Dirce Rente, sócia da Eversheds Sutherland à frente do departamento de Penal, Contraordenacional e Compliance, em entrevista à Advocatus.
Em setembro de 2023, a Eversheds Sutherland reforçou o seu posicionamento no mercado nacional e internacional com a criação de um novo Departamento de Penal, Contraordenacional e Compliance com a contratação de Dirce Rente.
Com mais de 15 anos de prática, com especial enfoque na criminalidade económica e transfronteiriça, Dirce Rente fez o seu percurso profissional na PLMJ e tem vindo a ser reconhecida, por vários diretórios e publicações internacionais, como uma referência na nova geração de advogados. Diversas vezes destacada como Rising Star e Recommended Lawyer pelo The Legal 500, pelo Expert Guide e pelo Europe Rising Star Awards do Euromoney Legal Media Group e shortlisted nos Iberian Lawyer Forty under 40 Awards na categoria de white collar crime. Tem também experiência acumulada no direito das contraordenações e na assessoria a empresas, nacionais e internacionais, na vertente do Compliance. Faz parte da Direção do Forum Penal – Associação de Advogados Penalistas e é membro do Legal Experts Advisory Panel do Fair Trials International.
![Dirce Rente, sócia da Eversheds Sutherland FCB, em entrevista ao ECO/Advocatus - 06NOV23](https://ecoonline.s3.amazonaws.com/uploads/2023/11/dirce-rente06.jpg)
Dia 25 de novembro de 2024, entrou em funcionamento a Plataforma RGPC. Como avalia esta plataforma?
Creio que tem potencial para ser um meio eficaz no exercício das atribuições do MENAC, designadamente no controlo da implementação do Regime Geral de Prevenção da Corrupção (RGPC). Porém, tem estado envolvida em polémica desnecessária – nomeadamente no que concerne a quem é obrigado a fazer o registo na Plataforma e submeter a respetiva documentação – e tem-se traduzido num mecanismo de pressão desnecessária para as entidades obrigadas (em particular quando considerando o primeiro prazo estabelecido, 31 de dezembro de 2024 – entretanto estendido para 14 de fevereiro de 2025 – coincidente com o fecho do ano operacional nas empresas).
O MENAC tem um papel pedagógico muito importante, pelo que mais do que guias e orientações que reiteram o teor da Lei, que lhe acrescentam pouco ou que são até incompatíveis com o dia-a-dia de uma organização, são necessárias recomendações e clarificações cirúrgicas, claras, rigorosas e exequíveis.
Diz que é obrigatória para as empresas privadas. Isso decorre da lei?
Não. Não decorre da Lei nem o registo na Plataforma, nem a submissão de documentação através dela por parte das entidades privadas. O envio de informação ao MENAC, por defeito, está apenas previsto para as entidades públicas. De acordo com o RGPC, as entidades privadas têm, ao invés, obrigações de publicitar aos seus trabalhadores determinados elementos do seu Programa de Cumprimento Normativo, através da sua intranet e da sua página de internet. Admito que o MENAC, no exercício das suas atribuições, possa interpelar as empresas no sentido de lhe serem disponibilizadas evidências do cumprimento das obrigações legais – mas o RGPC não prevê qualquer sanção para o não cumprimento de uma instrução emitida pelo MENAC, pelo que o risco aqui presente será de o MENAC poder concluir, porventura de forma prematura, pelo incumprimento das obrigações legais que recaem sobre a empresa.
Como está a ser o grau de implementação das empresas?
Muitas empresas já tinham implementado, de forma orgânica, instrumentos para prevenção dos riscos de corrupção e crimes conexos – por necessidade do próprio negócio e, quando pertencentes a Grupos internacionais, também por força de legislação de outros países e de uma sensibilidade para estes temas mais consolidada e, também por isso, mais transversal. Sem prejuízo, o RGPC veio impulsionar e robustecer práticas existentes, e alargá-las a um universo de entidades a que ainda não tinham chegado.
Diria que, no presente, a grande maioria das empresas em Portugal já está alerta para as obrigações legais, para os riscos subjacentes e para a necessidade de adotar e implementar mecanismos de prevenção eficazes e adaptados à sua realidade.
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Agora uma pergunta mais abrangente: como avalia a atuação do MENAC?
Considero que tomar medidas para acompanhar a aplicação da Lei é positivo. Sem enforcement a lei acaba por ter pouco efeito útil e isso já foi constatado em outros países da Europa a propósito, precisamente, de legislação preventiva no domínio penal. Mas parece-me que há caminho a percorrer no sentido de o MENAC se afirmar como referência ou polo orientador na boa interpretação e aplicação da Lei. O MENAC tem um papel pedagógico muito importante, pelo que mais do que guias e orientações que reiteram o teor da Lei, que lhe acrescentam pouco ou que são até incompatíveis com o dia-a-dia de uma organização, são necessárias recomendações e clarificações cirúrgicas, claras, rigorosas e exequíveis. Creio que situações como a que se tem vivido agora quanto à Plataforma não prestigiam o papel do MENAC, o que é uma perda para todos, porque de facto todos temos a ganhar com a implementação transversal de boas práticas na prevenção dos fenómenos criminais.
