Miguel Pereira Coutinho, advogado da Cuatrecasas, admite que faltam ainda muitos detalhes nas medidas da Agenda Anticorrupção ao nível da repressão.
O advogado da área de Penal da Cuatrecasas, Miguel Pereira Coutinho, destaca como o ponto mais positivo da Agenda Anticorrupção que não se tenham centrado apenas em alterações ao Código Penal e ao Código de Processo Penal. Quanto às medidas ao nível da repressão, admite que faltam ainda muitos detalhes, sobretudo quanto à instituição de novos mecanismos de perda alargada de bens.
Para o advogado, acabar com a fase de instrução “não pode ser uma opção”. Apesar de ver com “bons olhos” que se procure evitar que a fase de instrução se torne num pré-julgamento, considera que a solução não está “tanto na necessidade de se alterar a lei”, mas “mais na forma como a mesma, por vezes, acaba por ser aplicada”.
Sobre o perfil do próximo procurador-geral da República, não concorda que deva ser alguém fora do Ministério Público e que deverá ter alguma “sensibilidade”, com particulares preocupações no domínio da comunicação.
O que falta na Agenda anticorrupção apresentada pelo Governo?
Como sabemos, os membros do Governo devem, no prazo de 60 dias após o início de funções, entregar uma declaração de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos, junto do Tribunal Constitucional. Entretanto, em janeiro de 2023, o anterior Governo instituiu a obrigação de preenchimento de um questionário para que, aquando da sua nomeação, cada candidato respondesse a perguntas sobre antecedentes criminais e eventuais situações de conflito de interesse. No entanto, as respostas dadas são secretas e sem que algum controlo seja feito por alguma entidade, no sentido de confirmar se o que é respondido corresponde, ou não, à verdade. O que equivale a dizer que, no fundo, nenhum escrutínio é feito em momento anterior à tomada de posse, o que faz com que se corra o risco de, como sabemos, mais tarde se venha a descobrir situações e relações que, tivessem sido apuradas atempadamente, poupariam alguns embaraços ao Governo. Pese embora as recomendações dirigidas GRECO nessa matéria, noto que, no plano da prevenção, esta Agenda anticorrupção nenhuma medida refere no sentido de que essa verificação prévia de idoneidade se realize.
Pontos positivos dessa mesma agenda?
O ponto mais positivo é que a agenda anticorrupção não se tenha centrado, apenas, em alterações ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, focando-se unicamente no agravamento de penas ou na reformulação de tipos de crimes. Com efeito, o combate à corrupção faz-se sobretudo a nível da prevenção, com maior transparência, maior acesso à informação e no reforço de meios para fiscalização, procurando resolver os problemas de falta de operacionalidade de organismos como o MENAC e a Entidade para a Transparência. Noto com agrado a menção a várias propostas a respeito dessas matérias, para reforço da credibilidade das instituições.
O que necessita de ser esclarecido?
Quanto às medidas propostas a nível da repressão, faltam ainda muitos detalhes, sobretudo quanto à instituição de novos mecanismos de perda alargada de bens, já que se pretende que a mesma possa ser declarada “no final do processo ainda que este tenha concluído com um arquivamento ou absolvição”. Se pararmos para pensar que a perda alargada mais não é que a possibilidade de se declarar perdido a favor do Estado o chamado “património incongruente” do arguido, em que se presume que constitui vantagem da atividade criminosa não só o produto do crime, mas também todo o património que o arguido tenha e que não consiga justificar, rapidamente percebemos o descabido que poderá ser o facto de, havendo uma absolvição, se possa ainda assim permitir ao Estado ficar com todo esse património.
A fase da instrução pode vir a sofrer alterações. Acha isso um bom sinal?
É importante ter presente que a fase de instrução, enquanto meio de comprovação por parte de um juiz de instrução, independente, da decisão do Ministério Público de submeter ou não um arguido a julgamento, é uma decorrência do direito fundamental ao chamado due process of law, ou seja, do direito a um processo justo e equitativo. Assim, acabar com a fase de instrução não pode ser uma opção. Vejo com bons olhos que se procure evitar que a fase de instrução se torne num pré-julgamento, mas para ser sincero, a solução não está tanto na necessidade de se alterar a lei, que me parece ser já bastante clara, mas mais na forma como a mesma, por vezes, acaba por ser aplicada.
A democracia portuguesa, se se quer madura, o que deve decidir é se quer evoluir, em vez de regredir.
Volta a estar em cima da mesa a ideia da justiça premial. Estamos a ir por um caminho perigoso?
