Administradores de insolvência dão murro na mesa. “Pagamos para trabalhar”
Remunerações, despesas, taxas, acesso a dados do Fisco e seguro de responsabilidade civil integram caderno reivindicativo levado ao Ministério da Justiça pela Associação dos Administradores Judiciais.
É mais um grupo profissional, neste caso ligado ao setor da justiça (e com implicação direta no funcionamento das empresas), que assume “não estar satisfeito com as atuais condições de exercício do seu trabalho”. Com reivindicações que vão desde a remuneração fixa e variável ao modelo de pagamento de despesas, passando pela taxa suportada por cada novo processo, pelo acesso às bases de dados e pelo seguro de responsabilidade civil, os administradores judiciais já apresentaram este dossiê ao novo Governo, durante uma reunião realizada na semana passada.
Nomeados para gerir ou administrar os processos de insolvência e outros anteriores a essa fase, como o PER (Processo Especial de Revitalização) e o PEAP (Processo Especial para Acordo de Pagamento), os administradores judiciais acabam por ser o braço (e os olhos) do juiz no exterior dos tribunais.
Podem administrar a empresa durante determinado período e elaborar ou supervisionar a implementação e cumprimento dos planos e dos processos de recuperação. Não havendo solução, cabe-lhes liquidar o património dos insolventes, fazendo regressar os bens ao mercado e maximizando a satisfação dos créditos dos diversos credores.
Em entrevista ao ECO, o presidente da direção da APAJ – Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais, António Emílio Pires, dá voz à revolta com as atuais condições de trabalho, até “face à responsabilidade e exigências que têm na tramitação dos processos”.
A começar pelo valor da remuneração fixa (2.000 euros) não ser atualizado há duas décadas, enquanto “os custos que suportam aumentam todos os anos, como os de qualquer outro cidadão”. Além disso, nos chamados processos de caráter limitado este valor baixa para 500 euros e “em algumas comarcas ou juízos há o entendimento de que, quando um processo é encerrado por insuficiência da massa insolvente, apenas tem direito a 50%” da remuneração fixa.
Face aos enormes desafios da profissão e às metas ambiciosas que temos, não podemos estar satisfeitos com as atuais condições de exercício do nosso trabalho. Desde logo, com as condições remuneratórias, face à responsabilidade e exigências que temos na tramitação dos processos.
Por outro lado, a remuneração variável, indexada à liquidação de bens ou à recuperação de devedores, “está envolta em tamanha controvérsia – com posições de juízes e do Ministério Público desnecessária e inacreditavelmente contrárias às dos administradores judiciais –, em incerteza e numa gigantesca falta de rigor e clareza do legislador, que se traduz num enorme fator de preocupação e desmotivação” para estes profissionais.
É que a legislação relativa ao estatuto do administrador judicial (Lei nº 22/2013, de 26 de fevereiro) “não é clara, motivando as mais diversas interpretações e, acima de tudo, suscitando conflitos entre as partes e recursos jurídicos”. “Ainda que sejam escassas as situações em que se coloca a possibilidade da remuneração variável, naturalmente que o administrador judicial aspira a recebê-las. Todavia é confrontado com a frustração dos valores a receber”, acrescenta.
António Emílio Pires dá o exemplo da norma que prevê um montante variável a receber em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, equivalente a 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano. “Mas, afinal, como se lê esta norma e como se operacionaliza? Será que situação líquida significa capitais próprios do devedor ou tem outro significado? E qual será?”, questiona. Também a majoração de 5% em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos é de “enorme imprecisão” e tem visto a jurisprudência dividir-se.
“Os incidentes jurídicos na esfera do cálculo da remuneração variável são inúmeros, causando atrasos na tramitação processual, pelo que urge a intervenção do legislador. (…) Dito isto, a maior parte dos administradores judiciais vive, ou sobrevive, apenas com a remuneração fixa, uma vez que desse rendimento (bruto) terão de ser deduzidos os encargos de estrutura profissional – despesas dos escritórios e pessoal contratado –; a taxa paga à Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (CAAJ) que absorve 5% ou 10% do rendimento bruto, em função da remuneração fixa definida pelo tribunal; e ainda o prémio de seguro de responsabilidade civil”, desabafa o líder da APAJ.
