A Agenda Anticorrupção: 31 objetivos e tantas (ou mais) dúvidas

  • Rui Costa Pereira
  • 20 Junho 2024

Agenda tem aspetos muito positivos, mas também anúncios terrivelmente (meço bem o que digo) preocupantes e muito próximos de fenómenos populistas e justicialistas, cada vez mais presentes na sociedade

A Agenda Anticorrupção apresentada esta quinta-feira pelo Governo assenta em quatro (assim identificados) pilares: a prevenção, a punição efetiva, a celeridade processual e a proteção do setor público.

Ao nível da prevenção, são apresentados oito objetivos, todos eles de inquestionável relevância para a prossecução desse pilar. Mas começaria por focar algo que me parece de igual ou superior importância, mas que vi identificado em último lugar na Agenda apresentada: a educação para a prevenção da corrupção. Não percebi porquê colocá-lo no último dos pilares e em último lugar e não neste, como penso que deveria. Sem prejuízo de não louvar de modo idêntico os índices de perceção da corrupção que a Agenda refere logo na sua introdução, a verdade é que há um problema de corrupção em Portugal. E corremos o risco de esse problema se tornar mais do que um problema estrutural, um problema cultural. O amiguismo, o facilitismo, o jeitinho, características tão próprios do ser português, são também elas – não tenho a mais pequena dúvida disso – o embrião perfeito das práticas corruptivas. O Estado, na definição do ensino primário e básico, deve ter um papel fundamental na estruturação de programas educativos que enfrentem esta realidade de modo muito claro e quanto mais prematuro, melhor. São, por isso, positivamente assinaláveis os objetivos apresentados a este nível.

Ao nível da punição efetiva, os objetivos apresentados parecem-me estar francamente num limbo muito frágil entre o reforço da ação punitiva do Estado e a salvaguarda dos direitos fundamentais das pessoas. Às vezes o discurso público parece esquecer que este segundo interesse tem primazia sobre o primeiro, mais não seja por a Lei Fundamental o afirmar, no primeiro artigo (!). Quero acreditar que a sua concretização legislativa e regulamentar não irá perder de vista este princípio. Dizer-se – e logo à cabeça – que se quer “Criar um novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado”, mas sem dar uma única pista de que novo paradigma é esse, deixa qualquer jurista penalista em alerta. Para já, porque não se percebe porque é que é necessário um novo paradigma. O atual não é bom? Porquê? Como é possível robustecer um regime onde já é possível ao Gabinete de Recuperação de Ativos e à Polícia Judiciária avançarem com arrestos de bens de pessoas nem sequer acusadas de crimes, suportadas por despachos tabelares, em que o ónus da prova da proveniência (i)lícita dos bens já foi invertido para os seus titulares e em que se presume ilícito tudo o que está no património e que excede os rendimentos declarados, incluindo – pasme-se – os reembolsos de IRS que os cidadãos recebem? “Criação de uma “lista negra” de Fornecedores do Estado”: só com base numa acusação? Sem decisão condenatória transitada? Aguardemos.

Ao nível dos processos mais céleres, vejo com igualmente franca preocupação o objetivo de “Reduzir a amplitude da fase de instrução em processo penal”, ainda que, aparentemente, a pretexto de limitar “a utilização de expedientes dilatórios”. A lei dá hoje, especialmente na fase de instrução, poderes extraordinariamente amplos ao juiz de instrução para evitar quaisquer expedientes dilatórios. Não há outra maneira de dizer as coisas: é um pretexto falso e acima de tudo errado para se invocar. “Rever o regime dos recursos quanto aos efeitos e ao momento da subida ao tribunal superior”: como? Para restringir ainda mais? Numa palavra: surreal. “Atualizar o regime legal dos meios de obtenção de prova em ambiente digital”: como? Não esqueçamos a tentativa gorada há 3 anos, que tinha amplo consenso governamental e parlamentar, que foi duramente rechaçada pelo Tribunal Constitucional, depois de um pedido de fiscalização prévia que lhe fora endereçado pelo Presidente da República. Se for para insistir nos mesmos erros do passado, é só lamentável. Louva-se o objetivo de publicitar o acervo de decisões judiciais; mas critica-se que se fique por aquelas que sejam proferidas “em matéria de corrupção”. Há muito que Portugal é severamente criticado por observadores externos pela falta de transparência das decisões judiciais. Mas um passo pequeno é melhor que passo nenhum.

Por fim, ao nível da proteção do setor público, muito positivo o objetivo que visa garantir “que as nomeações em regime de substituição sejam acompanhadas da abertura de concurso público para preenchimento da vaga” e, bem assim, a formação especializada em contratação pública.

Em síntese conclusiva: a Agenda tem aspetos muito positivos, mas também anúncios terrivelmente (meço bem o que digo) preocupantes e muito próximos de fenómenos populistas e justicialistas, cada vez mais presentes na sociedade portuguesa. Seria muito interessante que o Governo apresentasse publicamente todos os contributos documentados que recebeu na preparação desta Agenda, para que todos possamos conhecer a influência desses contributos para o desenho da mesma e em que medida estas são fruto do quê. Até porque o sexto objetivo apresentado diz que o Governo pretende o “Aprofundamento do princípio do “Governo aberto” através de disponibilização pró-ativa de documentos e dados administrativos”. Eu também.

  • Rui Costa Pereira
  • Associado coordenador da equipa de Penal Contraordenacional e Compliance da MFA Legal

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