No dia 30 de julho de 2014, o BES anunciou prejuízos superiores a 3,5 mil milhões de euros. Mas como um banco perdeu tanto dinheiro em apenas seis meses, colocando-se entre a vida e a morte?
“Os portugueses podem confiar no Banco Espírito Santo, dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem à parte não financeira, mesmo na situação mais adversa.” No dia 21 de julho de 2014, o então Presidente da República Cavaco Silva encontrava-se de visita à Coreia do Sul quando tentou transmitir uma mensagem de tranquilidade em relação aos problemas em torno do banco. Mal sabia que estas palavras, proferidas do outro lado do mundo, o iriam perseguir dez anos depois.
Por aquela altura, a espiral de turbulência sacudia o BES e não estava a assustar apenas os investidores. Também os depositantes tinham receio de perder as suas poupanças. A autópsia à queda do BES viria a mostrar que mais de seis mil milhões de euros em depósitos fugiram dos seus cofres só naquele mês. Mas não foi por isso que o banco colapsaria poucos dias depois das declarações de Cavaco Silva.
Há precisamente dez anos, no dia 30 de julho de 2014, a instituição anunciou prejuízos históricos de 3,5 mil milhões de euros, perdas que desferiram um golpe tão profundo na sua estrutura de capital que não houve outra solução senão resolver o banco num fim de semana. Mas como é que o BES perdeu tanto dinheiro em apenas seis meses?
Este é o quarto e penúltimo episódio da série “O fim do BES, dez anos depois”, o podcast do ECO sobre os cinco dias que contam os momentos finais do BES até à derradeira medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal, a 3 de agosto de 2014.
ESI, Rio Forte e ESFG colapsam
Em julho de 2014, Portugal voltava a entrar no radar dos investidores internacionais pelas piores razões. Pouco tempo depois de ter concluído o programa de ajustamento da troika o país era novamente alvo da desconfiança dos mercados. Os juros da dívida pública subiam em flecha e a perceção de risco do país agravava-se de dia para dia, e tudo por conta dos problemas de um banco que ameaçavam a estabilidade de todo o sistema.
O fogo em torno do Grupo Espírito Santo tinha cercado completamente o BES e nem o novo CEO parecia conseguir controlar o incêndio. Vítor Bento contou na comissão de inquérito ao BES como foram vividos aqueles dias.
“Aqueles 15 dias do BES são muito complicados. Surge informação de todo o lado. (…) Há problemas que se vão revelando e tem de se ir investigar e têm de ser avaliados. Há contactos com investidores, há contactos com supervisores. Era um vaivém enormíssimo”, relatou.
A instabilidade estava a causar uma sangria nos depósitos. Todos os dias saíam dos cofres mais de 200 milhões de euros. Dois dias depois de Vítor Bento ter assumido o leme, o banco foi forçado a recorrer ao mecanismo de liquidez de emergência do Banco de Portugal. No final do mês, a exposição do supervisor bancário junto do BES ascenderia a 3,5 mil milhões de euros.
Mas as piores notícias ainda estavam para chegar.
Aqueles 15 dias do BES são muito complicados. Surge informação de todo o lado. (…) Há problemas que se vão revelando e tem de se ir investigar e têm de ser avaliados. Há contactos com investidores, há contactos com supervisores. Era um vaivém enormíssimo.
A medida de ring fencing imposta pelo supervisor liderado por Carlos Costa no final de 2013 cortou o circuito de financiamento ao grupo… e o impacto começava-se a sentir agora de uma forma mais séria, à medida que chegava a hora de pagar as dívidas. Sem dinheiro para honrar as responsabilidades, uma a uma, as empresas do grupo começaram a cair como se de um castelo de cartas se tratasse.
Primeiro foi a Espirito Santo Internacional, a holding de topo do grupo, com um passivo superior a seis mil milhões de euros, a pedir a proteção contra os credores no dia 18. Seguiram-se a Rio Forte e a Espirito Santo Financial Group, a 22 e 24.
O agravamento da crise levou o Banco de Portugal a determinar ao BES a constituição de uma provisão de dois mil milhões de euros para acautelar o risco de não reaver o dinheiro que emprestou ao grupo, como explicou o governador Carlos Costa no Parlamento: “Se o grupo naquele dia abrisse falência, não afetava os rácios de capital.”
O problema em Angola
Não bastavam os problemas no grupo, também o próprio BES começava a abrir brechas por dentro. Uma dessas fendas havia sido detetada no seu banco em Angola no final de 2013 e a questão surgia agora de forma mais urgente. O BES Angola ou apenas BESA não sabia a quem tinha emprestado mais de cinco mil milhões de euros, financiamentos que foram concedidos no tempo em que era liderado por Álvaro Sobrinho.
