrediu 37% entre 2014 e 2022. Em contraponto, a produtividade cresceu 29%. Combinando um vencimento base de 875 euros com subsídios, prémios e trabalho suplementar de 129 euros, o salário médio bruto no setor ronda os 1.004 euros, de acordo com os números da APICCAPS, citados pelo Expresso. Comparam com um valor ligeiramente inferior na restauração (978 euros), mas que é bastante superior na generalidade da indústria transformadora portuguesa (1.303 euros).
Com alguns industriais a começarem a pedir uma atenção especial ao setor e apoios temporários às empresas, a associação liderada por Luís Onofre defende, no plano laboral, que num setor altamente sazonal como este, “seria importante simplificar o acesso e melhorar as condições do lay-off”, devendo também ser “repensados” os apoios às empresas em matéria de promoção externa.
De resto, resume o diretor de comunicação, Paulo Gonçalves, as reivindicações são as de sempre. “Claramente, a maior prioridade deverá passar por uma menor carga fiscal que incida sobre as empresas. Não se pode continuar decididamente a aumentar os impostos e exigir que as empresas criem riqueza, aumentem os salários e as exportações”, completa.
A partir de Guimarães, onde lidera a empresa criada há 65 anos pelo avô José Maria, José Afonso Pontes critica o “florear” da situação “extremamente preocupante” que atravessa no setor. Diz que “todos os dias, todas as semanas [vê] fábricas a entrar em lay-off e outras a fechar” e “pode ser que no futuro queiramos produzir sapatos e não tenhamos capacidade instalada para satisfazer os clientes”.
“Estou há 30 anos nos sapatos e nunca vi uma crise tão profunda como esta. Isto como está e durante tanto tempo, eu nunca vi, sinceramente. Já tive tempos de vacas gordas, de vacas magras, mas uma época salvava a outra. Hoje não. Quando vejo as fábricas paradas no chamado período de grande produção — maio, junho, julho e agosto –, é sinal de que as coisas estão realmente muito mal”, dramatiza.
“As entidades competentes devem olhar para o setor com olhos de ver porque começo a ver desemprego e fábricas a fechar. Na zona de Felgueiras e de São João da Madeira é extremamente preocupante ver as fábricas paradas. E são empresas bem estruturadas e organizadas. Fase passageira? Já vamos nisto há demasiado tempo, há um ano e meio. As empresas têm feito um esforço financeiro para segurar os postos de trabalho e pagar os impostos e aos fornecedores. Tenho colegas a passar problemas seríssimos porque não produzem, não faturam e as contas continuam a aparecer para pagar”, ilustra o CEO da Cruz de Pedra.
Já tive tempos de vacas gordas, de vacas magras, mas uma época salvava a outra. Hoje não. Quando vejo as fábricas paradas no chamado período de grande produção – maio, junho, julho e agosto -, é sinal de que as coisas estão realmente muito mal.
O líder da empresa minhota que detém a marca própria Campobello (vale 30% do negócio) e está a fazer um investimento de 400 mil euros para automatizar e modernizar as linhas de montagem, participou novamente na mega feira em Itália, mas lembra que “os novos mercados não aparecem da noite para o dia”. “Quando tem expectativas de encomendas de ‘x’ números e passa para metade ou para um terço, não é num curto espaço de tempo que arranja encomendas [alternativas]. Os mercados têm de ser preparados, estudados, leva o seu tempo. Fala-se muito no mercado americano, mas leva muito tempo a ganhar confiança”, frisa José Afonso Pontes.
A gigante Procalçado, criada em 1984 e que se especializou na produção de solas, que vende com a marca ForEver, entrou no calçado em 2005 com a marca Wock (segmento profissional para as áreas da saúde e hotelaria) e em 2013 apostou na moda com o lançamento da Lemon Jelly, que se tornou uma das marcas portuguesas mais reputadas no estrangeiro. O fundador e CEO fala num ciclo que obriga a empresa a estar “financeiramente preparada e a fazer investimentos muito mais cuidadosos, [sem poder estar] em todas as frentes”.
“Nesta fase temos de gerir os recursos com mais atenção, evitar determinados investimentos e esperar que isto passe. Agora, quem não estava financeiramente estável há um ano, vai ter dificuldades para sobreviver com as dificuldades que aí estão”, acrescenta José Ferreira Pinto. Ainda assim, lembra como nos anos 1990 e no início de 2000 se dizia que esta indústria ia acabar e se reinventou, e confia que o mercado tendencialmente vai continuar a procurar produção local e Portugal posiciona-se bem porque tem um conhecimento e um preço competitivo”. Adverte, porém, que a indústria nacional tem de continuar a diferenciar-se e a especializar-se.
Nesta fase temos de gerir os recursos com mais atenção, evitar determinados investimentos e esperar que isto passe. Agora, quem não estava financeiramente estável há um ano, vai ter dificuldades para sobreviver com as dificuldades que aí estão.
