Lei do trabalho vai voltar a mudar? Governo diz que está tudo em discussão com parceiros sociais, mas advogado Guilherme Dray antevê que não será feita nenhuma reforma profunda, apenas ajustes.
O Governo já disse e repetiu que quer revisitar as dezenas de alterações que foram feitas na primavera do ano passado à lei do trabalho, mas Guilherme Dray acredita que não está em cima da mesa uma nova reforma da legislação laboral. Em entrevista ao ECO, o coordenador do livro verde que deu origem à chamada Agenda do Trabalho Digno salienta que “no essencial” as mudanças feitas pelo Governo anterior “vieram para ficar”.
Já quanto à transparência salarial, o também advogado frisa que as empresas portuguesas têm muito trabalho a fazer para se adaptarem à diretiva europeia, que o país tem de adotar até 2026. Aliás, diz Guilherme Dray, se o Governo revisitar mesmo a lei do trabalho, deve aproveitar para incluir já essas regras.
Esta é uma de três partes da entrevista de Guilherme Dray ao ECO. Na outras duas, fala sobre o trabalho nas plataformas digitais e sobre o teletrabalho, bem como sobre o travão ao outsourcing após despedimentos coletivos e sobre a negociação coletiva em Portugal, deixando claro que é positivo para as empresas haver sindicatos “sólidos e amadurecidos”.
Foi um dos coordenadores do livro verde que serviu de base às dezenas de alterações feitas na primavera do ano passado à lei do trabalho. O Governo diz que quer agora revisitar essas alterações. É prudente?
Foi um livro que foi elaborado tendo em vista os desafios do futuro e a adaptação do trabalho e do direito do trabalho. Resultaram várias recomendações, nomeadamente do ponto de vista das novas realidades decorrentes da transição digital. O direito do trabalho não podia ficar alheado das novas realidades e a Agenda do Trabalho Digno avançou nesse sentido, e avançou bem. Acho que pode haver eventualmente alguns ajustes, aqui e ali. Mas o essencial veio para ficar, nomeadamente a parte do trabalho nas plataformas digitais. Temos uma diretiva da União Europeia [sobre o trabalho nas plataformas digitais]. Aquilo que o legislador fez foi antecipar a transposição da diretiva. Neste momento, não me parece que se possa recuar.
Já vamos às regras do trabalho nas plataformas digitais, mas, quando diz que podem ser ajustes na Agenda do Trabalho Digno, está a referir-se a quê em particular?
Não compete a mim dizer. O que eu sei é que há quem diga que, do ponto de vista, por exemplo, desse preceito da presunção de trabalho das plataformas digitais, há uma ou outra redação, de uma ou outra alínea que eventualmente poderiam estar tecnicamente mais bem elaboradas.
Acho que eventualmente teremos ajustes em matéria de revolução digital, e não muito mais.
A ex-ministra do Trabalho Ana Mendes Godinho diz que rever a Agenda do Trabalho Digno seria um “ataque aos trabalhadores”. Concorda?
Depende da dimensão. Se fosse uma revisão integral, eventualmente poderia ser assim interpretado, mas não me parece que seja isso que vai suceder. Não me parece que seja essa sequer a intenção da ministra do Trabalho. Acho que eventualmente teremos ajustes em matéria de revolução digital, e não muito mais.
Há uns dias escreveu um artigo de opinião sobre a nova diretiva da transparência salarial. Um estudo entretanto publicado mostrou que 40% das empresas portuguesas não conhecem bem as regras que estão em causa. É um sinal de alerta?
Acho que sim. Por exemplo, há cerca de duas semanas, o Governo sueco fez um plano de ação para a transposição da diretiva da transparência remuneratória. Temos já no nosso Código de Trabalho e na Constituição o princípio de salário igual para trabalho igual. Mas todos sabemos que, apesar desse princípio, continua a existir um gender pay gap.
De que modo é que a diretiva ajudará a resolver esse fosso?
A diretiva, no fundo, vem dizer que, mais do que consagrar a igualdade e não discriminação no trabalho do ponto de vista remuneratório, os Estados devem legislar para que as empresas criem mecanismos e métodos analíticos que permitam apurar se está tudo a correr bem ou não do ponto de vista da igualdade retributiva, e, caso não estejam, devem, em conjunto com as organizações representativas dos trabalhadores, avaliar a situação e corrigir. O facto de ainda não existir em Portugal uma grande perceção sobre esta diretiva não ajuda a que a situação se resolva com celeridade. Há pouco falávamos em alteração do Código de Trabalho, uma das áreas em que eventualmente faz sentido é atuar no sentido de se garantir o mais rapidamente possível a transposição desta diretiva.
Ou seja, aproveitar a revisitação da lei do trabalho para incluir já esta diretiva.
Acho que era uma boa iniciativa, sem dúvida. Se houver uma alteração do Código de Trabalho…. Mais uma, já vamos em mais de 20 em 15 anos. Mais uma, então que tenha essa virtude de aproveitar o momento para trazer para a ordem jurídica portuguesa algo que já foi aprovado na União Europeia, e que é positivo para não só os trabalhadores, mas também para as empresas e para a sociedade.
Creio que as empresas ainda têm muito trabalho a fazer para se adaptarem à diretiva da transparência salarial.
Do que conhece, as empresas têm muito trabalho a fazer internamente para se ajustarem a estas novas regras ou nem por isso?
Creio que ainda têm muito trabalho a fazer. As empresas do setor empresarial do Estado e as cotadas na bolsa já têm algumas obrigações legais do ponto de vista de igualdade de género. Todas as outras não têm, e desconhecem o essencial. A diretiva impõe também que os Estados criem coimas em caso de violação destas regras. Portanto, há um trabalho que tem de ser feito pelas empresas, e quanto mais cedo elas anteciparem esse trabalho, melhor para todos.
Além da alteração da própria lei, parece que está a faltar algum esforço de consciencialização desses empregadores. A quem cabe fazer essa consciencialização?
Há duas entidades que têm competência nesta matéria: a Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego e a Comissão para a Igualdade. Têm feito várias campanhas de sensibilização, atribuindo prémios às empresas que são melhores do ponto de vista da igualdade retributiva. Mas isto é uma tarefa nunca acabada. Há uma consciencialização a fazer. Esta diretiva é mais uma oportunidade para que seja feita.
Do que já se vai ouvindo, que perspetiva tem em relação ao que o Governo quer fazer quanto ao mercado de trabalho? Que sentimento devem ter empregadores e trabalhadores?
Não me parece que vá haver intervenção legislativa nem no domínio das compensações por caducidade dos contratos de trabalho, nem no domínio das compensações em caso de despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho, muito menos ao nível do regime da justa causa. Acho que não haverá nada de disruptivo quanto a matérias muito estruturantes. É a minha expectativa. Existirão, sim, tentativas de atualizar o direito do trabalho. Não antevejo nenhuma revolução ou reforma profunda.
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“Não antevejo nenhuma revolução ou reforma profunda” da lei do trabalho
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