Filhos agravam fosso entre eles e elas no mundo do trabalho. Como evitá-lo?

Claudia Goldin, vencedora do Nobel da Economia em 2023, chamou-lhe a penalização pela maternidade: com o nascimento do primeiro filho, diferença entre salários deles e delas agrava-se a olhos vistos.

Descobrir que estava grávida causou-lhe um “misto de emoções“. Por um lado, Carla estava feliz. Afinal, ia ser mãe pela primeira vez. Por outro, receava pela sua carreira. Trabalhava, na altura, no comércio automóvel, “um mundo essencialmente masculino“, no qual a maternidade era “encarada como algo penoso” para o empregador. “Tinha medo, mas tive sorte”, recorda. A notícia foi bem recebida pelo patrão, mas, ainda assim, lembra que “trabalhou até à última semana, sempre com medo de perder o lugar, se fosse para casa“.

Carla Colaço, hoje responsável de recursos humanos de um escritório de arquitetura e design, o Openbook, teve esta experiência há duas décadas. Hoje os tempos até podem ser outros, mas o receio quanto ao futuro profissional teima em marcar presença no momento em que elas descobrem que vão ser mães, contam as profissionais ouvidas pelo ECO. E os dados mostram que estas continuam a estar em desvantagem no mercado de trabalho.

“É a penalização da maternidade“, sublinha a professora universitária Susana Tavares, referindo-se ao conceito criado pela investigadora norte-americana Claudia Goldin, que recebeu o Prémio Nobel da Economia no último ano por ter contribuído para a compreensão da experiência feminina no mundo do trabalho.

De acordo com a investigação de Claudia Goldin, que teve por base 200 anos de dados do mercado de trabalho norte-americano, a participação feminina no mercado de trabalho aumentou, no último século, por efeito, nomeadamente, de mudanças estruturais nas responsabilidades delas na família, bem como do acesso à pílula, que permitiu o planeamento de carreira. Mas a diferença entre os ganhos dos homens e das mulheres persiste.

Goldin mostrou que o grosso das diferenças salariais ocorrem entre homens e mulheres com a mesma profissão e que surgem em grande parte com o nascimento do primeiro filho.

Comité do Nobel

As decisões quanto à educação são um dos fatores que explicam esse fosso, mas a parentalidade (em particular, a maternidade) tem dos contributos com maior peso. Aliás, conforme destacou o Comité do Nobel, segundo a investigação de Goldin, esse fosso “surge em grande parte após o nascimento do primeiro filho”.

Os dados revelam, portanto, que enquanto, para o homem, ser pai resulta num reforço dos rendimentos — é a chamada “vantagem da paternidade” –, para a mulher, ser mãe equivale a mais responsabilidades familiares, mais interrupções na carreira e, à boleia, maior desvantagem salarial — a tal “penalização pela maternidade” (ver gráfico abaixo).

Embora a investigação de Claudia Goldin tenha tido por base o mercado de trabalho norte-americano, desengane-se se acha que esse é um cenário isolado. Em Portugal, não faltam semelhanças, segundo várias análises recentes.

Por exemplo, o estudo Women Matter Portugal 2023, da consultora McKinsey, salientava que “a vida pessoal condiciona mais as mulheres no trabalho do que os homens“, detalhando que elas ainda são responsáveis pela maioria das tarefas domésticas.

Já um estudo feito pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e pelo Centro de Investigação em Pandemias e Sociedade da Noruega, no âmbito do projeto MothER Income InequaliTy (MERIT), deu conta que, mesmo quanto mantêm a profissão a tempo inteiro, as mulheres portuguesas “sentem que a progressão na carreira é limitada pela necessidade de responder a tarefas de cuidado dos filhos“.

Também por cá, enquanto eles veem os salários aumentar com a paternidade, elas não beneficiam desse reforço e chegam mesmo a ter de cortar horas de trabalho remunerado para fazer face às responsabilidades familiares.