Antes de introduzir alterações nesta matéria, talvez fosse uma ideia ver, primeiro, se as medidas que têm vindo a ser implementadas nesta matéria se têm relevado, ou não, eficazes. Em 2017, por exemplo, introduziram-se várias medidas deste tipo na lei relativa à corrupção no desporto, com possibilidade de dispensa de pena se um dos visados colaborasse com as autoridades ou denunciasse os crimes cometidos. Sete anos mais tarde, temos algum exemplo que nos permita concluir que estas novidades serviram para alterar alguma coisa? É que se, na prática, nada mudou, talvez a solução possa ser outra.
A AD e o PS devem estar alinhados nas soluções para a Justiça?
Preferencialmente, todos os partidos com representação parlamentar deverão estar envolvidos nesta discussão, não só a AD e o PS. Dada a importância do tema, a preocupação não deve ser que as alterações legislativas sejam aprovadas pela maioria necessária no parlamento.
Que perfil deverá ter o próximo PGR?
Não concordo que o próximo PGR deva ser alguém de fora do Ministério Público. Só com um grande conhecimento de como essa magistratura funciona por dentro e se relaciona na prática com as várias entidades se pode desempenhar a função com eficiência e eficácia. Contudo, dada também a dimensão política do cargo, e a relevância da sua atuação a nível da opinião pública, julgo que a pessoa a designar deverá igualmente possuir alguma sensibilidade a esse respeito, com particulares preocupações no domínio da comunicação, em vez de se tratar de um mero tecnocrata.
A autonomia do MP é uma ‘desculpa’ da magistratura para não prestarem contas?
Autonomia do Ministério Público significa que os seus magistrados apenas se encontram sujeitos a instruções e orientações transmitidas no quadro da sua hierarquia. Sendo que se trata, aliás, de um princípio fundamental consagrado na Constituição e que deve ser respeitado. Não vejo, pois, que se trate de uma desculpa para que não prestem contas, até porque devem fazê-lo, embora diante dos seus superiores hierárquicos. Ainda quanto a este ponto, chamo a atenção de que, nos relatórios do GRECO, se tem vindo repetidamente a alertar para a necessidade de que os conselhos superiores de magistratura e do Ministério Público mantenham uma maioria de membros eleitos pelos seus pares, precisamente para limitar ingerências a nível do exercício das funções de magistratura, pelo que há que ter particular cuidado com propostas de alteração promovidas a esse respeito.
Já quanto a específicas tomadas de posição e decisões em determinados processos, e que por vezes acabam por causar incompreensão ou talvez indignação, noto que o facto de, em processo penal, os pedidos de escutas telefónicas, buscas domiciliárias, acessos a emails ou prisões preventivas dependerem de validação por parte do juiz de instrução criminal é, em si mesmo, uma prova que existe um sistema de checks and balances implementado. E que, bem ou mal, até produz efeitos, como se comprova por decisões tomadas em recentes processos mediáticos.
A democracia portuguesa, se se quer madura, o que deve decidir é se quer evoluir, em vez de regredir. Há linhas muito ténues, e que têm tendências para resvalos, quando se começa a fazer sobre a necessidade de maior controlo e limitação à atividade do Ministério Público.
O Ministério Público deve repensar a sua política de comunicação. Não só para que a opinião pública possa exercer escrutínio, mas também para uma maior pedagogia, designadamente junto da comunicação social, para esclarecimento de dúvidas e para que não seja alimentada a especulação.
São necessárias alterações legislativas para repor o poder hierárquico do MP?
A definição da estrutura hierárquica do Ministério Público, bem como o modo do seu funcionamento, encontram-se já bem definidas no respetivo estatuto. O problema que existe não é a lei não ser clara, ou precisar de ser alterada, mas o facto de, na prática, o referido peso da hierarquia não se fazer sentir. E não só para dirigir orientações e instruções, mas também para dar a cara e assumir responsabilidades.
A ministra disse que será necessária uma nova era para o MP. Concorda?
Antes de mais, o Ministério Público deve repensar a sua política de comunicação. Não só para que a opinião pública possa exercer escrutínio, mas também para uma maior pedagogia, designadamente junto da comunicação social, para esclarecimento de dúvidas e para que não seja alimentada a especulação. Maior proximidade e transparência para maior legitimação. Caso contrário, o que continuaremos a ter é um Ministério Público encapsulado numa espécie de torre de marfim, cercada de comentadores e adivinhos.
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“Acabar com a fase de instrução não pode ser uma opção”
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