Senhor Governador, a fuga de talento é mesmo real

O problema da nossa emigração jovem e qualificada é sobretudo de intensidade e gravidade dos efeitos, por acelerar o envelhecimento e declínio da população, e pela perda de talento.

As recentes declarações do Governador do Banco de Portugal (BdP), sugerindo que Portugal tem sido um “recetor líquido de diplomados” nos últimos oito anos, levantaram polémica e geraram perplexidade. Mas, afinal, os números suportam essa visão otimista ou mascaram uma realidade mais preocupante? Neste artigo desvendo o verdadeiro retrato da perda de talento em Portugal, devido à saída dos nossos jovens qualificados, um problema que ameaça o futuro do país e que não pode ser ignorado.

Mário Centeno afirmou ainda que “o país vive focado numa realidade que é descrita com números enganadores”, sugerindo que a população tem vindo a ser iludida a este respeito. Esses dados foram, entretanto, contrariados por outra informação apresentada pelo Ministro das Finanças, mas que não consigo confirmar integralmente e não é totalmente comparável com os dados referidos por Centeno.

Neste artigo ‘tiro então as teimas’ com dados integrais de fontes fidedignas. Tudo indica que o Governador terá usado informação incompleta, gerando uma conclusão errada. O que constato é uma perda anual global de diplomados (o aumento médio de ativos qualificados de todas as idades está abaixo dos novos diplomados devido à emigração, líquida dos imigrantes e emigrantes regressados), com origem nos jovens até aos 34 anos, em vez do ganho que Centeno queria mostrar. Isto significa que a perda anual global de talento só não é pior devido à entrada de imigrantes e ao regresso de emigrantes com formação superior acima de 34 anos, para o que terão contribuído os regimes fiscais associados – regime de residente não habitual (e seu sucessor) e programa Regressar, respetivamente –, que são distorcionários, não sendo acessíveis a todos os trabalhadores, nomeadamente aos jovens não emigrados.

Se o objetivo de Centeno era discordar da necessidade de fazer algo para reter o nosso talento jovem, como parece, considero que não tem razão. Se, como eu, discorda da versão de IRS Jovem do Orçamento de Estado de 2025 (OE 25), terá de apresentar melhores dados e argumentos para ser consequente. Como está, considero que o regime IRS Jovem desincentiva as qualificações, tornando a escolaridade mínima ‘letra morta’, e representa mais um regime especial distorcionário e injusto. Não se deve corrigir distorções do nosso sistema fiscal criando mais uma, pelo que, mais abaixo, revisito brevemente algumas das vantagens do regime unificado e mais justo de IRS Novo Talento (https://eco.sapo.pt/opiniao/irs-novo-talento-mais-impacto-abrangencia-e-equidade/), que defendi numa crónica anterior.

Neste artigo recupero ainda informação crucial do “Atlas da Emigração”, onde se mostra que o peso da emigração na população é dos maiores do mundo e que a nossa emigração na ultima década é, sobretudo, jovem e crescentemente qualificada, o que se traduz numa enorme perda de talento para o País – após um forte investimento em formação das famílias, dos próprios e do Estado –, com a agravante de que essa emigração acentua o declínio demográfico do País, além de desestruturar as nossas famílias. Por isso, os aspetos positivos da emigração referidos no Atlas – remessas de imigrantes e rede da Diáspora –, além de incertos (dado o caráter voluntário), são apenas atenuantes de uma realidade globalmente negativa.

Passemos, então, aos dados apresentados pelo Governador que geraram polémica.

Na recente conferência do BdP sob o tema “Educação e Qualificações em Portugal”, o Governador afirmou que, “nos últimos oito anos, a população ativa com formação superior aumentou, em média, 70 mil indivíduos por ano. Das universidades portuguesas (…) saem por ano pouco mais de 50 mil portugueses. Podemos, por isso, dizer que Portugal tem conseguido ser recetor líquido de diplomados”.

A tabela abaixo compara os dados apresentados pelo Governador com informação de acesso público do INE, que trabalhei de modo a ser comparável. Verifico que a população ativa com formação superior aumentou 59 mil por ano, em média, nos últimos oito anos, em vez dos 70 mil referidos pelo Governador, enquanto os novos diplomados no ensino superior foram 80 mil em média anual no mesmo período, mais do que os 50 mil referidos pelo Governador, que apenas traduzem o número médio de licenciados e omitem os mestres e doutores, sendo este o principal equívoco que encontro nos números de Centeno.