Também o regime de pagamento de despesas aos administradores da insolvência “importa ser revisto ou revertido”, eliminando a “recente tramitação processual acrescida absolutamente desnecessária e quase ridícula”, como classifica António Emílio Pires.
Em termos práticos, o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (IGFEJ ) adianta 204 euros por cada processo em que é nomeado um administrador judicial. Que tem de devolver essa importância deduzida de eventuais despesas, mediante apresentação das faturas e da respetiva justificação.
Porém, “a maioria dos tribunais desconsidera a maior parte das despesas apresentadas por considerar que não são elegíveis”. Portanto, os administradores judiciais têm vindo a devolver total ou parcialmente a provisão que recebem, algo que o dirigente associativo refere ser “uma tarefa administrativa pesada” quer para os próprios, quer para os tribunais. “Naturalmente, dentro do cenário existente, deve ser equacionado acabar com o processamento da provisão e cada administrador judicial apresentar as despesas por cada processo ou, alternativamente, não ser necessário comprovar despesas”, sugere.
Quantos são e quanto pagam em taxas e seguros?
Depois de dois anos com valores anormalmente baixos que refletiram o efeito de “almofada” de muitas das medidas de apoio às empresas implementadas no período da pandemia de Covid-19, o número de insolvências em Portugal disparou a dois dígitos durante o ano passado, atingindo quase 2.000 empresas.
Evolução dos processos de insolvência em Portugal
A subida dos custos de financiamento e das matérias-primas, os problemas nas cadeias de abastecimento, a perda de velocidade das principais economias europeias, a instabilidade resultante dos conflitos armados na Europa e no Médio Oriente ou o reforço das tensões geopolíticas e das rivalidades comerciais formam uma “tempestade perfeita” nos fatores de risco, agravada pelo cenário de incerteza política. Tal leva os especialistas a anteciparem para este ano um novo aumento de casos, já para níveis superiores aos registados antes da pandemia.
De acordo com os dados que foram divulgados esta semana pela Allianz Trade, nos primeiros cinco meses deste ano foram registadas 1.026 insolvências em Portugal, o que corresponde a um aumento de 11,8% face ao mesmo período do ano anterior.
Em termos geográficos e na comparação homóloga, o agravamento de casos até maio verifica-se em maior escala nos grandes centros urbanos, com as maiores subidas nos distritos do Porto (38,4%), de Braga (19%) e de Lisboa (3,3%).
Atualmente, as listas de administradores judiciais contam com 336 inscritos, dos quais apenas 301 estão em exercício de funções – sendo que, destes, 272 são associados da APAJ.
Apesar do aumento no número de processos de insolvência, PER’s e PEAP’s, a associação assegura que este número é “suficiente” e “[não é] expectável que possa vir a existir necessidade de se abrir um novo concurso para admissão” destes profissionais. Como aconteceu em 2015, na sequência de um concurso extraordinário e urgente iniciado dois anos antes, cujas entradas “vieram fazer face às necessidades decorrentes daqueles que por força da idade ou vontade própria foram saindo da profissão”.
Por outro lado, a associação exige que a entidade que acompanha, supervisiona e fiscaliza os administradores judiciais (CAAJ) passe a ter “intervenções firmes e muito céleres junto dos profissionais incumpridores”. Em entrevista ao ECO, António Emílio Pires sublinha que “são uma pequena minoria, mas mancham a imagem dos colegas cumpridores, causam perturbações graves no normal andamento dos processos e, noutros casos ainda, causam graves prejuízos aos credores e às massas insolventes”.
Os profissionais incumpridores são uma pequena minoria, mas mancham a imagem dos colegas cumpridores, causam perturbações graves no normal andamento dos processos e, noutros casos ainda, graves prejuízos aos credores e às massas insolventes.
Outro aspeto que continua a gerar “forte controvérsia”, com os administradores judiciais a questionarem a própria constitucionalidade, é a taxa de 100 euros por cada nomeação em novo processo que têm de pagar “à cabeça e sem nada terem recebido ainda”.
“Trata-se de uma taxa de valor elevadíssimo, que deveria ser atualizado em significativa baixa, e, por outro lado, deveria ser outro o momento do seu pagamento. Pode-se dizer que os administradores judiciais ‘pagam para trabalhar’. Será difícil encontrar uma qualquer outra classe profissional que tenha de suportar tão pesados encargos por processo para trabalhar, estando obrigado a pagar taxas tão elevadas”, denuncia o líder da APAJ.
