Mesmo com a garantia pública, apenas em sete dos 23 municípios mais populosos do país os jovens conseguem comprar casa sem terem de avançar com capitais próprios. Não é o caso de Lisboa nem do Porto.
A garantia pública que o Governo pretende disponibilizar em breve aos jovens com menos de 35 anos não é uma “carta-branca” passada pelo Estado para todos os jovens se tornarem proprietários da sua casa de sonhos, como muitos terão pensado ao ler no programa do Executivo a intenção de avançar com uma “garantia pública para viabilizar o financiamento bancário da totalidade do preço da aquisição da primeira casa por jovens.”
Os baixos rendimentos da generalidade dos jovens e a forte subida do preço das casas nos últimos anos continuam a bloquear o acesso de muitos ao crédito bancário. “Os baixos rendimentos e a precariedade dos primeiros empregos são os principais fatores que dificultam o acesso dos jovens à sua primeira habitação. Além disso, as regras macroprudenciais em vigor, que exigem que estes jovens tenham, no mínimo, 10% do valor do imóvel, mais os custos de aquisição, constituem uma barreira significativa à aquisição de casa própria”, refere Ricardo Sousa, CEO da Century 21.
Em Lisboa, por exemplo, uma casa com 60 metros quadrados custa, em média, quase 300 mil euros, segundo dados do Confidencial Imobiliário com base no preço médio das casas transacionadas em 2023. Considerando que cerca de 75% dos jovens ganham menos de 1.000 euros líquidos por mês, qualquer banco não poderá conceder mais do que 88 mil euros a um jovem que aufira mensalmente 1.000 euros e já considerando um crédito à habitação a 40 anos (prazo máximo permitido pelo Bando de Portugal), por forma a garantir o cumprimento da medida macroprudencial do Banco de Portugal que obriga a que a prestação da casa não supere os 50% do seu rendimento líquido (o chamado rácio DSTI).
Isto significa que, num caso extremo, para comprar uma casa em Lisboa por via de um crédito à habitação, um jovem com este nível de rendimentos (1.000 euros de salário) teria de avançar com uma entrada de 165 mil euros (56% do valor da compra), considerando como ponto de partida um crédito à habitação a 40 anos indexado à Euribor a 6 meses e um spread de 1% (perfil médio dos empréstimos para a compra de casa).
A garantia pública para jovens até aos 35 anos surge como uma espécie de bilhete dourado – mas não para todos. A promessa de facilitar o acesso ao crédito à habitação encontra um obstáculo bem conhecido: a realidade económica dos jovens portugueses.
Mesmo considerando o dobro dos rendimentos (2.000 euros líquidos), que possibilita ao jovem a contratualização de um crédito à habitação até aos 175 mil euros, as condições do mercado e a limitação imposta pelo DSTI obrigariam sempre o jovem a avançar com uma entrada superior a 121 mil euros (cerca de 41% do valor da transação) para comprar uma casa em Lisboa.
Além de extremas, estas situações estão longe da realidade da maioria dos jovens, dado o elevado volume de entrada exigido para aceder ao financiamento bancário. O que faz com que também se torne pouco relevante para estes jovens o decreto-lei recentemente aprovado em Conselho de Ministros de 23 de maio, que cria uma garantia pública de até 15% do valor da transação, nos imóveis até 450 mil euros, com vista à viabilização de concessão de crédito à primeira habitação própria e permanente para jovens até aos 35 anos.
Esta realidade não é uma exclusividade de Lisboa, Cascais, Oeiras ou Porto, onde o esforço financeiro para comprar casa é maior do que na maioria das cidades portuguesas. De acordo com cálculos do ECO, considerando o rendimento líquido de 1.000 euros de um jovem, apenas em 30% dos 23 municípios mais populosos de Portugal continental (com mais e 100 mil habitantes) é que é possível aceder à garantia pública e assim evitar que os jovens não tenham de avançar com qualquer capital como entrada para a aquisição de uma casa de 60 metros quadrados e considerando um crédito à habitação a 40 anos.