Assim, constato uma perda anual média de 21 mil diplomados de todas as idades, nos últimos oito anos, por diferença entre a variação de ativos qualificados e os novos diplomados, em vez do ganho anual de 20 mil sugerido pelo Governador. Esta análise avalia a retenção líquida de talento (jovem e menos jovem) entre novos diplomados e entradas (imigração) menos saídas (emigração) de novos e antigos diplomados.

A não ser que o Governador apresente uma melhor fonte de informação do que o INE a respeito destes dados, considero fiáveis os números a que cheguei, com uma conclusão diametralmente oposta e que faz muito mais sentido, por ser coerente com as queixas recorrentes de incapacidade de retenção de talento das empresas nacionais e com outros dados que apresentarei mais à frente.

Variação da população ativa com ensino superior (por faixa etária) e número de diplomados (por ciclo de estudos), média anual nos últimos oito anos (entre 2015 e 2023) em milhares

Fonte: INE (dados dos diplomados e da população ativa atualizados em julho e agosto de 2024, respetivamente) e cálculos próprios; BdP, Intervenção do Governador na 12.ª Conferência do BdP “Educação e Qualificações em Portugal” (https://www.bportugal.pt/intervencoes/intervencao-do-governador-mario-centeno-na-12a-conferencia-do-banco-de-portugal).

Em reação às declarações do Governador, o Ministro das Finanças referiu, e bem, que formamos 80 mil diplomados anualmente (confirmo na tabela), mas não consigo reproduzir os demais dados que referiu. Segundo o Ministro, entre 2021 e 2023 “perdemos 42 mil jovens com habilitações superiores”. Com a mesma série do INE que usei na tabela acima, os meus cálculos apontam para uma queda acumulada de 12 mil ativos de 16 a 34 anos com formação superior entre 2021 e 2023, mas poderá ter sido usada uma outra fonte e uma faixa etária um pouco diferente. O maior problema com esta análise do Ministro é que o período usado não é comparável com o horizonte temporal referido pelo Governador.

Por outro lado, enquanto o Governador abordou a retenção de talento de qualquer idade, o Ministro das Finanças focou-se numa perspetiva de perda de talento jovem, que analiso a seguir.

A tabela mostra que, nos últimos oito anos, houve um aumento médio anual de 13 mil ativos jovens (16 a 34 anos) com formação superior (dos quais 4 mil dos 16 aos 24 anos e 9 mil dos 25 aos 34 anos), o que é comparável com os 80 mil novos diplomados do ensino superior por ano, pois será relativamente baixo o número de novos diplomados acima de 34 anos – se admitirmos que esse número é nulo, por hipótese, chegamos a uma perda anual líquida de 67 mil jovens diplomados, evidenciada na figura.

De forma mais realista, posso afirmar que, com elevada probabilidade, a perda líquida de jovens talentos (devido à emigração do talento gerado – os novos diplomados –, descontando os emigrantes regressados e os imigrantes com formação superior até 34 anos) será superior a 60 mil por ano, ou seja, mais de três quartos dos novos diplomados (80 mil por ano), sendo assim responsável pela perda global de talento.

Fonte: INE e cálculos próprios (mesmos dados usados na tabela).

 

De facto, a tabela evidencia que a perda agregada de diplomados (21 mil por ano, como referido) só não foi maior devido aos 46 mil novos ativos com formação superior acima dos 34 anos por ano, que serão sobretudo novos imigrantes e emigrantes regressados, admitindo um número baixo de novos diplomados acima de 34 anos. Estes dados apenas parecem demonstrar a eficácia conjunta dos regimes especiais já mencionados de atração de imigrantes e regresso de emigrantes, pelo menos para pessoas qualificadas com mais de 34 anos e salários suficientemente altos, explicando os resultados encontrados.

