“Libertar a energia americana”. Plano de Trump trava transição, mas pode ser oportunidade para Europa e China

A ordem executiva “Libertar a Energia Americana” coloca vários travões às energias renováveis, carros elétricos e legislação ambiental, ao mesmo tempo que promove os combustíveis fósseis e mineração.

Libertar a Energia Americana”. É este o título de uma das ordens executivas emitidas pela Casa Branca no primeiro dia de Donald Trump como presidente. Os especialistas em energia e ambiente consultados pelo ECO/Capital Verde destacam o impacto no clima e apontam para uma possível desaceleração na implementação dos projetos de renováveis, ao mesmo tempo que duvidam que as recentes decisões tenham o condão, tal como é almejado por Donald Trump, de baixar os preços da energia no país. Apesar das consequências negativas, pode ser uma oportunidade para a Europa e para a China.

“Regulações com motivações ideológicas impediram o desenvolvimento destes recursos [energéticos e naturais], limitando a geração de eletricidade fiável e acessível, reduzindo a criação de emprego e ditando custos de energia elevados para os cidadãos”, lê-se na introdução da ordem executiva, que promete “restaurar a prosperidade americana“. Os conteúdos da ordem “Libertar a Energia Americana” são reforçados por uma ordem completar, a “Declarar uma Emergência Energética Nacional“, onde são criticadas as políticas energéticas anteriores e considerada a capacidade de produção dos Estados Unidos desadequada face às “necessidades da nação”, além de apontada uma consequente pressão nos preços.

Os especialistas em energia e ambiente consultados pelo ECO/Capital Verde afirmam que as medidas avançadas são desapontantes mas que não surpreendem. O diretor e Economista Sénior da Allianz Global Investors, Greg Meier, em respostas assinadas com David Lee, o especialista no setor da Energia dos Estados Unidos da mesma casa de investimento, assumem que as ordens libertadas estão “relativamente em linha como a retórica anterior e com aquilo que o mercado esperava“.

Os mesmos consideram que “as consequências climáticas das ordens do presidente Trump são mais óbvias do que os efeitos que estas terão nos preços da energia”. “Estamos céticos de que o presidente Trump consiga atingir o seu objetivo de reduzir os preços da energia nos Estados Unidos em 50%“, assumem. Por exemplo, a aplicação de tarifas sobre matérias-primas energéticas provenientes do Canadá e do México contraria esse desígnio, comentam. E, em 2020, quando os preços do petróleo desceram a níveis negativos, o custo da energia nos Estados Unidos desceu “apenas” 19%, relatam, ao mesmo tempo que notam que estas políticas podem, na verdade, fazer aumentar os preços do petróleo.

Investimento em renováveis com travão

Um ponto que merece destaque na ordem executiva é o de “Terminar o Novo Pacto Verde”. Nele, está previsto que todas as agências devem suspender imediatamente o pagamento de fundos garantidos através do Inflation Reduction Act de 2022 ou do Infrastructure Investment and Jobs Act, incluindo, mas não apenas, os fundos dirigidos a postos de carregamento de veículos elétricos. De acordo com o Financial Times, Trump está a travar a aplicação de mais de 300 mil milhões de dólares na transição verde. Todas as agências devem rever os seus processos, políticas e programas para conceder apoios, contratos ou outros, de acordo com as orientações de proteção dos recursos endógenos.

Os responsáveis das agências têm 90 dias para reportar à direção do Gabinete de Gestão e Orçamento (OMB, na sigla em inglês) assim como ao Conselho Económico Nacional (NEC, também em inglês) as conclusões desta revisão, incluindo recomendações para reforçar o alinhamento com a ordem executiva. Estará nas mãos da direção do OMB e do assistente do presidente para a Política Económica determinar se os pagamentos são consistentes com as novas recomendações.

Sobre esta opção, “não há nenhuma lógica económica, é mesmo irracional“, considera João Galamba, ex-secretário de Estado da Energia e consultor nesta área, olhando sobretudo ao afastamento de uma fonte de energia madura como a eólica, que o presidente atacou num discurso recente, ainda antes de tomar posse. O mesmo sublinha que o IRA pôs em marcha um conjunto de investimentos que não travaram o papel dos Estados Unidos como superpotência do gás natural e do petróleo.

Angela Lucas, consultora do Centro para Negócios Responsáveis da Universidade Católica, considera que “vai ser um grande desafio perceber se os Estados Unidos vão realmente abandonar por completo esses projetos“, uma vez que estes estão muitos desenvolvidos, e outros em desenvolvimento, e podem gerar um conflito interno no partido Republicano tendo em conta a presença forte desta indústria em Estados republicanos. “Acredito que pelo menos no caso dos projetos mais assentes haja um lobbying forte e que não exista um abandono total” e os próprios Estados podem assumir uma postura mais vanguardista e autónoma, indica. Francisco Ferreira, presidente da Zero, assume que a administração pode inclusivamente deparar-se com processos na justiça por parte de alguns promotores de projetos de energia renovável.

