Velhos lobos, cordeiros novos

  • João Espanha
  • 6 Dezembro 2024

O que importa é que sejamos todos iguais, Estados e pessoas. Por isso é que combatem, em nome de uma inexistente moral fiscal, a possibilidade dos Estados escolherem como modelam o seu sistema fiscal.

Por dever de ofício, fui visitar uma coisa chamada Tax Justice Network. Alguém me disse que havia lá uns dados interessantes sobre justiça fiscal e paraísos fiscais e eu, ingénuo apesar da idade avançada, lá fui. Ia especificamente à procura de uma coisa denominada “The State of Tax Justice 2024” (VP aqui: https://taxjustice.net/wp-content/uploads/2024/11/State-of-Tax-Justice-2024-Portuguese-Tax-Justice-Network.pdf ).

Sou recebido com um enorme “LET’S TAKE BACK CONTROL OF OUR TAX SYSTEMS”, que me deixou logo arrepiado. E piora: trata-se de uma ONG cuja missão se pode sintetizar como (…) achieving tax justice by challenging false narratives, and normalising bold, progressive proposals”, o que é muito bonito de se dizer. O problema é que nem as narrativas desafiadas são falsas, nem as propostas são audazes ou progressistas. Na verdade, é apenas mais do mesmo, em nova embalagem.

O Relatório em causa começa com a seguinte frase: “A Tax Justice Network acredita que nossos sistemas tributários e financeiros são as ferramentas mais poderosas que possuímos para a criação de uma sociedade justa capaz de conferir peso igual às necessidades de cada um de nós. Porém, sob a pressão de gigantes corporativos e dos super-ricos, nossos governos programaram esses sistemas para priorizar os mais ricos em detrimento dos demais (…)”.

E a abrir o sumário executivo, logo outra pérola: “Os impostos são o nosso superpoder social, na medida em que abrem caminho para que as pessoas em todo o mundo tenham uma vida mais longa, saudável e melhor.”

Não há tempo nem espaço para dar nota de tantos outros disparates que para ali se dizem. Vamos só desmontar o que aqui se cita.

Em primeiro lugar, os actuais sistemas fiscais dos países desenvolvidos possuem, no que respeita ao imposto sobre o rendimento, regras modernas e depuradas ao longo de muitas décadas. Os impostos pessoais aplicam, de acordo com o princípio da capacidade contributiva, taxas progressivas, fazendo com que quem mais ganha mais impostos pague, numa proporção crescente de acordo com o rendimento marginal de cada um. E os impostos corporativos, sendo em regra proporcionais, dotaram-se, sob a égide da OCDE, de muitos e variados instrumentos de combate à fraude fiscal e à erosão das bases tributáveis, aliás dirigidos, em primeira linha, às grandes empresas multinacionais. Se isto é fruto da pressão de gigantes corporativos e dos super-ricos, cabe agradecer-lhes…

Em segundo lugar, os impostos não são um superpoder social, nem garantem vida longa e saudável. Quem garante são as instituições (sobretudo democráticas) e o trabalho da governação, que para tanto se financia lançando tributos, máxime impostos.

Este é o erro (?) seminal em que incorre esta visão progressista da tributação: os impostos são um meio para um fim, mas o fim não é a construção da sociedade sem classes. O fim é o financiamento do Estado, seja ele democrático, autocrático, socialista, liberal, etc. Podemos carregar mais ou menos na tributação, de acordo com aquilo que, politicamente, seja decidido (de preferência, democraticamente) quanto à natureza do Estado (mais ou menos social, social-democrata, liberal, etc.). Mas não cabe ao sistema fiscal desenhar a sociedade, apenas e tão-só financiar o seu funcionamento e desenvolvimento.

