O polvo de interesses da Freedom que se estende do Cazaquistão até Portugal

Nasceu na Rússia, tornou-se gigante no Cazaquistão, ganhou reputação nos EUA e agora quer alargar o seu poder em Portugal e na Europa. Mas são as acusações de alegadas ilegalidades que lhe deram fama.

Imagine um tabuleiro de xadrez onde as torres são empresas, os cavalos são estratégias de mercado, os peões são todos os pequenos investidores que procuram a melhor forma de rentabilizarem as suas poupanças e, no centro desse jogo, há um rei que avança audaciosamente, não em defesa, mas numa ofensiva que desafia aos principais oponentes.

Esse “rei”, conhecido no mundo real como Timur Turlov, posicionou a sua peça mais poderosa, a Freedom Holding, num dos tabuleiros mais prestigiados do mundo financeiro a 15 de outubro de 2019 através da abertura do capital em bolsa por via de uma oferta pública inicial (IPO em inglês) na praça financeira do Nasdaq.

Atualmente, a Freedom Holding está a negociar com uma capitalização bolsista superior a 4 mil milhões de dólares e carrega a mesma ambição de crescimento voraz que a tornou numa das maiores empresas do Cazaquistão. Entre os seus objetivos está a conquista dos pequenos investidores portugueses através da sua corretora — a Freedom24 — e o alargamento da sua presença em Portugal e na Europa com a compra de um pequeno banco nacional em 2025.

Porém, nem tudo tem sido um “mar de rosas” na história desta empresa cofundada em 2008 na Rússia pelo então jovem de 21 anos Timur Turlov, após ter sido despedido do banco onde trabalhava.

Desde o dia histórico do IPO que a trajetória da Freedom Holding tem sido digna de um thriller financeiro, com todos os ingredientes necessários para segurar a atenção de qualquer espetador até ao próximo episódio: ascensão meteórica, compra desenfreada de empresas e alargamento de negócios, e claro, um enredo repleto de controvérsias e escrutínio regulatório com acusações e suspeitas de ilegalidades que vão até ao paraíso fiscal do Belize.

Timur Turlov, CEO da Freedom Holding, ao centro, ladeado à sua direita por Robert Wotczak, CEO e presidente da Freedom Capital, e à sua esquerda por Al Palombo, responsável pelo departamento de comunicação da Freedom US Markets, em Times Square, Nova Iorque.
Timur Turlov, CEO da Freedom Holding, ao centro, ladeado à sua direita por Robert Wotczak, CEO e presidente da Freedom Capital, e à sua esquerda por Al Palombo, responsável pelo departamento de comunicação da Freedom US Markets, em Times Square, Nova Iorque. Luís Leitão/ECO 10 abril, 2024

Do Cazaquistão para o mundo

Originária de Almaty, uma cidade no Cazaquistão que já foi um próspero entreposto na Rota da Seda, a Freedom começou como uma pequena corretora com grandes ambições.

Sob a liderança de Timur, cuja paixão pelo xadrez se traduz em manobras empresariais tão calculadas quanto ousadas, a empresa adotou uma estratégia agressiva desde o início, procurando tirar vantagem de uma lacuna no mercado que poucos tinham coragem ou recursos para explorar: conectar os investidores da Ásia Central com as oportunidades lucrativas dos mercados de ações dos EUA.

Isso permitiu, por exemplo, que entre 2020 e 2021, segundo material publicitário da empresa, os clientes da Freedom tivessem participado em mais de 100 IPO de empresas dos EUA, incluindo a Airbnb e a gigante sul-coreana de comércio eletrónico Coupang que recentemente comprou a Farfetch.

A estratégia agressiva de expansão promovida por Timur ao longo dos anos através da aquisição de várias empresas inclui a compra, em 2017, do seu rival local, o corretor cazaque Asyl-Invest, e as compras do banco também cazaque SC Kassa Nova Bank (que posteriormente foi renomeado de Freedom Bank KZ) e do corretor nova-iorquino Prime Executions em 2020, que contribuíram para aumentar a projeção da empresa e a sua capacidade de influência no mercado global.