É que, aponta o empresário de Vila Nova de Gaia, o segmento médio tem desaparecido e vai continuar a desaparecer das fábricas portuguesas. “Isso não tem solução. Temos de nos reposicionar e repensar o modelo de negócio. Parte da indústria tem feito produto indiferenciado. Enquanto havia pequenos retalhistas na Europa que faziam pequenas marcas… [Pausa] Esse mercado médio, pequeno, em que toda a gente vendia um bocadinho, está a desaparecer e a ser tomado por grandes grupos ou grupos digitais. Ou [as empresas nacionais] têm valor acrescentado e são uma referência, ou não existem”, vaticina o dono da Lemon Jelly, marca que em 2023 teve uma quebra próxima dos 20%, para um volume de vendas de 4,5 milhões de euros.
É o que está a tentar fazer Paulino Moura, que começou a trabalhar com 14 anos numa fábrica de calçado e há pouco mais de duas décadas criou a sua própria empresa em Vizela, que fatura sete milhões e emprega 100 pessoas. Reconhece que “parte significativa das empresas ainda tenta competir pelo preço” e “têm desaparecido muitas desse segmento mais baixo e vai-se perdendo know-how”. “Portugal nunca vai ser um país para aumentar a produção de calçado. Pelo contrário, vai ser sempre a diminuir. Tudo o que é fábrica tem de se adaptar às gamas mais altas, com muito esforço de promoção internacional e mão-de-obra mais qualificada. A transformação tem de ser essa: não é produzir mais, mas produzir melhor e com valor acrescentado”, diz o líder da Atrai.
“Morder os calcanhares a Itália”
Entalado entre a perda do segmento médio para a cada vez mais sofisticada concorrência asiática e a inaptidão para fornecer os grandes volumes que exigem as principais marcas internacionais de moda, o setor aposta todas as fichas nos investimentos em curso e previstos no plano estratégico até ao final da década, avaliados em 600 milhões de euros. Abrangem áreas como automação, digitalização, sustentabilidade, internacionalização e qualificação dos trabalhadores — e é com eles que o setor quer ganhar a capacidade tecnológica que lhe permita ombrear com a concorrência nos segmentos de luxo.
Para avaliar este mercado, identificar as oportunidades e traçar uma estratégia, a APICCAPS adjudicou em janeiro um estudo de mercado a uma consultora internacional. O porta-voz da APICCAPS reclama que o setor de calçado já deu no passado “provas inequívocas” da sua competitividade e que “estrategicamente sempre [entendeu] que competir apenas por via dos preços seria o suicido coletivo”. Por isso, detalha, fez um “esforço considerável” para migrar as produções para os segmentos de maior valor acrescentado. Um upgrade que tornou o calçado português no segundo mais caro do mundo, apenas atrás do italiano. Em 2023, o preço médio de venda na exportação ascendeu a 27,70 euros, 3,45% acima do registo no ano anterior.
“Nesta altura, temos de dar um novo salto qualitativo. Temos de morder os calcanhares a Itália. Com os investimentos em automação e digitalização, podemos ser uma alternativa competitiva ao nível das grandes séries. E, por isso, temos de fazer bem mais na valorização das nossas marcas”, aponta Paulo Gonçalves. Além do luxo, há outros segmentos relevantes em que o calçado português deve investir e que são igualmente “apostas prioritárias”: a área da sustentabilidade e o calçado técnico, nomeadamente o profissional.
É precisamente neste segmento que atua a vimaranense ICC, que fatura 20 milhões de euros por ano e reclama a liderança nacional no calçado profissional para diferentes ambientes de trabalho. Da indústria à floresta, passando pela logística, bombeiros, forças de segurança e militarizadas. A empresa tem em curso um investimento de cinco milhões de euros, focado na renovação e ampliação das instalações, na produção com energia fotovoltaica, na robotização, no corte digital, na costura automática e na injeção robotizada com reciclagem de materiais.
Depois de ter participado na feira A+A na Alemanha, a empresa nortenha criada em 1986 esteve na semana passada, entre 27 de fevereiro e 1 de março, na SICUR, que é considerada a principal mostra espanhola de proteção laboral, segurança e incêndio. É uma das 53 ações promocionais calendarizadas pelo cluster para este ano, espalhadas por 18 mercados diferentes. O orçamento ronda os oito milhões de euros e é “um dos maiores investimentos de sempre”.
Em Madrid, a empresa fundada e liderada por Teófilo Leite apresentou a nova coleção de sapatos e botas profissionais fabricados através de uma nova tecnologia (Super Critical Foam) para a produção de solas e que diz ser uma “revolução na engenharia de calçado profissional”. Na lista de argumentos mostrados aos clientes internacionais estão o efeito de mola a cada passo, a dispersão uniforme das forças de impacto durante a marcha, a absorção de choques ou a redução da fadiga no dia-a-dia laboral.
(O jornalista viajou para Itália a convite da APICCAPS – Associação Portuguesa dos Industriais do Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos)
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“Em 30 anos nos sapatos nunca vi crise tão profunda”. Calçado vira-se ao luxo para “morder calcanhares” a Itália
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