Mesmo assim, esses regimes não chegam para impedir uma perda agregada de talento e traduzem um enviesamento estranho das nossas políticas de retenção de talento, ao excluírem jovens não emigrados – o que se pretenderá corrigir com o IRS Jovem alargado, mas a sua formulação também gera distorções e injustiças, talvez até problemas de constitucionalidade, ao restringir o benefício até aos 35 anos –, e não têm em conta a necessidade de requalificação das gerações anteriores no ativo.

Defendo, por isso, a substituição desses vários regimes por um regime unificado e muito mais justo de IRS Novo Talento, com deduções em IRS para rendimentos do trabalho nos anos imediatamente após novas qualificações superiores (por exemplo 5 anos, com um máximo de 10 anos de benefícios no total), acessível a todos no ativo: jovens (tendencialmente os mais beneficiados, pela maior propensão à formação superior), gerações anteriores no ativo (incentivando a sua requalificação, que é uma necessidade urgente da nossa economia), emigrantes e imigrantes (incluindo estudantes internacionais que fiquem cá a trabalhar após o curso). A estadia no nosso país seria ainda maior por motivos de estudo, estimulando também a expansão do Ensino superior. Seria uma medida importante, a meu ver, para impulsionar a qualificação dos ativos (que compara bem nas novas gerações, mas muito mal nas anteriores) e a inovação na nossa economia, eliminando distorções e gerando incentivos adequados.

Termino este artigo com mais dados que confirmam a necessidades de travarmos a nossa emigração jovem e qualificada, que gera graves problemas demográficos e de perda de talento que a economia precisa. Segundo o “Atlas da emigração portuguesa”, publicado em 2023 pelo Observatório da emigração:

  • “medida (…) em termos relativos, em proporção da população nacional, a emigração portuguesa é a maior da Europa e a oitava maior do mundo (descontando os menores países (…))”;
  • “mais de um terço dos nascidos em Portugal com idades entre os 15 e os 39 anos vive hoje no exterior”;
  • “mais de dois terços [“quase 70%”] dos emigrantes que saíram de Portugal ao longo da última década tinham entre 15 e 39 anos “;
  • “tem vindo a crescer a percentagem de emigrantes com curso superior” (sendo já superior a 30% nos dados mais recentes, como mostra um dos gráficos do Atlas) e “a probabilidade de um português licenciado emigrar é cerca de quatro vezes superior à de um português com o ensino básico”;
  • “na segunda década do século, a emigração qualificada passou a crescer mais do que a qualificação dos portugueses”, o que significa que a emigração jovem vai além do mero efeito de composição de uma população mais qualificada, sobretudo a mais jovem, que é também a que mais emigra;
  • “Portugal é hoje um país em recessão demográfica, com uma das mais baixas taxas de natalidade, não só da Europa, como do mundo. Essa dinâmica recessiva é ampliada pela emigração. Esta é seletiva e contribui para a redução do número de jovens em idade ativa (…) e para a redução do número de mulheres em idade fértil (os nascimentos no estrangeiro de mães portuguesas representarão cerca de um quinto dos nascimentos em Portugal). (…) Só o aumento da imigração poderá, pois, contribuir para atenuar as consequências da acumulação de dinâmicas demográficas recessivas”.
  • “as remessas constituem um dos contributos positivos da emigração”, bem como “a criação de múltiplas relações entre os emigrantes e os países de origem”. Estas vantagens são de caráter voluntário e, por isso mesmo, incerto (ninguém obriga os emigrantes a enviar remessas nem a manter contactos com Portugal), apenas mitigando um pouco os vários aspetos negativos acima descritos.

Realço ainda que, se a nossa baixa produtividade e (de forma associada) nível de vida no contexto europeu é o principal determinante para a emigração jovem, esta também existe nos países ricos, até porque os jovens emigram ainda por razões não económicas (como emancipar-se e conhecer novas culturas, o que até é estimulado, e bem, pelo programa Erasmus).

O problema da nossa emigração jovem e qualificada é sobretudo de intensidade e gravidade dos efeitos, por acelerar o envelhecimento e declínio da população, e pela perda de talento – cuja relevância é acrescida dada a qualificação relativamente baixa das gerações anteriores –, que tanto precisamos para colocar a economia a crescer a maior ritmo (mediante reformas que levem a mais investimento e à melhoria do perfil de especialização, com mais pessoas qualificados) e atingirmos patamares de rendimento e desenvolvimento mais altos no panorama europeu.

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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