Ana Rita Duarte de Campos, sócia contratada da Abreu Advogados, analisou a Agenda Anticorrupção e considerou que o Ministério Público não tem o "monopólio da culpa" quanto ao estado atual da justiça.
Ana Rita Duarte de Campos, sócia contratada da Abreu Advogados, considerou que existe uma falta uma avaliação das medidas implementadas sequência da adoção da Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024 na Agenda Anticorrupção apresentada pelo Governo. Sobre a questão da perda de vantagens, assumiu que é uma medida que “carece de mais esclarecimentos”.
No que concerne às possíveis alterações da fase de instrução, a sócia contratada avançou que essa discussão teria uma melhor sede num programa transversal dirigido à justiça criminal. “Não faz sentido que essa questão seja colocada, a pretexto da celeridade, num programa dirigido à prevenção da corrupção”, disse.
A advogada considerou ainda que o Ministério Público não tem o “monopólio da culpa” quanto ao estado atual da justiça e que não se pode permitir que se crie a convicção de que há delações premiadas “a la carte”.
O que falta na Agenda anticorrupção apresentada pelo Governo?
Falta uma avaliação das medidas implementadas sequência da adoção da Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, patentes na Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro que, ao nível das leis penais e processuais penais, tocou em quase todos os pontos que o Relatório Técnico da Agenda Anticorrupção aborda. O mesmo se diga, em matéria preventiva, no que tange ao Regime Geral da Prevenção da Corrupção, veiculado pelo Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 9 de Dezembro. O Ministério da Justiça refere, no Relatório Técnico da Agenda Anticorrupção que fará essa avaliação até 30 de novembro do ano em curso, na sequência de uma disposição legal constante da Lei do Orçamento do Estado para 2024. Não há razão alguma para não ter feito essa avaliação que não sejam as dificuldades ao nível do funcionamento do MENAC, situação que não é apenas da responsabilidade do atual Governo, e que este, no referido documento e numa intervenção pública recente da senhora ministra da Justiça, se propõe corrigir, reforçando, inclusivamente, os respetivos poderes. Parece-me muito estranho que, sem prejuízo dessa dificuldade (o relatório de avaliação da Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024 previsto na Lei do Orçamento do Estado para 2024 era suposto ser elaborado pelo Governo, em colaboração com o MENAC) não se tenha feito um balanço daqueles dois conjuntos de medidas e, que ainda assim, se avance para alterar leis penais, num esforço que vai muito para além da questão da corrupção, e disso se faça uma bandeira. Note que não estou a desvalorizar a relevância da prevenção da corrupção ou a necessidade de afinação de mecanismos legais aplicáveis a alguns (não todos os referidos no Decreto-Lei n.º 109-E/2021) crimes corruptivos. Este, para mim, é o aspeto mais negativo de todo este processo e radica numa questão de método.
Mas deixe-me acrescentar ainda outro aspeto negativo: é evidente (basta ter acompanhado o processo de instalação do MENAC) que o Estado exigiu primeiro aos privados, para só depois, fora de todos os prazos, cumprir o que lhe incumbia. É curioso, de resto, que, no Relatório Técnico da Agenda Anticorrupção, se recorde, por exemplo, que, no setor público também devem ser elaborados (e implementados) planos de formação em matéria de prevenção da corrupção e infrações conexas, como o Governo exigiu às empresas privadas a partir de junho de 2022. Isso não foi nem um bom arranque nem um bom exemplo. Finalmente, a equiparação das sanções previstas para a infração às regras de prevenção do branqueamento às sanções previstas para a violação das regras de prevenção da corrupção e infrações conexas, que é apenas referida num parágrafo do Relatório Técnico, parece-me desajustada e desproporcional. Na prevenção do branqueamento, o que está em causa são, fundamentalmente, setores regulados, em função da exposição a um risco acrescido. No caso da prevenção da corrupção, o legislador (por ora) definiu um critério de aplicação a todas as organizações que empreguem 50 ou mais trabalhadores, independentemente dos riscos concretos, em matéria de corrupção, que a atividade que levem acabo ou a forma como se organizam possam gerar. Esta questão deve ser muito ponderada.
