“Não creio que a autonomia do Ministério Público seja uma desculpa para a não prestação de contas”

A sócia da Antas da Cunha Ecija, Alexandra Mota Gomes, considera que a Agenda Anticorrupção projeta um conjunto de medidas que criaram "mais dúvidas do que certezas".

Alexandra Mota Gomes, sócia da área de Direito Penal, Contraordenacional e Compliance da Antas da Cunha Ecija, considera que a Agenda Anticorrupção projeta um conjunto de medidas que criaram “mais dúvidas do que certezas”. Sublinha ainda que algumas das medidas encontram-se na fronteira entre o “reforço da eficácia do combate à corrupção” e a “violação dos direitos fundamentais dos cidadãos”.

Assim, defende que as medidas apresentadas são “meras intenções” que carecem de concretização em sede legislativa, “para a sua eficácia e boa aplicação prática”. Sobre a redução da fase de instrução, alerta que, “sem uma ponderação rigorosa”, é “atentatória” da estrutura ou modelo do processo penal português.

A advogada não acredita que a autonomia do Ministério Público (MP) seja uma “desculpa” para a não prestação de contas, sendo antes uma forma de garantia da sua independência e isenção. Para Alexandra Mota Gomes, o MP tem acima de tudo falta de meios materiais e humanos para desenvolver uma “investigação de qualidade”.

O que falta na Agenda Anticorrupção apresentada pelo Governo?

O novo programa aprovado pelo Governo conta com 32 medidas divididas em quatro pilares: prevenção, punição efetiva, celeridade processual e proteção do setor público.

Pese embora as medidas propostas sejam, na sua generalidade, positivas no combate aos fenómenos corruptivos, certo é que são também bastante ambiciosas, não se alcançando de que forma é que algumas das medidas serão efetivamente concretizadas.

Em matéria de prevenção, as medidas restringem-se ao Estado e demais entidades públicas. Neste ponto em concreto, considero que a Agenda Anticorrupção peca por omissão, ignorando a necessidade de concretização e efetivação das medidas e/ou obrigações previstas no Regime Geral da Prevenção da Corrupção aplicáveis tanto a entidades públicas, como privadas.

No âmbito do pilar da punição, a Agenda Anticorrupção é também totalmente omissa quanto à necessidade de reforço e concretização das possibilidades de exclusão da responsabilidade das pessoas coletivas e/ou a atenuação das penas aplicáveis, quando se demonstre a efetiva adoção e implementação dos Programas de Cumprimento Normativo, medida que poderia trazer também grandes vantagens no âmbito da prevenção.

O Governo pretende, ainda, rever o regime dos recursos quanto aos efeitos e ao momento de subida. Compreende-se que esta medida visa combater a morosidade instalada. No entanto, a sua concretização poderá colocar em causa a confiança no sistema judicial.

Considero que, neste âmbito, o Governo deveria assegurar, por exemplo, a possibilidade de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, desde que o recurso não tenha efeito suspensivo, salvaguardando, assim, os direitos de defesa do arguido.

Por fim, destaco, ainda, que, pese embora a publicitação do acervo de decisões judiciais, incluindo as decisões proferidas em sede de primeira instância, seja um grande passo para combater a falta de transparência das decisões judiciais e da justiça no seu todo, esta publicitação não devia aplicar-se somente a decisões proferidas “em matéria de corrupção”, devendo estender-se a todas as decisões proferidas nos processos criminais.

As medidas apresentadas pelo Governo são, ainda, meras “intenções” que carecem de concretização em sede legislativa, para a sua eficácia e boa aplicação prática.

Alexandra Mota Gomes

Sócia da Antas da Cunha Ecija

Pontos positivos dessa mesma agenda?

Como pontos positivos, destaco, desde logo, a introdução, pelo Governo, de medidas de caráter punitivo, tais como: (i) elevar o valor das coimas no caso de incumprimento das regras de prevenção da corrupção, equiparando-as às previstas na legislação de prevenção do branqueamento de capitais; (ii) reforçar a proteção dos denunciantes, quando estejam em causa processos judiciais retaliatórios e infundados; e (iii) facilitar a denúncia, através de um formulário disponibilizado no Portal do Governo, único para todo o Governo.

Destaco, ainda, a aposta em ferramentas tecnológicas que agilizem o tratamento da prova, seja ao nível da análise e indexação, seja ao nível da extração de prova digital, que permitirá contribuir para a celeridade e eficácia da própria investigação, bem como a desmaterialização dos processos logo na fase do inquérito, que contribuirá para a simplificação dos procedimentos subjacentes a esta fase processual, e que permitirá reduzir os prazos de duração do inquérito.