Para a Tax Justice Network, porém, não é assim. E vale tudo para levarem a água ao seu moinho. Vejamos: o Relatório (elaborado anualmente) visa avaliar o que os Estados perdem para as jurisdições de baixa tributação, por via daquilo que designam “Corporate Tax Abuse” e “Off-shore Tax Abuse”, avaliação que chega a valores absolutamente pornográficos: 492 mil milhões (billions) de dólares em 2024. Wow! Só que…

As coisas não fazem muito sentido. Desde logo, e embora acusem a OCDE de ser um clube de ricos, é justamente aos dados obtidos por via da OCDE e das suas medidas que recorrem – paradoxal, um clube de ricos fornecer os meios para a sua desgraça. Depois, identificam como Tax Havens países tão “marginais” como a Holanda, a Irlanda, o Luxemburgo, o Reino Unido e… a França! A França, mon dieu, de onde tanta gente abastada foge por os impostos serem altos, é um tax haven! Por esta ninguém esperava…

E menos sentido fazem quando olhamos para a forma como determinam o valor “roubado” aos “pobrezinhos” por via do “Corporate Tax Abuse” (não sem antes anotar que, de acordo com o Relatório, os mais roubados não são os países pobres, mas sim os ricos. Sai mais um paradoxo para a mesa do canto!). Lá para a página 27 (sim, li aquilo tudo), explicam a metodologia. As fórmulas são impressionantes, e desafio quem percebe de matemática para as decifrar. A mim, bastou-me ler o seguinte, que é base da metodologia: “comparamos o lucro que as multinacionais afirmam ter gerado em um país com os lucros que esperaríamos com base em sua actividade econômica real no país (medida pelo número de funcionários e pelos gastos com salários). Se os lucros declarados forem menores do que o esperado com base nessa atividade econômica real, as multinacionais provavelmente transferem lucros para fora do país.” Se bem entendo, pretende-se, afinal, uma relação directa entre o número de trabalhadores/massa salarial e o rendimento obtido por uma multinacional. Onde estão os trabalhadores, é onde está o lucro.

Só que não.

Talvez tivesse sido assim nos tempos da primeira Revolução Industrial, admito. Mas já vamos na terceira, e hoje a actividade económica e boa parte do rendimento de uma empresa multinacional podem ser realizados em praças onde há poucos trabalhadores, e vice-versa. Será que a Microsoft gera o seu rendimento no país onde localiza os seus call-centers? Ou que um grande Banco mundial gera a maior parte do seu rendimento em Portugal, por ter aqui milhares de trabalhadores a trabalhar nos seus back-offices? Ou que o maior valor que a Apple gera está nas suas fábricas na China? Não estará antes na Califórnia, onde desenha os seus produtos e as suas estratégias de Marketing? Ou na Irlanda, onde terá a sua propriedade industrial – que é, na verdade, o que gera o seu estratosférico valor? E, e, e…

O intenso odor ao “ar dos tempos”, que me assaltou ao abrir o site da Tax Justice Network, traduz o que esta ONG, e os Relatórios que produz, verdadeiramente são: mais uma forma de combater aquilo que, para alguns, é a fonte de todos os males, qual seja, o horroroso capitalismo. Não importa que as sociedades liberais sejam as mais desenvolvidas e com melhores índices de bem-estar. Não interessa que em tais sociedades os direitos humanos sejam respeitados e que os impostos sirvam para financiar as instituições e as funções do Estado – que é de Direito e Democrático.

O que importa é que sejamos todos iguais, Estados e pessoas. Por isso é que combatem, em nome de uma inexistente moral fiscal (seja lá isso o que for), a possibilidade de os Estados escolherem como modelam o seu sistema fiscal, concorrendo sadiamente pelo investimento e pelo desenvolvimento económico. Tudo isso é mau – como qualquer urbanita, armado com o seu iPhone enquanto sorve um machiatto no Starbucks, explicará facilmente: os impostos são apenas mais uma ferramenta na construção dessa sociedade ideal que se persegue desde o século XIX, por caminhos pejados de fome, sangue e milhões de mortos.

Muito cuidado, pois: os velhos lobos com pele de cordeiro novo continuam por aí. Alguns até fazem relatórios sobre justiça fiscal.

  • João Espanha
  • Sócio da Broseta Portugal

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