Um dos golpes mais significativos contra a reputação da Freedom veio em forma de um relatório detalhado da Hindenburg Research, uma empresa ativista de short-sellers (investidores que ganham com a queda da cotação das ações), que acusou a empresa de Timur de manipulação de mercado e de conduzir atividades ilegais.

Mas a grande mudança no horizonte da Freedom Holdingd ocorreu uns anos antes, em 2015, quando Timur fez um acordo para controlar a norte-americana BMB Munai, sediada no Estado do Nevada, por meio de uma operação de aquisição inversa que lhe deu livre passe para operar no mercado norte-americano sem ter de percorrer o longo processo burocrático de registar uma empresa do velho império soviético em terras do Tio Sam.

Contudo, como em qualquer boa história, há sempre dois lados da moeda. Enquanto a Freedom Holding avança pelo tabuleiro global por via de um vasto lastro de aquisições, foram-se criando sombras sobre a sua forma de operar no mercado.

Relações com entidades de reputação duvidosa, acusações de manipulação de mercado, e um olhar severo por parte de autoridades reguladoras, colocam a Freedom sob os holofotes dos investidores.

Trump Building em Wall Street, Nova Iorque
A Freedom Holdings tem escritórios no 43.º andar do Trump Building, em Wall Street, a cerca de 300 metros da bolsa de Nova Iorque, mas a sede da empresa é em Almaty, no Cazaquistão. Trump International

Acusações violentas à reputação da Freedom

Em 2021, a Fundação para o Jornalismo Financeiro promoveu uma investigação que apontou para ligações da Freedom com entidades duvidosas, nomeadamente duas empresas russas, a gestora de ativos QBF LLC, que alegadamente conduzia um esquema de Ponzi, e a empresa de marketing CityLife que, a 1 de junho de 2021, foi colocada pelo Banco Central da Rússia numa “lista negra” por, alegadamente, apresentar sinais de funcionamento de um esquema em pirâmide.

Porém, um dos golpes mais significativos contra a reputação da Freedom veio em forma de um relatório detalhado da Hindenburg Research, uma empresa ativista de short-sellers (investidores que ganham com a queda da cotação das ações), que acusou a empresa de Timur de manipulação de mercado e de conduzir atividades ilegais.

O relatório, publicado a 15 de agosto, sugere, entre outras situações, que a Freedom utilizou as suas afiliadas no Belize para manipular a cotação das ações e de inflacionar as receitas da empresa, e de desenvolver práticas não regulamentadas.

Infelizmente estou na lista de russos objeto de sanções pela minha cidadania, apesar de viver no Cazaquistão desde 2011, mas não por questões empresariais porque isso não afeta o nosso negócio, mas porque não gosto de todo de estar nessa lista […] mas continuarei a ajudar a Ucrânia, mesmo quando a Ucrânia me bloqueia.

Timur Turlov

CEO e co-fundador da Freedom Holding

Na sequência da publicação do relatório da Hindenburg Research, o conselho de administração da Freedom decidiu proceder a uma análise externa das alegações constantes do relatório, contratando para o efeito os serviços da sociedade de advogados Morgan, Lewis & Bockius e da empresa de contabilidade forense Forensic Risk Alliance que, “em geral, concluiu que as alegações do relatório Hindenburg não tinham em conta factos importantes e não eram apoiadas por provas”, refere a empresa num comunicado publicado a 26 de janeiro deste ano.

No entanto, no seguimento das acusações da Hindenburg Research, a CNBC noticiou que Freedom está a ser investigada pelo Departamento de Justiça dos EUA e pelo regulador do mercado de capitais norte-americano (SEC). Questionado pelo ECO sobre esta investigação, Timur revela que tanto ele como a Freedom nunca foram notificados pelas autoridades norte-americanas neste sentido.