Ao nível da proteção do setor público, destaco a criação de um programa de formação avançada para funcionários envolvidos em processos de contratação pública, para deteção e proteção face a práticas corruptivas. Esta medida poderá inclusivamente servir de exemplo e auxiliar as entidades privadas a dotarem os seus programas formativos de conteúdos semelhantes.

Por fim, destaco, também, o objetivo do Governo em regulamentar a atividade do lobby, com o intuito de acabar com práticas ilícitas, como o tráfico de influências ou outros atos corruptivos que, por diversas vezes, se confundem com o próprio lobby.

O que necessita de ser esclarecido?

As medidas apresentadas pelo Governo são, ainda, meras “intenções” que carecem de concretização em sede legislativa, para a sua eficácia e boa aplicação prática.

Desde logo, seria importante esclarecer se a redefinição da estrutura do Mecanismo Nacional Anticorrupção não irá originar um maior retardamento da fiscalização do cumprimento das normas e garantias legais no âmbito da proteção do denunciante.

Em matéria de punição, a proposta que gerará maior controvérsia é a criação de um “novo paradigma de Perda Alargada de Bens a favor do Estado”.

A perda alargada de bens assenta numa presunção de que todos os bens que integram o património do arguido, e que excedem os rendimentos por si declarados, têm proveniência ilícita e, por isso, poderão ser arrestados, num primeiro momento e, num segundo momento, declarados perdidos a favor do Estado.

A natureza jurídica desta medida é, atualmente, muito controversa, por impor um ónus de prova ao arguido, que se vê forçado a demonstrar a origem lícita do seu património, e beneficiar o Ministério Público com uma presunção legal. A imposição sobre o arguido deste ónus é bastante penosa, numa fase do processo em que a presunção da inocência tem maior incidência, salvaguardando e protegendo os direitos das suspeitas.

Se o objetivo desta medida passa por evitar a dissipação dos bens e demonstrar que o crime não compensa, também é evidente que coloca em causa princípios e direitos constitucionais, tais como a presunção da inocência (artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa – CRP), o direito de propriedade privada (artigo 62.º, CRP) e a proibição da autoincriminação.

O referido novo “paradigma” suscita ainda muitas questões que deverão ser esclarecidas: afinal, o que acontece se a pessoa for absolvida? Há uma perda definitiva dos bens, mesmo sem juízo de culpa? O alargamento dos crimes de catálogo será constitucionalmente legítimo?

Considero que a Agenda Anticorrupção projeta um conjunto de medidas que criaram mais dúvidas do que certezas. Algumas destas medidas encontram-se na fronteira entre o reforço da eficácia do combate à corrupção e a violação dos direitos fundamentais dos cidadãos, que não podem deixar de ser acautelados.

Alexandra Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha ECIJA

A fase da instrução pode vir a sofrer alterações. Acha isso um bom sinal?

A Agenda anticorrupção prevê a redução da amplitude da fase de instrução, através da diminuição de expedientes dilatórios.

A instrução é uma garantia processual facultativa, que possibilita ao arguido um meio antecipado de defesa. Trata-se, assim, do primeiro momento em que o arguido poderá exercer o contraditório face à acusação que contra ele é deduzida.

Não obstante existirem situações em que a instrução é utilizada com uma finalidade contrária à sua verdadeira natureza, existem hoje, especialmente na fase de instrução, vários mecanismos legais que permitem ao Tribunal evitar, ou pelo menos diluir, quaisquer expedientes dilatórios.

A redução da fase de instrução, sem uma ponderação rigorosa, é atentatória da estrutura ou modelo do processo penal português, e terá a virtualidade de restringir ainda mais esta fase processual, que é, em alguns casos, fundamental para corrigir erros de facto ou de direito que permitem evitar que um arguido seja injustamente submetido a julgamento.

Também existem casos em que a instrução é encarada pelos juízes como uma mera formalidade, onde os juízes se limitam a subscrever o despacho do ministério público (acusação ou arquivamento), demitindo-se de conhecer o processo, e onde se escusam da apreciação de questões essenciais (de facto ou direito), e recusam ou desconsideram a produção de elementos probatórios relevantes.

Com certeza que o mau uso do processo não pode deixar de ser sancionado. Porém, essa possibilidade não pode constituir uma justificação, por si só, para a alteração legislativa de uma das fases fundamentais do processo penal português.

Volta a estar em cima da mesa a ideia da justiça premial. Estamos a ir por um caminho perigoso?

O direito premial consiste num instituto jurídico que estabelece a atribuição de prémios, como recompensa, a quem colaborar no sentido de denunciar pessoas ou factos relevantes para o prosseguimento da investigação criminal em curso.

No âmbito da obtenção de prova, a Agenda Anticorrupção prevê o reforço de aplicação do direito premial, que, segundo o anunciado, assentará no alargamento do catálogo de crimes, bem como das fases processuais onde a colaboração premiada pode operar.

