O caso BES chega a julgamento 10 anos após a queda do banco. Ao longo do ano de 2013 e depois nos primeiros meses de 2014, os problemas no BES e no Grupo Espírito Santo acabaram em falência.
O caso BES chega a julgamento 10 anos após a queda do banco, que aconteceu com estrondo, apesar dos sucessivos escândalos, fez Salgado cair do pedestal de ‘príncipe da banca’ e motivou críticas ao Banco de Portugal. Ao longo do ano de 2013 e depois nos primeiros meses de 2014, os sinais de problemas no Banco Espírito Santo (BES) e no Grupo Espírito Santo (GES) tornaram-se evidentes.
O apertar do cerco do Banco de Portugal (BdP) revela buracos financeiros em empresas do grupo e a promiscuidade entre áreas financeira e não financeira. Empresas do grupo tinham dívidas ocultas e ativos sobreavaliados (caso da ESI – Espírito Santo International) e o BES usava os seus clientes para financiar empresas do grupo através da colocação de dívida, como papel comercial.
É também por essa altura que se revelam mais escândalos ligados ao presidente do BES, Ricardo Salgado. É conhecido que recebeu milhões de euros (mais tarde soube-se que foram 14 milhões de euros) do construtor civil José Guilherme e torna-se pública a luta de poder com o primo José Maria Ricciardi.
Apesar da instabilidade e dos danos reputacionais, Salgado faz tudo para se manter na presidência do BES e tenta publicamente dar uma imagem de confiança, ajudado pela tese de que o banco não é afetado pela parte não financeira do grupo.
Ao longo dos mais de 20 anos à frente do BES, o banqueiro nascido numa família da alta finança tinha criado reverência em seu redor e um poder tentacular. A aura do trabalhador infatigável, que todos os dias chega cedo e sai tarde do gabinete na Avenida da Liberdade (decorado com pintura flamenga do século XVII), somada à elegância, sobriedade, voz pausada e palavras medidas, ajudavam ao carisma e valeram quase um culto.
“Notava-se que era como que tratado ou visto como um príncipe no setor”, disse o ex-ministro das Finanças de Governos PS (de José Sócrates), Teixeira dos Santos, num reportagem da SIC de 2023 (‘A agenda’). Uma ideia partilhada pelo economista João Duque: “Era um príncipe de salão, ele não andava, deslizava… Podíamos encontrá-lo às sete ou oito da noite e parecia que tinha acabado de tomar duche, barbear-se e vestido de lavado”, relatou.
Contudo, a degradação do grupo e da sua imagem levam a que, em junho, seja forçado pelo BdP a sair da presidência, a poucos dias de fazer 70 anos.
No início de julho, o banco central ainda diz que “a situação de solvabilidade do BES é sólida”. Contudo, a derrocada prossegue, as ações tombam em bolsa, empresas do grupo entram em reestruturação, o suíço Banque Privée Espírito Santo atrasa o reembolso a clientes que investiram em dívida da ESI e começa a fuga de depósitos no BES. O escândalo vira internacional, com o Financial Times e o Wall Street Journal a noticiarem que os mercados internacionais “caem com receios sobre o banco português”.
A nova gestão do BES (liderada por Vítor Bento) vai descobrir que a situação é ainda mais grave e, na noite de 30 de julho de 2014, as contas do primeiro semestre revelam prejuízos de 3,6 mil milhões de euros e põem a nu irregularidades financeiras e legais. Ainda assim, nessa noite, o governador do BdP, Carlos Costa, garante por escrito que o banco vai continuar. O banco e o grupo estariam por dias.
Em 31 de julho, o Banco Central Europeu (BCE) anuncia ao Banco de Portugal que o BES será suspenso das operações de política monetária, o que na prática determina o seu fim. Perante isso, Carlos Costa informa Frankfurt da medida de resolução e articula com o Governo o processo.
Perto das 23h00 de domingo, 3 de agosto de 2014, o governador anuncia ao país uma solução “urgente” para o BES. O BES e o grupo faliam na praça pública, a história centenária terminava naquele dia. O BES torna-se o ‘banco mau’, em que ficam os ativos considerados ‘tóxicos’ e depósitos de administradores e membros da família. É criado o banco de transição Novo Banco para onde passam os ativos ‘bons’ (muitos revelar-se-iam problemáticos) e os depósitos dos clientes.
A rápida e estrondosa queda deixa na mira auditores, poder político, mas sobretudo reguladores, em especial o Banco de Portugal e o seu governador.
Nos meses seguintes, será acusado de supervisão ineficaz, de não ter afastado Ricardo Salgado atempadamente, de ter feito pequenos acionistas e clientes do retalho acreditar no banco apesar de já saber dos problemas.
“No fim de semana fui chamado de gatuno. Não roubei nada a ninguém. O Banco de Portugal não roubou nada a ninguém”, disse Carlos Costa na comissão parlamentar de inquérito, em 2015.
Já Salgado começou por se defender na praça pública – “O leopardo quando morre deixa a sua pele. E um homem quando morre deixa a sua reputação”, afirmou na comissão parlamentar de inquérito. Em 2015 considerou na contestação a um processo do BdP que este agiu “como uma espécie de COPCON dos tempos modernos” contra “ricos e poderosos – mas nos anos recentes apresenta-se como um homem só e debilitado.
Em fevereiro deste ano, compareceu em tribunal (caso EDP) com ar doente, passada lenta, de mão dada com a mulher. Em janeiro, ao juiz, Maria João tinha contado que o marido é dependente, perde-se em casa e por vezes não se lembra do nome dos netos. “Tinha um marido fantástico e hoje em dia tenho um bebé grande para tratar”, disse.
Salgado cumpriu 80 anos em junho, tendo festejado na Suíça, na casa da filha e do genro (o multimilionário Philippe Amon, dono da empresa de tintas com que se imprimem as principais notas do mundo), segundo o Correio da Manhã. É ainda a filha Catarina quem, contou o jornal, dá 40 mil euros por mês à mãe para despesas.
Dez anos depois da queda do BES, o principal processo-crime contra Salgado (o julgamento do caso BES/GES), em que é acusado de 65 crimes, arranca na próxima terça-feira (15 de outubro).
Quanto à queda do BES, segundo cálculos feitos pela Lusa, esta custou até agora cerca de 8.000 milhões de euros aos cofres públicos, resultado sobretudo da capitalização inicial do Novo Banco e das recapitalizações feitas pelo Fundo de Resolução no Novo Banco.
De acordo com o Ministério Público, no processo que agora começa a ser julgado – considerado o principal num universo de seis processos criminais – está em causa um valor superior a 11,885 mil milhões de euros em vantagens auferidas com a prática dos crimes.
A defesa de Ricardo Salgado invocou o seu diagnóstico de Alzheimer para pedir que aquele que já foi apelidado de ‘dono disto tudo’ pudesse ser dispensado do julgamento, mas o tribunal ‘não comprou’ o argumento e a juíza que preside ao coletivo que vai julgar o caso, Helena Susano, determinou que Salgado terá que comparecer e responder presencialmente por 62 crimes, entre os quais corrupção.
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Salgado, de “príncipe da banca” ao banco dos réus
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