As mulheres mudam menos de emprego e, quando o fazem, fazem por questões familiares, estando dispostas a aceitar salários menores.

Susana Tavares

Professora do ISCTE

A isto, a professora Susana Tavares, do ISCTE, acrescenta que as mulheres ainda fazem mais interrupções na carreira associadas à família, o que tem, depois, impacto no ordenado e na progressão.

Além disso, a especialista destaca que o fosso entre eles e elas tende a aumentar ao longo da carreira, uma vez que “as mulheres têm menor mobilidade de emprego” e, quando mudam de posto de trabalho, “muitas vezes” fazem-no por questões familiares (ligadas, nomeadamente, à maternidade), estando dispostas até a aceitar salários menos expressivos.

Antídoto para a desigualdade?

No caso de Carla, a maternidade, assegura, não afetou a sua progressão profissional, mas salienta que “teve sempre o apoio dos pais”, no cuidado do filho, o que identifica como algo fundamental para o bom equilíbrio entre a vida pessoal e o seu sucesso profissional. Ou seja, menos sobrecarregada com as responsabilidades familiares, esta profissional conseguiu trilhar o seu caminho e chegar à liderança de recursos humanos de uma empresa portuguesa.

“Não posso negar que ter uma importante e notável rede de apoio familiar é uma ajuda essencial no processo de liderança feminina“, concorda Daniela Agra, diretora da agência de comunicação Atrevia Portugal, que foi mãe no momento em que “abraçava aquele que é até agora o maior projeto profissional da sua carreira“.

Fazer destes casos a regra e não a exceção passa, nomeadamente, pela fixação de políticas públicas nesse sentido, entendem os especialistas. Em concreto, a professora Susana Tavares explica que as políticas públicas podem contribuir para uma partilha mais equitativa das responsabilidades familiares, atenuando, por conseguinte, as desigualdades no trabalho.

“Se cada vez houver maior partilha, isso deixará de ser um argumento por parte das entidades empregadoras contra as mulheres“, observa a especialista, que salienta que a Agenda do Trabalho Digno trouxe alguns avanços relevantes, como a possibilidade de ser aumentar os subsídios destinados aos pais, quando há uma partilha mais equitativa das licenças.

Flexibilidade dá ajuda valiosa

Os próprios empregadores podem dar um contributo para que a parentalidade possa ser abraçada de forma mais tranquila (e positiva) por trabalhadores e trabalhadoras.

Quando descobriu que estava grávida, Alexandra preocupou-se logo com a “forma como no futuro iria encarar” a sua carreira. “Sabemos que a maternidade muda tudo, e questionei-me muitas vezes que tipo de profissional seria após ser mãe“, lembra.

Já após o nascimento do seu filho, identifica o modelo de trabalho híbrido e a possibilidade de poder escolher o local onde desempenha as suas funções como “determinantes” para a sua qualidade de vida.

Alexandra Rebelo é responsável de suporte e gestão comercial na Zurich Portugal, empresa que, também para apoiar a parentalidade, adianta aos trabalhadores (pais e mães) os valores dos subsídios da Segurança Social, bem como “comparticipa com 50% os casos de extensão do tempo de licença e o prolongamento dos dias de licença, quer para a mãe, quer para o pai“, adianta a responsável pelo talento, Liliana Silva.

Também Daniela Dias, business unit manager da Nestlé Health Science, destaca a flexibilidade de poder trabalhar de casa “algumas vezes por semana” como uma das políticas mais relevantes.

A propósito, convém explicar que, atualmente, o Código do Trabalho prevê que os trabalhadores (mães e pais) com filhos até três anos “tem direito a exercer a atividade em regime de teletrabalho, quando este seja compatível com a atividade desempenhada e o empregador disponha de recursos e meios para o efeito”.