Vítor Bento explicou que “esse problema estava protegido por uma garantia do Estado angolano que cobria essas responsabilidades”. Mas havia outra preocupação.
“Depois havia, subsidiariamente, uma aplicação substancial do BES, entidade mãe, aplicada no BESA, entidade filha, através de linhas de mercado monetário de um montante considerável, na ordem três mil e tal milhões de euros. Era esta parte que se desejava que viesse a ter um plano de pagamento ou uma garantia que tornasse mais palpável a sua regularização, liquidação”, contou o ex-presidente do BES aos deputados.
Como a base de depósitos do BESA era frágil, era a casa-mãe em Lisboa quem financiava o balanço e o crescimento do negócio das operações angolanas. Naquele momento, a grande preocupação das autoridades portuguesas era assegurar que os financiamentos do BES à subsidiária angolana no montante de mais de três mil milhões de euros regressavam a Portugal.
Só que, de Luanda, as notícias que iam chegando ao gabinete de Carlos Costa apontavam para um desfecho trágico para o BES.
A operações ruinosas com a Eurofin
Ao mesmo tempo que a questão angolana ia evoluindo de forma desfavorável aos interesses do BES… outro grave buraco ia sendo destapado dentro de portas.
Vítor Bento, os auditores e o Banco de Portugal levaram dias a perceber o que se estava a passar e a contabilizar os prejuízos provocados por uma série de operações financeiras realizadas nos últimos dias de Ricardo Salgado.
“Começaram a aparecer obrigações que tinham de ser amortizadas, que começaram a dar prejuízos porque as taxas a que estavam a ser compradas eram diferentes a que tinham sido emitidas”, contou Vítor Bento no Parlamento.
“A história foi contada através de várias reuniões. No primeiro dia, o que foi explicado é que havia obrigações na posse dos clientes, os clientes estavam a vender essas obrigações, que se tentava, como era sempre normal, que o broker utilizado encontrasse compradores e as revendesse para outros clientes, mas que naquela altura estava a ser difícil que isso se verificasse e, portanto, o banco estava a comprá-las para a sua carteira”, explicou.
Para financiar a sua atividade, o banco, ainda sob a liderança de Ricardo Salgado, tinha emitido obrigações de cupão zero para não ter de pagar juros todos os anos. Como tinha de atrair clientes, vendeu os títulos de dívida com desconto para garantir que no final do vencimento… as obrigações apresentavam uma rentabilidade anual de 7%.
O BES terá vendido cerca de 350 milhões de euros em obrigações de cupão zero com a maturidade de 40 anos e o valor nominal de cerca de cinco mil milhões.
Só que a crise de desconfiança vivida naqueles meses complicou a vida a Ricardo Salgado e companhia. Muitos clientes começaram a desfazer-se das obrigações… e deixou de haver interessados a quem os intermediários financeiros pudessem revender os títulos.
No centro destas operações estava a Eurofin, sediada na Suíça e uma das sociedades investigadas pelo Ministério Público e Banco de Portugal.
Enquanto intermediário financeiro, a Eurofin desenvolvia um negócio bastante lucrativo com o BES: comprava as obrigações ao banco a um preço inferior àquele a que as revendia aos clientes. Quando, nos dias finais de Ricardo Salgado à frente do banco, o BES foi forçado a recomprar e a amortizar os títulos, registando perdas de mais de mil milhões de euros nessas operações, a Eurofin obteve mais-valias que ascenderam a quase 800 milhões.
Quem beneficiou com isso?
“É a questão milhão de dólares: saber onde foi parar esse dinheiro, porque é que esse dinheiro foi usado”, respondeu a determinada altura Carlos Costa na comissão de inquérito. “Vamos admitir que não foi por acaso que de um momento para o outro saem 1.500 milhões de euros de um sítio e que não sabemos onde foi parar. Sabemos que alguém registou as perdas, mas não sabemos quem registou as vantagens”, acrescentou.
Ricardo Salgado afastou as suspeitas. “Ninguém da administração do BES, do GES ou da família Espírito Santo obteve qualquer alegado benefício daqui decorrente, ao contrário do que foi repetidamente insinuado em alguns órgãos de comunicação social”, afirmou. “Aquela imagem da fraude em que saem biliões de capitais do país para os bolsos de não sei de quem, inclusivamente falou-se da família, alguns jornalistas mais apressados falaram na família, foram para reembolsar clientes do grupo.”
Dentro do banco era o Departamento Financeiro, Mercados e Estudos quem executava estas operações. A diretora do departamento era Isabel Almeida, que confessou no Parlamento que o antigo presidente saberia de tudo: “Tenho a perceção e a convicção de que ele tinha todo o conhecimento relevante das operações que passavam pelo Departamento financeiro até porque acredito que Amílcar Morais Pires lhe comunicava todos esses factos.”
