Comissão de Inquérito “destapou” fundos Airbus. IGF confirmou que TAP financiou compra da TAP
O acordo com a Airbus para a capitalização da TAP foi conhecido na CPI realizada no ano passado. A auditoria às contas da companhia aérea estabeleceu, agora, a relação com o processo de privatização.
O Governo e PSD apressaram-se a desvalorizar as conclusões da auditoria da Inspeção-Geral das Finanças (IGF) às contas da TAP. Luís Montenegro, no dia a seguir a ser conhecida a auditoria, disse que “não traz nenhuma novidade face a outros relatórios”. E António Leitão Amaro, no final do Conselho de Ministros desta quinta-feira, repetiu que os “factos são os mesmos” que foram apreciados na Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) à TAP no ano passado.
Os dois documentos têm quase um ano de diferença temporal e tocam-se na privatização da TAP em 2015, com o relatório da CPI a destapar os fundos Airbus e a auditoria da IGF a detalhar toda a operação de venda, concluída por Maria Luís Albuquerque – nomeada agora para comissária europeia – e Miguel Pinto Luz, atual ministro das Infraestruturas, que novamente tem nas mãos a privatização da companhia aérea.
No relatório preliminar da CPI à TAP surgiram os chamados “Fundos Airbus” associados à capitalização da TAP pela Atlantic Gateway, de David Neeleman e Humberto Pedrosa. A partilha por parte da Parpública de informação sigilosa com o fabricante de aviões destapou a participação da própria companhia na privatização da TAP. A auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF), divulgada esta semana, tirou as dúvidas: a compra da TAP ao Estado em 2015 foi feita através de um processo no qual a própria companhia aérea deu a garantia ao empréstimo que permitiu a transação, diz o relatório.
O consórcio Atlantic Gateway apresentou uma proposta vinculativa à Parpública para comprar uma posição maioritária na privatização da TAP a 15 de maio de 2015, com a Atlantic Gateway a sair vencedora da corrida à compra da empresa aérea portuguesa.
Conforme refere o relatório preliminar da CPI à TAP, a 24 de junho, a Atlantic Gateway remete uma carta à Parpública onde explica os mecanismos da capitalização, condição essencial da privatização, garantindo que ela seria feita com capitais próprios das empresas de David Neeleman (DGN) e do empresário Humberto Pedrosa (HPGB), proprietário do grupo Barraqueiro. No mesmo dia é assinado o Acordo de Venda Direta (VDR) e o Acordo de Compromissos Estratégicos entre a Atlantic Gateway e o Estado, selando o caminho para a venda da TAP ao consórcio.
Entretanto, a 16 de junho, já David Neeleman (DGN) tinha assinado um memorando de entendimento com a Airbus, que contemplava não só a desistência dos A350 como uma encomenda de 53 novas aeronaves da família A320 e A330. No entanto, só em setembro é que a Airbus tem conhecimento deste acordo, após uma carta enviada a 19 de agosto de 2015 pela Atlantic Gateway à Parpública, em que a holding pede para partilhar o Acordo de Venda Direta, um documento sigiloso, com a Airbus. A Parpública responde a 6 de setembro, pedindo à Atlantic Gateway que esclareça os motivos do pedido: “Apreciaríamos bastante que pudessem detalhar as razões particulares porque a Airbus precisa de aceder ao Acordo de Venda Direta”.
A 15 de setembro, a Airbus explica a disponibilização dos fundos, que “são apresentados como ”upfront cash credit”, nota o relatório, sem fazer referências à capitalização da TAP. Contudo, conforme revelou o relatório da CPI, a “Parpública secundou a opinião dos consultores externos que manifestavam reservas sobre a mesma, entendendo que poderia configurar uma forma de assistência financeira, nos termos do artigo 322.º do CSC” [o mesmo que a IGF refere agora que aparenta ter sido contornado com este esquema de financiamento]. Foi um parecer da Vieira de Almeida que validou a forma de capitalização com recurso aos Fundos Airbus.
Mas os deputados não ficaram convencidos e, na versão final do relatório da CPI à TAP, é referido que “a comissão encontrou fortes indícios, na documentação enviada pela TAP SA e TAP SGPS, de que um conjunto de pagamentos de despesas da DGN [empresa de Neeleman] com a compra da TAP foram pagas pela própria TAP”, pedindo a auditoria agora finalizada pela IGF.
“O conjunto de documentação enviada evidencia múltiplas despesas realizadas antes do dia 12 de novembro de 2015 [data em que se efetivou a privatização]. Estes pagamentos situam-se em valores superiores ao valor de 10 milhões de euros pagos pela Atlantic Gateway pela compra da TAP em 2015“, apontava o mesmo documento, divulgado em julho de 2023.