No entanto, se em vez de 60 metros quadrados a habitação tiver 85 metros quadrados de área útil, a maioria dos jovens que pretenda comprar casa num dos 23 municípios mais populosos de Portugal continental terá sempre de avançar com capitais próprios para aceder ao crédito à habitação, porque a solução da garantia pública fica inviabilizada pela medida macroprudencial do Banco de Portugal DSTI.
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Gestão de expectativas
A garantia pública não se trata da possibilidade de comprar uma casa com um desconto de 10% ou 15%. Trata-se apenas de um aval do Estado junto dos bancos para que os jovens possam aceder à totalidade do financiamento, dentro do limite dos seus rendimentos e assim adquirirem a casa pretendida.
Isso significa que os jovens terão sempre de pagar o montante “extra” concedido pela garantia pública ao banco. A vantagem é que assim não necessitam de avançar com essa parcela em capitais próprios ou recorrer a um crédito pessoal, como alguns jovens têm feito.
Imaginemos uma casa que custa 200 mil euros. Recorrendo à garantia do Estado, o jovem sabe, à partida, que tem assegurado o financiamento bancário de 30 mil euros pela garantia pública (15% do LTV). Desta forma, teoricamente, o jovem pode contratualizar com o banco um crédito à habitação de 200 mil euros pelo prazo acordado (podendo ir até aos 40 anos se o jovem tiver menos de 30 anos).
O Estado permanecerá como agente passivo no contrato até ao pagamento dos primeiros 30 mil euros do capital, abandonando-o assim que esse limite for atingido. “Quando os primeiros 15% forem liquidados, reembolsados, o Estado deixa de estar na equação”, revela António Leitão Amaro, ministro da Presidência na conferência do último Conselho de Ministros, sublinhando que “a garantia existe sobre os primeiros 15% de capital.”
Aproximadamente 50% dos jovens entre os 25 e os 34 anos ainda vivem com os pais, o que coloca Portugal entre os países da União Europeia com os índices mais elevados neste indicador.
O problema é que são poucos os jovens que conseguem aceder a um financiamento de 170 mil euros (diferencial entre o preço da casa e os 30 mil euros concedidos pela garantia pública), ou mesmo de 100 mil euros, por conta dos rendimentos que auferem e das atuais condições do mercado.
Segundo cálculos do ECO, um jovem que tenha um salário líquido de 1.000 euros (recorde-se que 75% dos jovens ganham menos deste valor) não pode ambicionar obter um crédito à habitação acima dos 88 mil euros, e já considerando a maturidade máxima permitida (40 anos) e a ausência de qualquer outro crédito.
“Convém começar por observar que 10% da população entre os 25 e os 34 anos não está empregada (e também não está no ensino ou a fazer formação)“, refere a economista Vera Gouveia Barros num artigo de opinião no ECO. A investigadora na área da Economia da Habitação destaca ainda que “um terço dos [jovens] que estão empregados tem uma situação laboral precária (tem um contrato com termo) e os salários são mais baixos.”
Face a estas condições, torna-se complicado que um banco conceda crédito à habitação a grande parte dos jovens e, por isso, a benesse da garantia pública pouco interessa. No entanto, há boas novidades para os restantes 25% dos jovens que auferem mais de 1.000 euros líquidos e para os que, em conjunto e na soma dos seus salários, apresentem um rendimento do agregado familiar superior a essa fasquia.
A benesse e o preço da garantia pública
Apesar de estar bloqueada para a maioria dos jovens, a garantia pública revela-se numa solução positiva para todos os outros jovens com alguma margem financeira, isto é, que já conseguem obter um crédito à habitação para adquirirem a casa que pretendem, mas têm dificuldade na obtenção de capitais próprios para darem como entrada do empréstimo.
Nesses casos, o acesso à garantia pública, que o Governo espera que esteja em vigor a partir de agosto, dá acesso ao financiamento a 100% do custo da casa evitando, por exemplo, que os jovens recorram a um crédito pessoal com taxas de juro acima dos 15% para obter o dinheiro necessário para avançar como entrada do crédito à habitação, como tem acontecido com alguns jovens, segundo revela Natália Nunes da DECO.
Veja-se, por exemplo, um jovem casal com rendimentos globais de 3.000 euros, sem qualquer crédito, que pretende comprar uma casa de 100 metros quadrados em Matosinhos que custa, em média, 270 mil euros, segundo dados do Confidencial Imobiliário com base no preço médio das casas transacionadas no ano passado.