Embora o sistema estabelecido no Código de Processo Penal seja passível de críticas, tanto em relação à sua forma, quanto à sua efetividade, a expansão deste para abranger outros tipos de delitos ou a autorização para sua implementação em diversas fases do processo penal deve ser considerada com extrema prudência. Tal abordagem é necessária para evitar a trivialização do que deveria ser considerado exceção, e para prevenir a ameaça aos princípios constitucionais e processuais que devem ser inalteráveis.

Era preferível a criação de um regime de colaboração bem estruturado e definido na lei, em vez de se promover um alargamento dos crimes abrangidos por esta medida e a sua proliferação pelas diferentes fases processuais.

A redução da fase de instrução, sem uma ponderação rigorosa, é atentatória da estrutura ou modelo do processo penal português, e terá a virtualidade de restringir ainda mais esta fase processual.

Alexandra Mota Gomes

Sócia da Antas da Cunha Ecija

A AD e o PS devem estar alinhados nas soluções para a Justiça?

Qualquer solução para a justiça só será eficaz se advier do diálogo alargado a todas as representações parlamentares, reunindo o maior consenso possível de ser alcançado. Obviamente que a AD e o PS, dada a sua representatividade, devem estar alinhados nas soluções para a justiça.

Identificados os principais problemas, as medidas concretas a adotar, não podem deixar de resultar do consenso entre as principais forças partidárias, que olhe para a justiça no seu todo e que seja capaz de alterar o atual paradigma.

Que perfil deverá ter o próximo PGR?

O próximo Procurador-Geral da República deve guiar-se por uma política de transparência e de promoção da credibilidade e da confiança pública no Ministério Público, que, lamentavelmente, se tem vindo a perder nos últimos anos.

O próximo Procurador-Geral da República deve, ainda, pugnar pela garantia da autonomia do Ministério Público face ao poder político, e reclamar e promover a implementação dos meios técnicos e humanos de que a investigação criminal tanto carece, sempre guiado por estritos critérios de objetividade e legalidade.

A autonomia do MP é uma ‘desculpa’ da magistratura para não prestarem contas?

Não creio que a autonomia do Ministério Público seja uma desculpa para a não prestação de contas. A autonomia desta magistratura ou da magistratura judicial é, ao invés, uma forma de garantia da sua independência e isenção, concretizando o princípio iluminista da separação dos poderes.

Não obstante se encontrar legalmente previsto o acesso, pelo público e pelos órgãos de comunicação social, à informação relativa à atividade do Ministério Público, não se pode ignorar, como muitas vezes acontece, que, atenta a necessidade de salvaguardar o segredo de justiça e os interesses da investigação, a prestação de contas pelo Ministério Público nunca poderá ser ilimitada.

O Ministério Público tem, acima de tudo, falta de meios, quer materiais, quer humanos, para desenvolver uma investigação de qualidade, o que afeta não só na qualidade das decisões, como constitui, a meu ver, uma das principais causas da morosidade do processo criminal.

Alexandra Mota Gomes

Sócia da Antas da Cunha Ecija

São necessárias alterações legislativas para repor o poder hierárquico do MP?

O Ministério Público tem, acima de tudo, falta de meios, quer materiais, quer humanos, para desenvolver uma investigação de qualidade, o que afeta não só na qualidade das decisões, como constitui, a meu ver, uma das principais causas da morosidade do processo criminal.

Para combater esta carência, tem de existir um investimento do Estado na justiça. As alterações legislativas, por mais bem-intencionadas que sejam, não resolvem a carência sistemática que se observa tanto no Ministério Público, como nos Tribunais.

Qualquer alteração legislativa quanto aos poderes de atuação do Ministério Público, não trará consigo a virtualidade de combater a morosidade processual ou de demonstrar e afirmar a hierarquia e a responsabilidade disciplinar do Ministério Público.

A ministra disse que será necessária uma nova era para o MP. Concorda?

Concordo. É necessário existir uma transformação no atual funcionamento da justiça no nosso país, tanto no que respeita à obtenção de meios necessários para combater a morosidade dos processos, como no que concerne à implementação de medidas que reforcem o sistema judiciário, entre as quais a

Para tal, o Ministério Público tem de atuar de forma transparente, tomando as providências necessárias para garantir a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais dos seus cidadãos, e para impedir situações em que existe violação do segredo de justiça, ou em que a reserva da vida privada é posta em causa por escutas que são tornadas públicas – situações que, atualmente, prejudicam profundamente a imagem da justiça.

É, portanto, imprescindível existir um novo ciclo que contribua para a dignificação da justiça e aumentar a credibilidade do sistema judiciário em Portugal, levando os cidadãos a confiar no bom funcionamento da justiça.

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