China e Europa podem agarrar oportunidade. Mas também há ameaças

Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, corrobora que não parece existir “nenhuma razão objetiva para tentar travar o desenvolvimento das energias renováveis”, e prevê inclusivamente que “vai haver uma resistência” a esse travão, sobretudo à boleia da China que, apesar de ser o maior emissor de gases com efeito de estufa no mundo, “tem investido muito em energias renováveis e vai continuar a fazê-lo”. “A China é o ‘grande opositor’ na boca de Trump”, assinala Angela Lucas, ao mesmo tempo que alerta que, desta forma, Trump abre “ainda mais” o caminho a China para se afirmar nas indústrias da transição energética, um comboio em que a China “já está muito à frente” e que os Estados Unidos podem perder. “Apesar de a China ser o vilão das COP [Conferências do Clima das Nações Unidas], continua a bater todos os recordes em renováveis”, assinala ainda Galamba. O mesmo prevê que a Europa acabe por reforçar a sua colaboração com este país, que pode preencher o vazio criado pelos Estados Unidos na indústria renovável. “É incontornável”.

Além disso, abre-se a “oportunidade” de o Velho Continente receber os fundos para a transição que fiquem disponíveis com a retirada dos Estados Unidos deste panorama, avalia o ex-secretário de Estado. “Será mais que tudo um tema de rapidez, de timings”, acrescenta Angela Lucas pois, apesar de reconhecer que “cada vez mais há argumento para o abandono do fóssil”, assume que pode existir uma desaceleração face à posição dos Estados Unidos. “O papel da Europa é crítico para si própria” e “pode definhar” avisa. Filipe Duarte Santos não descarta que uma retração neste tipo de investimento nos Estados Unidos possa ter um “efeito de contágio” noutros países ocidentais. Alerta, por exemplo, que o Heartland Institute, um think tank que nega as alterações climáticas e faz lobby pela indústria fóssil, tem vindo a unir-se com partidos de extrema direita na Europa, tal como foi noticiado pelo The Guardian. “A Europa tem de estar consciente do que se está a passar e tomar as decisões necessárias” defende.

Carro elétricoLusa

Em paralelo com as energias renováveis, os veículos elétricos são também particularmente atacados ao longo da ordem executiva, que pretende eliminar o “mandato dos veículos elétricos” e “promover a verdadeira escolha do consumidor”, removendo por exemplo barreiras regulatórias para veículos a motor. Quer ainda terminar, “onde apropriado”, isenções relacionadas com emissões “que funcionam de forma a limitar as vendas de veículos movidos a gasolina”, ao mesmo tempo que considera eliminar os “subsídios injustos” e outras “distorções de mercado” que favorecem os elétricos.

Neste capítulo, a mensagem é confusa, sobretudo dada a crescente proximidade entre o presidente Donald Trump e o CEO da Tesla, Elon Musk. Angela Lucas acredita que esta relação pode também acabar por travar, na prática, uma execução mais radical destas políticas.

Gás, petróleo e minerais críticos ganham nova força

Mas não serão apenas os fundos para a transição verde, lançados pela administração de Joe Biden, que serão revistos. O texto prevê uma “revisão imediata” de todas as ações de agências que potencialmente pressionam o desenvolvimento de recursos de energia domésticos. O mesmo texto enumera os recursos que merecem “particular atenção”: petróleo, gás natural, carvão, hídricas, biocombustíveis, minerais críticos e energia nuclear, deixando de fora a energia eólica, solar e novas fontes como o hidrogénio verde. São dados 30 dias aos responsáveis de cada agência nacional para desenvolverem e começarem a implementar planos de ação, no sentido de “suspender, rever ou rescindir” todas as ações que entrem em conflito com esta política.

Numa ótica de “proteger a segurança nacional”, o texto avança várias determinações no sentido de acelerar a aprovação de projetos de gás natural liquefeito. No que toca à mineração, vão ser reavaliados os terrenos que, de momento, não permitem esta atividade, e o urânio vai ser considerado para entrar na lista de minerais críticos. Em paralelo, vai ser analisado que projetos estrangeiros desta área usufruem de apoios noutros estados e estarão a “restringir” o comércio nos Estados Unidos. “O secretário do Comércio deverá avaliar as implicações em termos de segurança nacional da dependência de minerais por parte da nação e o potencial para ações comerciais”, lê-se na ordem executiva.

O membro sénior do Bruegel, Georg Zachman, destaca como “principal aspeto” da ordem executiva o facto de “forçar diferentes autoridades a aliviar constrangimentos” a projetos de petróleo e gás. O alcance desta orientação ainda é difícil de avaliar, considera. Uma teoria, contudo, é que Trump pretende com isto ameaçar os mercados de petróleo globais com o aumento potencial da produção de petróleo, o que pode levar os países da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) a “abrir as torneiras”. Isto teria o efeito de descer os preços de petróleo a nível mundial a ajudaria Trump a reduzir a inflação, ao mesmo tempo que afetaria negativamente países como a Rússia e o Irão.