Antecipamos um aumento da procura de casas [à boleia da garantia pública para os jovens], particularmente na procura de apartamentos com tipologias mais baixas, como T0, T1 e eventualmente T2.
Como os rendimentos deste casal permitem obter um crédito à habitação até 263 mil euros, podem avançar com 27 mil euros de capitais próprios como entrada e contratualizar um crédito à habitação a 40 anos por 243 mil euros, por forma a cumprir a medida macroprudencial do Banco de Portugal que estipula que o rácio entre o montante do empréstimo e o valor do imóvel dado em garantia ficar abaixo dos 90% (loan-to-value ratio, na sigla inglesa LTV), ficando a pagar uma prestação de 1.138 euros.
No entanto, se não tiverem disponível os 27 mil euros de entrada, este jovem casal poderá recorrer à garantia pública, contratualizando assim um financiamento bancário de 269,8 mil euros (100% do valor da casa) a 40 anos, que se traduz numa prestação de 1.541 euros. Esta opção revela-se 6% mais cara do que a opção sem a garantia pública, justamente porque o montante de financiamento é mais elevado. No entanto, é uma solução bem mais económica quando comparado com a opção de para “fugir” à garantia pública este casal tivesse recorrido a um crédito ao consumo para financiar a entrada para a casa.
Impacto da garantia pública no mercado
Ainda é cedo para antecipar o impacto desta medida no mercado da habitação. No entanto, Ricardo Sousa, CEO da Century 21, refere que a “a taxa de transações de compra de casa por jovens até aos 35 anos em Portugal é, infelizmente, bastante baixa” e que, “aproximadamente 50% dos jovens entre os 25 e os 34 anos ainda vivem com os pais, o que coloca Portugal entre os países da União Europeia com os índices mais elevados neste indicador.”
De acordo com dados do Banco de Portugal, 34,9% dos contratos de crédito à habitação própria e permanente realizados em 2023 foram feitos por jovens até aos 35 anos. Em termos de volumes de financiamento para a compra de casa, a percentagem foi praticamente a mesma (35,2%) no ano passado.
A garantia pública com vista à viabilização do financiamento à primeira habitação para jovens até aos 35 anos poderá dar uma ajuda à emancipação de alguns jovens facilitando o seu acesso à compra de casa. Daí que Manuel Alvarez, presidente da Remax Portugal, revele ao ECO que antecipa “um aumento da procura” de casas à boleia desta medida, particularmente na “procura de apartamentos com tipologias mais baixas, como T0, T1 e eventualmente T2.”
Porém, Manuel Alvarez salienta que “o quão significativo [será o aumento da procura] é uma incógnita, até porque depende de vários fatores, entre os quais o conhecimento por parte dos jovens dos trâmites do processo e do tempo de resposta que o serviço público der a cada pedido.”
A garantia pública para jovens até aos 35 anos surge assim como uma espécie de bilhete dourado — mas não para todos. A promessa de facilitar o acesso ao crédito à habitação encontra um obstáculo bem conhecido: a realidade económica dos jovens portugueses. Com salários baixos e preços de casas elevados (sobretudo nas grandes cidades), a miragem da casa própria permanece distante para muitos.
Enquanto esta medida poderá dar uma ajuda à emancipação de uma pequena parcela de jovens, especialmente aqueles com rendimentos um pouco acima da média, para a grande maioria, a compra de casa continuará a ser um sonho adiado. Os números não mentem: mesmo com a ajuda do Estado, o montante necessário para a entrada de uma casa é uma barreira quase intransponível para quem aufere menos de 1.000 euros mensais.
A garantia pública poderá, sim, evitar que alguns jovens recorram a créditos pessoais com juros altíssimos. No entanto, a sua abrangência e eficácia permanecem questionáveis. Em Lisboa, Cascais, Porto e outras cidades onde os preços das casas estão a níveis bem acima da possibilidade das carteiras da maioria, a medida pode vir a ser apenas uma gota no oceano de desafios financeiros.
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Garantia pública não dispensa entrada para a compra de casa em 70% dos maiores municípios
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