Não podemos permitir que se crie a convicção de que há delações premiadas a la carte. Todos os arguidos têm de ter os mesmos direitos perante o mesmo sistema de justiça e sem uma consequência processual clara na lei (e não uma mera possibilidade), que assegure essa igualdade e a justeza das decisões, estas iniciativas não passarão de letra morta.
Pontos positivos dessa mesma agenda?
Há imensos pontos positivos. Penso que é muito importante haver discussão pública, como houve em 2021. E o enfoque na prevenção é fundamental (e não é novo). A questão da digitalização dos processos, desde a fase de inquérito, é também fundamental. O tempo que perdemos com pedidos de cópias e, muitas vezes chegamos a julgamento, e, apesar das disposições da Portaria n.º 280/2013, de 3 de Agosto, que determinam que, a partir da remessa dos autos para julgamento, os atos processuais devem ser praticados via Citius, sucede muitas vezes que o processo não está, na sua totalidade, acessível por essa via, para consulta. A formação dos profissionais da justiça também é crucial.
O que necessita de ser esclarecido?
É preciso notar que se trata de uma Agenda, como bem referiu a senhora ministra da Justiça. Creio que a questão que carece de mais esclarecimento é a questão da perda de vantagens. Neste domínio, entendo que o propósito não tem sido inequívoco, desde o programa eleitoral da AD, onde se previa a consagração legal das Unexplained Wealth Orders. Posteriormente, em entrevista a um canal de televisão, a senhora ministra veio afirmar que a ideia era a de aplicar esse regime às situações em que não pode haver condenação criminal, algo que os tribunais já vêm reconhecendo (em meu entender, com uma visão excessivamente formalista, que aparta o lícito típico da conclusão sobre a responsabilidade criminal). Na Agenda Anticorrupção, vem esclarecer-se que será no domínio da perda alargada, prevista na Lei n.º 5/2002, de 5 de Janeiro, que a perda sem condenação será consagrada, acrescentando-se que tal poderá passar pela atenuação das regras probatórias, no que tange à configuração do ilícito típico e da proveniência das vantagens. Este é um ponto muito complexo e em que a estratégia do Governo não é clara. Indo por partes: aquando da apresentação do programa eleitoral da AD, inexistia a Diretiva (UE) 2024/1260, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Abril. Nessa Diretiva, a perda alargada, prevista no seu artigo 14.º, depende de condenação, em linha, de resto, com o que resulta do artigo 7.º, da Lei n.º 5/2002, de 5 de Janeiro. Ela designa-se perda alargada, porque se baseia numa presunção de proveniência ilícita de bens na titularidade do arguido ou de terceiros até três anos antes da constituição de arguido. É preciso deixar muito claro que, se for esse o caminho a seguir pelo Governo, estamos muito para além daquilo que a Diretiva (UE) 2024/1260 prevê. Para além disso, a perda alargada é uma medida excecional, que, no nosso ordenamento jurídico, tem sido aplicada a um catálogo crescente de infrações. Cumular uma situação de inversão do ónus da prova, quanto à proveniência dos bens, com a dispensa de condenação e com o recurso a “exigências probatórias inferiores às que vigoram no processo penal” (conforme consta da Agenda Anticorrupção) é uma combinação que, em meu entender, viola, pelo menos, o princípio da presunção de inocência, o direito a um processo justo e equitativo e o direito de propriedade. Note-se que qualquer destes direitos é reconhecido em diplomas internacionais, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a Cartados Direitos Fundamentais da União Europeia. E, por algum motivo a Diretiva (UE) 2024/1260 não foi no sentido de consagrar (deixando, de resto, uma ampla margem de conformação aos Estados-membros em matéria de reforço dos regimes de perda de vantagens) uma perda alargada nesse sentido.
Note-se que (apesar de eu ser muito crítica das conclusões que, por diversas vezes, o Tribunal Constitucional alcançou, no domínio da conformidade constitucional das soluções de perda alargada vertidas na Lei n.º 5/2002, de 5 de Janeiro, a proposta patente na Agenda Anticorrupção prescinde do binómio presunção de proveniência ilícita/condenação, acrescentando-lhe a atenuação de exigências probatórias, no que tange à identificação dos factos ilícitos típicos e à proveniência das vantagens. O equilíbrio, ainda que discutível, em que as pronúncias no sentido da constitucionalidade se tem respaldado deixam de valer com estas novas coordenadas.