Em paralelo, “a aposta adicional no setor do gás não me parece que vá ter grande impacto”, afirma Galamba, balançando que o número de autorizações para exploração e exportação atuais já “são mais que suficientes” para aumentar a oferta de gás natural, apesar de Biden ter, anteriormente, banido a emissão de novas licenças de exploração. Concretizar o que está previsto já seria muito significativo. É questionável se há procura para esse volume todo“, afirma. Este tipo de investimentos “são muito avultados” e requerem “compradores firmes” e, embora a Europa esteja numa fase especialmente necessitada em relação ao gás, a previsão de mais longo prazo é que estas necessidades sejam decrescentes, complementa.

Na mesma linha, Francisco Ferreira, presidente da organização ambiental Zero, assinala que não é certa a disponibilidade por parte das empresas petrolíferas para fazer novos investimentos, já que, mais tarde, podem enfrentar resistência de uma próxima administração, e estes precisam de um período significativo para serem amortizados e rentabilizarem, ao passo que as próprias instalações demoram tempo a erguer-se.

Clima em cheque

A maior das consequências, acredita Alice Khouri, responsável do departamento Legal da energética Helexia, é “ter uma das maiores economias mundiais, e maiores poluidores também (o segundo maior responsável por emissões de gases de efeito estufa a nível mundial), a oficialmente deixar de considerar as metas e limites que o Acordo de Paris”, o que considera “muito perigoso” em termos do objetivo de conter e reverter as alterações climáticas. “Sem a cooperação e o financiamento de todos os países, especialmente de um país com tanto impacto financeiro mundial e emissor de GHG, será mais difícil fazer progressos”, lamenta. Ainda assim, Angela Lucas ressalva que a descarbonização “pode-se atrasar mas não vai morrer o caminho rumo à transição energética, porque os EUA saem do acordo de Paris”.

O membro sénior do Bruegel vê dois grandes riscos para a transição energética, que decorrem das novas políticas norte-americanas. Por um lado, preços mais baixos do petróleo podem reduzir a competitividade de tecnologias de baixo carbono, atrasando o respetivo desenvolvimento. Por outro lado, a aposta no fóssil dita que os consumidores continuarão a usar produtos com base em energia fóssil, tanto os domésticos (do aquecimento até carros a combustão) como os industriais, o que vai tornar “muito complicado descarbonizar, até para o próximo presidente”.

Francisco Ferreira fala num “retrocesso enorme”, com a saída do Acordo de Paris, e relembra a responsabilidade histórica dos Estados Unidos ao nível das emissões de gases com efeito de estufa, que “devia ser assumida devidamente”. Esta posição dos Estados Unidos poderá, inclusivamente, servir de “desculpa” para outros países decidirem não atuar no quadro do Acordo de Paris, prevê. Em paralelo, e apesar de considerar expectável a saída do Acordo de Paris, o presidente da Zero que “é na mudança de direção em relação à legislação ambiental que se nota uma agressividade maior”, assim como na declaração de emergência energética.

"Infelizmente, serão as consequências das alterações climáticas a traduzir-se economicamente e a obrigar a um retrocesso [destas novas políticas].”

Francisco Ferreira

Presidente da Zero

A ordem executiva exibe ainda uma lista das ações presidenciais e regulatórias que devem ser revogadas ou revistas. Entre elas, encontram-se várias referentes às alterações climáticas. É desmantelado o grupo de trabalho para o Custo Social dos Gases com Efeito de Estufa, sendo descartados quaisquer documentos e recomendações feitas pelo mesmo, para efeitos de políticas governamentais. Entre os documentos que deixam de ser considerados está o Relatório de Monitorização e Medição dos Gases com Efeito de Estufa, que se integrava na Estratégia Nacional para Avançar numa Medição, Monitorização e Sistema de Informação Integrados dos Gases com Efeito de Estufa nos Estados Unidos.

Uma ordem que já conta décadas, remontando a 1977 e assinada pelo presidente Jimmy Carter, e que se debruça sobre a proteção ambiental nos processos de licenciamento, é desde já revogada, com o objetivo de um “licenciamento eficiente”. Neste capítulo, os responsáveis de todas as agências relacionadas “devem encetar todos os esforços possíveis para eliminar todos os atrasos nos processos de licenciamento”. A administração quer facilitar o licenciamento e construção de infraestrutura de transporte de energia e outra infraestrutura crítica, com destaque para gasodutos. As agências “não podem usar metodologias que são arbitrárias ou motivadas ideologicamente”, lê-se ainda.

Fazendo um balanço geral, a conclusão não é positiva. As políticas da nova administração norte-americana têm “resultados negativos para todos mas também para os Estados Unidos, a longo prazo. Torna-se difícil perceber em que medida podem existir resultados positivos”, pontua João Galamba. E Francisco Ferreira remata: “Infelizmente, serão as consequências das alterações climáticas a traduzir-se economicamente e a obrigar a um retrocesso [destas novas políticas]”.

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