“Até tentámos contactá-los, mas também não obtivemos feedback sobre o assunto”, referiu Timur, notando estranheza por esta investigação. “Parece que as autoridades apenas receberam alguma denúncia de um delator que, possivelmente, terá feito com que obtivessem o relatório da Hindenburg e as autoridades estejam a verificar se existe alguma violação da nossa parte”, sugeriu.

O ECO também questionou a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) quanto à existência de alguma diligência feita por parte dos reguladores europeus junto da Freedom, dado que a empresa atua em Portugal e nos restantes países da Zona Euro por via de um “passaporte europeu”, atendendo que a Freedom opera através da Freedom Finance Europe, uma empresa de investimento do grupo que está autorizada e registada junto da Cyprus Securities and Exchange Commission (CySEC), a autoridade de supervisão do Chipre.

É incontornável que a liderança de Timur Turlov, caracterizada por movimentos audazes e uma estratégia de expansão agressiva, colocou a Freedom Holding numa posição de destaque no cenário global, não apenas no plano financeiro, mas no campeonato da “data”, numa altura em que os dados são o novo ouro.

Sem confirmar ou desmentir quaisquer diligências que foram ou estejam a ser realizadas, a CMVM revela que “mantém uma estreita cooperação com as entidades supervisoras europeias, incluindo com a CySEC, e está atenta às circunstâncias que possam ser relevantes para a proteção dos investidores residentes em Portugal”.

Além disso, o regulador de capitais português destaca ainda que “a CMVM atua sobre as entidades habilitadas em regime de LPS [Livre Prestação de Serviços] sempre que tal se justifique para correção de atuações irregulares de que tenha conhecimento, designadamente em sede de prestação de informação aos investidores residentes em Portugal ou à atuação de agentes destas entidades.”

Desafio de reputação pessoal e empresarial

Além de todas as questões regulatórias e legais em relação à Freedom Holding que têm surgido nos últimos anos, Timur, o rosto da empresa, encontra-se atualmente na lista de sanções da Ucrânia devido a ligações com a Rússia.

Esta situação não apenas afeta a perceção pública do empresário e da Freedom, mas também as complexas interações geopolíticas que podem influenciar e limitar as operações da empresa. No entanto, Timur garante que essa situação não afeta as operações da Freedom.

“Infelizmente estou na lista de russos objeto de sanções pela minha cidadania, apesar de viver no Cazaquistão desde 2011, mas não por questões empresariais porque isso não afeta o nosso negócio, mas porque não gosto de todo de estar nessa lista”, refere o empresário, que conta também com uma autorização de residência em Portugal, garantindo: “Continuarei a ajudar a Ucrânia, mesmo quando a Ucrânia me bloqueia”.

É incontornável que a liderança de Timur Turlov, caracterizada por movimentos audazes e uma estratégia de expansão agressiva, colocou a Freedom Holding numa posição de destaque no cenário global, não apenas no plano financeiro, mas no campeonato da “data”, numa altura em que os dados são o novo ouro.

Isso é bem visível com as últimas aquisições, como a compra de 82% do capital da Arbuz, uma cadeia de supermercados online do Cazaquistão, o investimento de 32 milhões de euros da Aviata/Chocotravel (uma das maiores agência de viagens do Cazaquistão) e também o investimento de 400 milhões de dólares na compra do banco de investimento norte-americano Maxim Group que se dedica a empresas emergentes em crescimento.

No entanto, as alegações de manobras ilegais e associações a entidades de caráter duvidoso lançam sombras sobre esta trajetória ascendente. A habilidade da empresa em lidar com estes desafios regulatórios e legais, mantendo um jogo limpo, será crucial para sua sustentabilidade e reputação a longo prazo da companhia. As investigações promovidas por entidades como a SEC e o Departamento de Justiça dos EUA destacam o papel vital da governança e da conformidade regulatória.

Estas são as regras do jogo que garantem a proteção dos investidores e a estabilidade dos mercados financeiros. Particularmente em territórios como Portugal e na Europa, onde a Freedom Holding procura expandir o seu reino, a colaboração contínua entre reguladores é essencial para evitar movimentos em falso que possam prejudicar os investidores e desestabilizar o tabuleiro financeiro.

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