E com os administradores judiciais a precisarem frequentemente de obter informação, designadamente sobre os bens e sobre os rendimentos dos devedores ou dos insolventes, outro problema apontado é que, ao contrário de outros atores do sistema judicial, só há pouco tempo passaram a ter acesso – e “bastante limitado” – às bases de dados das conservatórias, designadamente predial e automóvel, e da Segurança Social.
No entanto, lamenta o porta-voz, “não têm ainda, inacreditavelmente, apesar de tal já se encontrar legislado, acesso à principal das bases de dados, ou seja, a da Autoridade Tributária”.
Administradores de insolvência ainda não têm acesso às bases de dados da Autoridade Tributária. Consulta de informação na conservatórias e da Segurança Social é “bastante limitado”.
Finalmente, continua por resolver a “preocupação antiga” da classe relativa ao seguro de responsabilidade civil profissional, que é obrigatório e custa “milhares de euros por ano a cada administrador judicial, contrariamente às dezenas de euros que tal seguro importa a outros profissionais”. E que, aponta o mesmo responsável, apenas é disponibilizado por uma única companhia de seguros. Uma situação que “também necessita de ser alterada com urgência, a começar com uma necessária alteração legislativa que exclua o dolo na portaria que regulamenta” este seguro.
É que a norma do estatuto dos administradores judiciais nada refere sobre a necessidade de se encontrarem cobertos as “omissões e atos dolosos eventualmente praticados” por estes profissionais, não havendo qualquer regulamentação por parte do membro responsável pela área da justiça, designadamente sobre o âmbito, as coberturas ou a retroatividade; e, ao mesmo tempo, o número 2 do artigo 148º da Lei do Contrato de Seguro (Decreto-Lei no 72/2008, de 16 de abril) impõe que, caso ocorra a celebração de contratos de seguro, os mesmo cubram obrigatoriamente tais atos e omissões.
“Como consequência deste problema, e consultado o mercado, só existe uma companhia de seguros disponível, a Hiscox/AIG, (…) que fazendo-se valer da recusa das demais em cobrir as situações de dolo, pratica preços exorbitantes. Para limites indemnizatórios de 500 mil euros, tem prémios anuais que variam entre os 2.516,80 e os 3.357,20 euros, consoante se opte por franquias de 1.500 ou 15 mil euros. Nos casos em que optem pela cobertura máxima de um milhão de euros, e com as mesmas franquias, o prémio de seguro varia entre 4.417 e os 5.530,80 euros”, calcula António Emílio Pires.
O presidente da direção da APAJ fala num “verdadeiro absurdo e que só poderá ser corrigido quando a portaria deixar de exigir a cobertura das situações de dolo, permitindo dessa forma a concorrência entre as demais seguradoras”. “Tal preocupação tem sido sistematicamente reportada ao Ministério da Justiça e à CAAJ, mas a verdade é que nada foi feito, obrigando os administradores judiciais a assumirem riscos que não estão cobertos pelo seguro e a suportar custos irracionais e incompreensíveis para a atividade”, conclui.
Todos estes problemas relativos às remunerações, às despesas, à taxa ou ao seguro de responsabilidade civil foram levados pela APAJ à primeira reunião com a nova tutela, realizada a 11 de junho com Maria Clara Figueiredo, secretária de Estado Adjunta e da Justiça.
António Emílio Pires diz ao ECO que saiu desse encontro com a promessa de que são situações já “identificadas” e que serão “apreciadas e revistas brevemente”, estando “algumas das medidas já na calha para o dossiê sobre a transparência e corrupção”, que o Governo deve aprovar esta quinta-feira em Conselho de Ministros.
Esta terça-feira, a ministra da Justiça esteve novamente na Assembleia da República a ouvir os partidos com assento parlamentar sobre a prometida agenda anticorrupção, que irá incluir a regulamentação do lóbi e que já no final de maio dizia estar numa “reta finalíssima”.
No primeiro Conselho de Ministros, o Governo liderado por Luís Montenegro mandatou Rita Alarcão Júdice, para falar com os partidos, agentes do setor e sociedade civil, a fim de elaborar um pacote de medidas contra a corrupção num prazo de 60 dias.
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