O Ministério Público acredita que Ricardo Salgado usou a Eurofin para financiar as empresas do Grupo Espírito Santo e realizar outras operações com prejuízo para o banco e os seus acionistas durante anos e anos. Entre 2009 e 2014, este esquema permitiu expropriar o BES em três mil milhões de euros brutos, que se transformaram numa perda líquida de 1,3 mil milhões para a instituição, segundo o Banco de Portugal.
Só a queda do BES veio expor o esquema.
Tenho a perceção e a convicção de que ele [Ricardo Salgado] tinha todo o conhecimento relevante das operações que passavam pelo Departamento financeiro até porque acredito que Amílcar Morais Pires lhe comunicava todos esses factos.
BES anuncia prejuízo de 3,5 mil milhões
Ao longo da segunda quinzena de julho foi-se percebendo que o BES ia a caminho de um perfeito desastre em passo acelerado. As campainhas de alarme tocavam por todo o lado. Mais alguma que soasse já não iria mudar o destino que parecia traçado.
O Grupo Espírito Santo estava em ruínas. O banco autoinfligira perdas de uma dimensão tal que o Banco de Portugal tinha dificuldades em encontrar uma explicação racional.
Além da questão angolana e das ruinosas operações de recompra de obrigações, antes de sair, Ricardo Salgado tinha assinado cartas de conforto a favor da Venezuela que representavam responsabilidades adicionais de 260 milhões de euros.
No dia 25, Vítor Bento e Carlos Costa já tinham uma primeira ideia da magnitude dos prejuízos que o BES ia apresentar dali a cinco dias. “Lembro-me de ter saído uma notícia no Expresso Diário no dia 27 ou 28 a apontar para prejuízos de três mil milhões”, recordou Vítor Bento.
Se as primeiras estimativas eram assustadoras, a verdade é que pecaram por defeito.
No dia 30 de julho, há precisamente dez anos, o BES anunciou prejuízos superiores a 3,5 mil milhões de euros relativos ao primeiro semestre de 2014. As perdas resultaram em grande medida das almofadas financeiras que o banco teve de constituir para cobrir a exposição ao Grupo Espírito Santo e ainda a dívida subscrita por clientes de retalho.
Na manhã dessa quarta-feira, o conselho de administração tinha-se reunido par aprovar as contas. As discussões foram tensas como seria de esperar quando se está à beira de uma catástrofe. A família Espírito Santo já estava fora da administração. Foram os franceses do Crédit Agrícole a contestar o montante das provisões que foram exigidas ao banco.
“Houve uma ordem, uma instrução de provisionar dois biliões de euros das obrigações do BES, porque havia aparentemente uma perspetiva de liquidez dada aos clientes. E insurgiram-se contra isso os nossos parceiros franceses de há 30 anos”, contou Ricardo Salgado. “Um dos membros franceses terá referido ‘Mas para que é que estamos provisionar obrigações de longo prazo? Podemos transformar em depósitos’. Então vamos provisionar depósitos?”.
Por conta dos prejuízos históricos a solvabilidade do BES ficou em causa. O banco não ia fechar portas no dia ou semana a seguir, mas estaria a operar com rácios de capital bem abaixo dos limites exigidos pelo regulador quando a crise que enfrentava naqueles tempos recomendava ter almofadas financeiras à prova da desconfiança dos investidores e credores.
Para o governador, se o banco tinha chegado a esta situação crítica, só havia um responsável: “O grande problema que se colocou foram os 15 dias em que 1.500 milhões de euros são confirmados como perdas e levam as perdas dos 2.000 milhões da almofada para absorver para os 3.600 milhões que o banco já não pode absorver.”
Naquele dia 30 de julho, o BES deixou de ser uma preocupação exclusiva do Banco de Portugal e saltou as fronteiras. Em Bruxelas e Frankfurt começaram a questionar o que se passava em Lisboa.
Um banco com importância sistémica estava entre a vida e a morte. Ia ser necessário uma intervenção para salvar o BES. O que aconteceu a seguir?
No BES e Banco de Portugal, as horas que se seguiram foram passadas a um ritmo alucinante para evitar que o desastre ganhasse proporções ainda maiores.
O FIM DO BES, DEZ ANOS DEPOIS
Passam dez anos sobre o colapso do maior grupo financeiro português. São cinco episódios com os cinco dias decisivos do fim do BES.
#1. Como perder mil milhões em dois meses 11 de junho
#2. O fim da Era Salgado 20 de junho
#3. Rei morto, rei posto 14 de julho
#4. O buraco de 3,5 mil milhões 30 de julho
#5. O dia da capitulação 3 de agosto
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#4. O buraco de 3,5 mil milhões
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