Auditoria aponta indícios de crime
A auditoria conduzida pela IGF às contas da TAP, pedida em 2023 pelo antigo ministro das Finanças, Fernando Medina, na sequência da CPI, apontou agora suspeitas de crime em várias operações realizadas pela companhia aérea portuguesa, nomeadamente no processo de privatização, que terá sido financiado com um empréstimo de 226 milhões de dólares com garantia dada pela própria empresa.
A auditoria conclui que a compra de 61% da companhia aérea ao Estado, em 2015, por um consórcio (Atlantic Gateway) liderado por David Neeleman foi financiada com um empréstimo de 226 milhões de dólares concedidos pela Airbus, numa operação vinculada à compra 53 aviões à Airbus pela TAP. Caso a operadora aérea não finalizasse a aquisição teria que reembolsar os 226 milhões, o que significa que a empresa foi comprada com garantia dada pela própria TAP.
A IGF realça que a “Atlantic Gateway adquiriu 61% do capital da TAP, comprometendo-se a proceder à sua capitalização através de prestações suplementares de capital, das quais 226,75 milhões de dólares foram efetuadas através da sócia DGN com fundos obtidos da Airbus, com base no denominado Framework Agreement, celebrado entre as empresas Atlantic Gateway, a DGN e Airbus, em junho de 2015”, notando uma “relação de causalidade entre a aquisição das ações e a capitalização da TAP, SGPS pela Atlantic Gateway, e os contratos celebrados entre a TAP, SA e a Airbus“.
“Tendo em conta a atividade da Airbus e a sua vertente eminentemente comercial, a disponibilização desse montante parece sugerir que terá sido a contrapartida pela celebração do acordo de renovação da frota, mediante a substituição da encomenda dos aviões Airbus A350 pelos A330, bem como a compra de novos aviões A320neo e A330neo, cujas penalidades pela falta de cumprimento da TAP, SA perfazem exatamente o valor das prestações suplementares de capital assumidas pela Atlantic Gateway, mas que indiretamente terão sido financiadas pelos fundos Airbus (226,75 milhões de dólares)”, reforça o documento.
Esta operação terá contornado o código das sociedades comerciais, que impede uma empresa de conceder empréstimos ou fundos a um terceiro para que este compre ações da empresa.
“Esta operação complexa afigura-se suscetível de contornar a proibição imposta pelo n.º 1 do artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o qual impede que uma sociedade conceda empréstimos ou forneça fundos a um terceiro para que este adquira ações do seu próprio capital, cuja penalidade consiste na nulidade dos contratos ou atos unilaterais que lhe estão subjacentes”, refere o relatório.
As suspeitas de crime levantadas pela IGF levaram o Governo a enviar o relatório para a Procuradoria-Geral da República (PGR), que entretanto enviou o documento para o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). E esclarece que essa mesma auditoria foi adicionada ao processo que decorre desde fevereiro de 2023, no DCIAP.
Neeleman e Pedrosa defendem-se
Questionado sobre as conclusões do relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) às contas da TAP, David Neeleman remeteu quaisquer explicações para as respostas que enviou por escrito à CPI no ano passado, onde garantia que os “qualificados ‘fundos Airbus’ foram integralmente utilizados na capitalização da TAP” e permitiram a sobrevivência da companhia.
“As necessidades de capitalização eram de tal forma urgentes e indisputáveis, que logo em 2015 e 2016 esses fundos foram utilizados e consumidos pela TAP no pagamento de salários e nas suas necessidades imediatas de tesouraria. Tais fundos, em conjunto com as outras prestações acessórias e o empréstimo da Azul, salvaram a TAP de uma insolvência imediata”, adiantou.
“Até posso entender que no contexto de um processo de reestruturação da TAP, como o que está a decorrer, pretendam renegociar com a Airbus os preços então acordados, mas não posso aceitar que o façam à custa da minha honra e reputação”, escreve também David Neeleman. “Não fiz um mau negócio para a TAP, não prejudiquei a empresa e jamais – como já ouvi dizer e escrever – ‘recebi luvas’ ou comissões pelo negócio com a Airbus. Tal suspeita é insultuosa e inaceitável.”
Já Humberto Pedrosa disse em comunicado que é “falso e leviano dizer que a TAP foi adquirida, no âmbito da privatização, por fundos da própria companhia”.
Pedrosa escreve que a Atlantic Gateway adquiriu a sua participação na TAP por 10 milhões de euros com fundos próprios dos acionistas e que o dinheiro proveniente da Airbus serviu apenas para capitalizar a empresa. E realça que quando entrou como acionista da Atlantic Gateway, “o acordo com a Airbus já estava negociado por David Neeleman”.
Cabe agora ao Ministério Público continuar a analisar os meandros desta operação que financiou a capitalização da TAP e todo o processo de venda da TAP em 2015 pelo segundo Governo de Pedro Passos Coelho.
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