Mas mesmo no caso das funções que não podem ser feitas à distância, a flexibilidade continua a ser uma tendência, nas políticas das empresas quanto à parentalidade. Neste caso, em termos de horários. Por exemplo, na Montiqueijo (segundo a própria, uma das principais empresas portuguesas produtora de queijo fresco, requeijão e queijo curado), dá-se “a liberdade do funcionário gerir o seu horário, desde que respeite as necessidades da sua área de trabalho”.

Não sinto que tenha perdido o comboio. Tenho 59 anos, sou diretora científica da L’Oréal. Viajei muito.

Ana Sofia Amaral

Diretora científica da L'Oréal Portugal

Já Ana Sofia Amaral, hoje diretora científica da L’Oréal Portugal, lembra que ter trabalhado a tempo parcial, quando os filhos eram pequenos — em vez de ficar fora do mercado de trabalho — foi uma possibilidade valiosa. Noutros países, essa é uma opção mais frequente do que em Portugal. A professora Susana Tavares esclarece que, tendo o país baixos salários, as famílias não conseguem facilmente abdicar de parte de um dos salários, daí o menor recurso ao part-time do que noutros países europeus.

Não sinto que tenha perdido o comboio. Tenho 59 anos, sou diretora científica da L’Oréal. Viajei muito“, assegura Ana Sofia Amaral, que considera que “as empresas deviam olhar” para o trabalho parcial, no âmbito dos programas de apoio à parentalidade.

Outra das políticas que tem ganhado maior presença é a oferta de kits aos trabalhadores que se tornam pais, como acontece na CEGID e na Webhelp. Neste último caso, por exemplo, o kit inclui “itens essenciais, como um baby grow“. “Em 2023, entregámos 50 desses kits“, avança Lina de Jesus, diretora de people solutions.

Já no IKEA, a CEO do ramo português adianta que é entregue um cheque de 820 euros aos pais biológicos ou adotivos. Além disso, Helen Duphorn destaca o programa “Passa mais tempo com o teu bebé“, que dá a possibilidade de prolongar a licença parental (biológica ou adotiva) até dois meses. “No ano fiscal 2023, o programa foi utilizado por 137 colaboradores, 56 deles homens”, salienta a responsável.

Lei protege, mas perceção não é essa

A par dos números, das políticas e dos exemplos práticos, importa notar que o Código do Trabalho, como está, proíbe “de forma geral a prática de qualquer ato de discriminação (direta ou indireta)” das trabalhadores grávidas ou com filhos.

Isto quer seja no acesso ao emprego (isto é, nos processos de recrutamento — nos quais, é mesmo ilegal um potencial empregador questionar a candidata sobre o desejo de ser mãe) –, quer seja durante o desenvolvimento da atividade profissional, destaca a advogada Joana Cadete Pires.

Ainda assim, a sócia do escritório Raposo, Sá Miranda & Associados admite que “há um sentimento generalizado de que não existe proteção real“, no dia-a- dia, “quer seja porque não existem mecanismos de controlo céleres e eficientes das medidas de proteção, quer seja porque as vítimas de situações de discriminação estão numa situação de fragilidade e de inferioridade que não lhes permitem na maioria das vezes lutar efetivamente pelos seus direitos”, alerta.

Só a aproximação das licenças entre uma mulher grávida e o pai ou a mãe não gestante permitirá um combate efetivo à discriminação das mulheres grávidas.

Joana Cadete Pires

Sócia da PRA

Para contrariar essa realidade, há que, enumera, deixar clara a proibição da discriminação nos regulamentos internos, fazer ações de formação junto dos quadros superiores e responsáveis de recursos humanos, e promover a partilha mais equitativa das responsabilidades familiares, com a aproximação das licenças entre mães e pais.

Apesar das dificuldades, Carla, hoje com 80 trabalhadores à sua responsabilidade, tem a certeza de que as mães não são um peso para as empresas, como se podia pensar na época em que engravidou. A maternidade até lhes dá competências de resolução de problemas, e isso gera valor também para os empregadores, enfatiza.

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