A fase da instrução pode vir a sofrer alterações. Acha isso um bom sinal?
Penso que essa discussão teria a sua melhor sede num programa transversal dirigido à justiça criminal. Não faz sentido que essa questão seja colocada, a pretexto da celeridade, num programa dirigido à prevenção da corrupção. O mesmo se aplica às questões relacionadas com os efeitos e modos de subida dos recursos, onde se refere apenas que vão ser analisadas novas possibilidades de subida diferida e de efeito meramente devolutivo, bem como os efeitos dos recursos para o Tribunal Constitucional. Mas também não é a primeira vez que ouço isso. Aliás, em setembro de 2007, a instrução criminal foi praticamente erradicada. Penso que esta questão tem sido muito mal tratada no espaço público, sobretudo por alguns comentadores que não são juristas e que não percebem a importância da fase de instrução. Uma coisa lhe garanto: esvaziar ainda mais a instrução, implicará, necessariamente, mais absolvições. Por outro lado, o pretexto de que a instrução não pode ser uma antecipação do julgamento é, a meu ver, uma frase batida que se foi sedimentando no espaço público, a propósito de um ou de dois casos concretos. A instrução e o seu âmbito dependem muito da forma como essa fase processual é requerida. Ela está limitada, no seu âmbito, aos factos sobre os quais o despacho final de inquérito foi proferido e ao âmbito da investigação. Com as regras que temos, a sindicância que é requerida ao despacho final de inquérito (com a limitação que já assinalei) é livremente conformada por quem a requer. O que pode suceder é que, no domínio probatório, o Juiz de Instrução Criminal indefira a produção de prova que seja contrária às finalidades da instrução, já tenha sido produzida em fase de inquérito (com a excepção do interrogatório de arguido) ou ultrapasse o limiar indiciário. Todas estas decisões do juiz de instrução criminal são irrecorríveis. Agora, se a ideia foi colocar na lei que há mais limitações ao âmbito possível da fase de instrução (estou a falar apenas de objecto do processo), creio que podemos vir a ter aqui um problema de violação do princípio do acusatório e das garantias de defesa.
Volta a estar em cima da mesa a ideia da justiça premial. Estamos a ir por um caminho perigoso?
Neste domínio, creio que o Relatório Técnico vai a um nível de detalhe ao qual não chega noutros domínios. O que está nesse documento não permite, em meu entender, alterar a circunstância de, na prática, não haver suspensões provisórias (que é uma solução de consenso, portanto, não premial na sua consagração original, mas que poderá ter características premiais nos casos de crimes corruptivos, como, por exemplo, sucede com os Deferred Prosecution Agreements no Reino Unido) de processos por corrupção (apesar de previstas na Lei desde 1994) ou a circunstância de todos os mecanismos premiais previstos até agora não terem saído da letra da lei. Neste domínio, entendo que as regras têm de ser claras e que temos de perceber que os mecanismos premiais não isentam a investigação de prosseguir ou os julgamentos de terem lugar. Não podemos permitir que se crie a convicção de que há delações premiadas a la carte. Todos os arguidos têm de ter os mesmos direitos perante o mesmo sistema de justiça e sem uma consequência processual clara na lei (e não uma mera possibilidade), que assegure essa igualdade e a justeza das decisões, estas iniciativas não passarão de letra morta. Neste capítulo, infelizmente, e depois do que se passou na sequência da operação Lavajato, os tempos não estão favoráveis a uma discussão descomplexada e séria. Penso que, neste capítulo, ficaremos na mesma. Por outro lado, num País em que a generalidade das pessoas que é sancionada com multa criminal ou que vê suspenso provisoriamente um processo acredita que não teve uma sanção criminal, eu diria que estamos a anos-luz do ponto em que poderíamos equacionar aprofundar este tipo de mecanismos.
Penso que é preciso que certas coisas melhorem, mas que o Ministério Público não tem o monopólio da culpa quanto ao estado atual da justiça. E eu, sinceramente, gostava muito de ouvir falar sobre isto tudo, porque é muito pouco falar apenas da corrupção e de umas medidas transversais avulsas tendentes a encurtar garantias, sob a bandeira da celerada celeridade.
