Da ‘Cheringonça’ às autorizações legislativas. 100 dias de braço de ferro entre Governo e Parlamento
Governo respondeu às derrotas na Assembleia da República e às "coligações negativa" do PS-Chega, esquivando-se do Parlamento e apresentando poucos projetos-lei nos primeiros 100 dias de governação.
O mote para a vida parlamentar difícil que o Governo minoritário da Aliança Democrática iria enfrentar foi dado por duas moções de rejeição apresentadas pelo Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista (PCP), que o PS ajudou a inviabilizar. A partir daí seguiu-se uma luta por protagonismo político, com PS e Chega a formarem uma “Cheringonça” para mudar legislação da AD ou aprovar diplomas indesejados pelo Executivo. Para “driblar” a Assembleia, a estratégia passou por poucas leis e pedidos de autorização legislativa.
No site da Assembleia da República, contam-se pelos dedos as propostas de lei que deram entrada desde de que o Governo iniciou funções: seis. Dessas, três são pedidos de autorização legislativa, uma “estratégia de sobrevivência política para fazer vingar o plano que o Governo tem previsto”, diz Paula Espírito Santo, investigadora no Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP). A solução foi inspirada no modelo de governação de Cavaco de 1985, que, na prática, finta a negociação parlamentar para impedir que os deputados forcem a aprovação de projetos da oposição, como aconteceu com o IRS.
São elas: a alteração do IRS Jovem; a isenção de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) e Imposto do Selo (IS) a compra de habitação própria e permanente por jovens até aos 35 anos — que fazem parte do pacote de medidas para a juventude — e a revogação a taxa sobre o Alojamento Local, medida do plano Mais Habitação do anterior executivo socialista.
Ainda dentro do pacote da habitação, somam-se outras duas: a revogação do regime de arrendamento forçado às habitações devolutas, também com o carimbo de António Costa, e a revogação do coeficiente de vetustez aplicável aos estabelecimentos afetos à atividade de alojamento local para efeitos da liquidação do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI).
Fora isso, o Governo viu o Parlamento aprovar, na generalidade, na especialidade e na votação final global, o novo regime de incentivos fiscais para o mercado de capitais no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), da União Europeia.
Quanto às propostas de lei aprovadas pelos deputados no hemiciclo, estas também se traduzem em meia dúzia, sendo que a maioria tem a assinatura do PS: a alteração do IRS e o alargamento do IVA reduzido na eletricidade – ambas viabilizadas graças à abstenção do Chega –; o fim das portagens nas ex-Scut – apoiada pelos votos a favor da esquerda e do Chega –; e o alargamento da dedução de despesas com habitação em sede de IRS – com os votos contra do PSD e CDS.
“O Chega tem interesse em viabilizar certas propostas porque se pautam pela sua agenda por isso Ventura acaba por dar o braço a torcer”, acrescenta Paulo Duarte, investigador e doutorado em Ciência Política pela Universidade do Minho, que recomenda que o Governo “volte atrás no ‘não é não'” numa altura em que se aproxima a votação para o Orçamento do Estado de 2025. “O Governo não deve excluir ninguém”, recomenda.
Já o PSD, propôs ao Parlamento uma alteração no regime jurídico das comissões de inquérito, medida que foi subscrita por todos os partidos. Por seu turno, o CDS-PP não conseguiu ver aprovada nenhuma das suas propostas.
Os principais diplomas aprovados “contra” o Governo
“Não nos vamos esquecer que a diferença entre o PS e PSD e CDS é de um deputado. Há um equilíbrio de forças políticas e portanto os partidos vão querer fazer vingar os seus objetivos programáticos e promessas eleitorais”, aponta Paula Espírito Santo.
A aprovação de medidas socialistas de peso e num curto espaço de tempo, incentivou o PSD a demarcar-se dos impactos que as propostas teriam nas contas públicas com o lançamento de um site no qual ficará discriminado os custos orçamentais de todas as medidas aprovadas na Assembleia da República – isto depois de Miranda Sarmento ter alertado que o anterior Governo não terá deixado ano novo Executivo um excedente orçamental, tal como tinha sido prometido pelo antecessor, Fernando Medina.
A maior derrota
O primeiro confronto, ainda antes da tomada de posse do Governo (Luís Montenegro ainda se sentava na bancada do PSD) foi durante a votação para a mesa da Assembleia da República. O primeiro teste ao “não é não” de Luís Montenegro ao Chega.
“Na política é importante que se evite estas chantagens e ultimatos porque não caem bem no eleitor. Devem ser evitadas e é preciso que do lado de Ventura não se abane esta postura radical que tem porque não ajuda”, diz Paulo Duarte.
A votação apenas ficou concretizada à quarta tentativa pois, e de acordo com André Ventura, o PSD tenha firmado um acordo com aquele partido para que os nomes propostos – um deles o de José Aguiar Branco – passassem logo à primeira, sem que fossem precisos os votos do PS (que, naturalmente, votaria contra). Mas tal não aconteceu e o PSD foi ao chão. No final, os socialistas foram chamados para salvar a votação uma vez que a bancada laranja rapidamente percebeu que com o Chega não podia contar. No final, nasceu um acordo que espelha a realidade europeia: uma presidência governada a meias. Primeiro pelo PSD e depois pelo PS (embora ainda não se saiba quem dos socialistas presidirá à Assembleia da República em 2026).
Mais tarde, chegou a primeira derrota para a AD no Parlamento, com o IRS. Primeiro, porque o ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, desvendou que o valor da proposta de redução do IRS do Governo da AD seria, afinal, de 200 milhões de euros ao invés dos 1.500 milhões, uma vez que o orçamento para 2024 já previa uma redução de 1.327 milhões de euros.
“Foi o momento que mais fragilizou o Governo e foi logo no início”, aponta Paula Espírito Santo, sublinhando que revelou uma “incapacidade de afirmação do ponto de vista governativo”. “Foi um erro de fundo que veio do programa eleitoral e que nunca foi explicado até àquele momento. Mas agora até pode passar despercebido dentro do leque das medidas que surgiram entretanto”, diz a investigadora.
O levantar do véu sobre o custo real da medida espoletou um mês de violentas críticas contra o Executivo, e as pressões não se ficaram por aqui. No Parlamento, a proposta do Executivo para o IRS não tinha margem para ser viabilizada, e mesmo com a substituição da proposta por uma do PSD, esta foi sendo sucessivamente adiada numa tentativa de chegar a consenso com os partidos da oposição, mas tal nunca aconteceu. A medida dos sociais-democratas foi chumbada na especialidade, morrendo na praia.
Ainda assim, o Governo mantém-se fiel à sua proposta mantendo-a inscrita nas Grandes Opções do Plano (GOP) 2024-2028 que enviou à Assembleia da República, na semana passada.
A derrota deixou um sabor amargo na boca do Governo, e nem a luz verde a mais dois diplomas do Executivo no âmbito do IRS – um que prevê criação de um mecanismo de atualização dos limites dos escalões de rendimento tendo em conta a inflação e a produtividade, e outro que determina a extensão do alargamento da dedução de encargos com juros de dívidas contraídas no âmbito de contratos de crédito à habitação – serviu para atenuar o golpe. Sobretudo porque o PS viu, em alternativa, a sua proposta para a redução do IRS ser aprovada com a ajuda da esquerda e da abstenção do Chega – o início de sucessivas “coligações negativas” no Parlamento.
“Tudo o que seja matérias de tributação é complicado e obviamente cada um dos partidos — sobretudo o do Governo e do PS — quiseram marcar a sua posição e não abdicar dela”, aponta Paulo Duarte.
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