A AD e o PS devem estar alinhados nas soluções para a Justiça?
Eu espero que sim. E que não cedam a populismos. É uma matéria onde tem sido muito difícil haver convergência. Mas tem havido um problema maior na justiça: poucos governos a julgaram prioritária. E isto, da minha perspetiva, é incompreensível e grave. Esperemos que as coisas mudem.
Que perfil deverá ter o próximo PGR?
Essa é a pergunta mais difícil que me coloca. Hoje em dia, o espaço público é muito exigente, porque há escrutínio 24 horas por dia, nos media, nas redes sociais. Essa exigência soma-se à dificuldade inerente ao desempenho do cargo, ao cumprimento das regras e à capacidade de liderar uma magistratura hierarquizada, que, neste momento, está sob fogo cerrado. Espero que seja uma pessoa respeitada pelo setor da Justiça, que aguente a exposição mediática se tiver de a enfrentar e que não tenha medo. Há muito poucas pessoas com este perfil. E todo o caso, as pessoas fazem os cargos, não o inverso.
A autonomia do MP é uma ‘desculpa’ da magistratura para não prestarem contas?
Correndo o risco da excessiva simplicidade, dada a complexidade da questão (basta, de resto, ler os Pareceres Consultivos da Procuradoria Geral da República), poderia dizer que a autonomia, de acordo com a Constituição, se verifica nas relações externas do Ministério Público. Nas relações internas, há hierarquia e o Ministério Público deve funcionar como um corpo único. É o modelo que temos, que me parece um pouco desfasado da realidade, quando deparamos com procuradores a agirem como se fossem partes no processo. Esta questão é mais funda e espero que um dia haja serenidade para que a mesma seja debatida, no sentido de avaliarmos este modelo de Ministério Público. Na conceção constitucional, o Ministério Público é autónomo e presta contas. Dentro da hierarquia, nos tribunais e perante o seu Conselho Superior. Nunca me ouvirão dizer que o Ministério Público deve prestar contas ao poder político. Infelizmente, creio que é isso que muitos, no espaço público, querem.
São necessárias alterações legislativas para repor o poder hierárquico do MP?
Não. O que é necessário é que, na prática, esse poder seja exercido.
A ministra disse que será necessária uma nova era para o MP. Concorda?
Disse isso e mais coisas. Entretanto, a senhora procuradora da República, que vai jubilar-se, deu uma entrevista, na noite de dia 8 de julho, onde respondeu àquilo que entendeu terem sido críticas incompreensíveis e injustificadas da senhora ministra da Justiça, no que tange ao perfil do próximo procurador-geral da República. Espero que este clima de crispação passe, que haja uma comunicação efetiva e clara com o público e entre o que costuma chamar-se os “operadores judiciários”, respeitando a função de cada um. Repare que a senhora ministra da Justiça, podendo ter influência, não decidirá quem será o próximo procurador-geral da República nem como o Ministério Público deve funcionar (a não ser do ponto de vista dos recursos financeiros, considerando como têm vindo a ser gizados os autossuficientes orçamentos para a justiça, algo que diz bem da prioridade que tem vindo a ser reconhecida ao sistema de justiça). Penso que é preciso que certas coisas melhorem, mas que o Ministério Público não tem o monopólio da culpa quanto ao estado atual da justiça. E eu, sinceramente, gostava muito de ouvir falar sobre isto tudo, porque é muito pouco falar apenas da corrupção e de umas medidas transversais avulsas tendentes a encurtar garantias, sob a bandeira da celerada celeridade. É preciso investir na formação dos agentes da justiça (muito bem enfatizado na Agenda Anticorrupção), numa altura e que o ensino universitário na área do Direito enfrenta imensas dificuldades, das quais destaco o declínio vincado na qualidade da formação dos juristas. Gostava de ouvir falar sobre a pouca atratividade das magistraturas para os melhores estudantes de Direito. Gostava de ouvir falar de tudo isto. Talvez todos os operadores judiciários precisem de uma nova era e de alguma autocrítica, não podendo também, como dizem os espanhóis, ter a pele demasiado fina a críticas vindas dos “outros”.
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“Tem havido um problema maior na justiça: poucos governos a julgaram prioritária”
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