Faz sentido a fase de instrução deixar de existir, no processo penal?
Quando eu comecei a trabalhar, a fase de instrução era algo (muito) diferente do que é hoje, tal qual vem sendo configurada, de forma (mais ou menos) estabilizada, na prática forense, salvo honrosas exceções. E, portanto, tendo memória de como a instrução pode (e deve) funcionar, tenho dificuldades em dizer-lhe que é uma fase que deve deixar de existir. Continuo a crer que submeter alguém a um julgamento criminal deve ser uma medida de última ratio e continuo a acreditar na função do Juiz de Instrução, enquanto juiz dos Direitos, Liberdades e Garantias. E, por isso, entendo que a instrução pode ter uma função muito importante de retificar situações onde manifestamente se não justifica submeter determinada pessoa a julgamento. Ao mesmo tempo que permite aliviar os tribunais criminais, evitando que se aloquem meios técnicos e humanos a processos que manifestamente não têm cabimento numa fase de julgamento. Isto para lhe dizer que continuo a acreditar que a fase de instrução tem lugar no nosso processo penal, tal qual o mesmo está configurado. Será apenas necessário, para que se lhe devolva a dignidade e razão de existir, que se regresse um pouco às origens e aos fundamentos que lhe estão subjacentes.
Como avalia as alterações já alinhavadas pela senhora ministra da Justiça ao CPP?
Parecem-me muito salutares os pressupostos de que parte a senhora Ministra da Justiça: a proteção da vítima, o combate e prevenção da corrupção como fenómeno que a todos afeta, reforço de meios, uma justiça eficaz e para todos.
Quanto a medidas concretas, e face ao que já foi divulgado: aplaudo a criação do Grupo de Trabalho sobre o instituto da perda alargada de bens – é um mecanismo a que falta definição, regulamentação e, acima de tudo, necessita ser recentrado nos seus eixos fundamentais. A lei existente não é clara nem uniforme, colocam-se dúvidas quanto à própria natureza do instituto e, em muitos casos, quanto à sua própria conformidade com a lei constitucional; não despiciendo, faltam regras processuais que determinem, de forma clara, os direitos processuais dos visados por um pedido de perda. Pelo que é de aplaudir que a reforma se faça, que a mesma esteja assente numa reflexão profunda levada a cabo por reconhecidos profissionais e com estas lacunas identificadas. Quanto às demais anunciadas alterações ao Código de Processo Penal, teremos de aguardar por mais detalhes e, em particular, pela proposta a apresentar pelo Grupo de Trabalho que se irá dedicar às questões da celeridade processual e da eficácia da justiça penal, nomeadamente no âmbito dos megaprocessos.
Aplaudo a criação do Grupo de Trabalho sobre o instituto da perda alargada de bens – é um mecanismo a que falta definição, regulamentação e, acima de tudo, necessita ser recentrado nos seus eixos fundamentais. A lei existente não é clara nem uniforme, colocam-se dúvidas quanto à própria natureza do instituto e, em muitos casos, quanto à sua própria conformidade com a lei constitucional; não despiciendo, faltam regras processuais que determinem, de forma clara, os direitos processuais dos visados por um pedido de perda.
O que faz falta no Ministério Público?
Informalidade saudável. Não quero com isto dizer que deve existir processo fora das páginas do mesmo ou que a justiça se deva tramitar por meios paralelos. Sou muito ciosa das nossas regras processuais formais e elas existem para serem cumpridas. Quero apenas dizer que, por vezes, um “quê” de informalidade e abertura do Ministério Público aos sujeitos processuais ou partes envolvidas pode ser determinante não só para a celeridade processual, mas para a boa decisão do caso e para a boa administração da justiça.
Para não me alongar, dou-lhe apenas um exemplo prático, na perspetiva das vítimas: Alguém foi vitima de um ciberataque: os suspeitos neste tipo de situações são muito rápidos, estão em constante movimento e evolução, pelo que a celeridade na investigação criminal é imprescindível. Noutros países da Europa, o advogado apresenta uma queixa, mas tem também os recursos para entrar em contacto com as autoridades e, em menos de 24 horas, tem o Ministério Público e a Polícia nas instalações da empresa, a recolher a prova que lhes permita, de imediato, identificar a fonte do ataque e evitar que se continuem a provocar danos – para a empresa em causa e para outras potenciais vítimas. São disponibilizados números de contacto diretos, a troca de informação é constante e a investigação acaba por decorrer de forma muito mais célere e eficaz, porque o próprio queixoso consegue contribuir para a investigação com dados que são muitas vezes fundamentais e que vão sendo recolhidos ao longo do tempo. Permite à investigação ir-se adaptando e evoluindo de acordo com as circunstâncias.
Em Portugal, após apresentação da queixa-crime, não é raro o advogado não conseguir sequer falar com o Procurador responsável pela investigação. Às vezes, decorrente de especial insistência, lá se consegue falar com a polícia criminal (quando não são necessários dias, ou semanas, para atribuir um responsável à investigação) e sensibilizar a investigação para as medidas concretas que poderia fazer sentido adotar no caso para identificar os suspeitos e tomar medidas preventivas de continuação da atividade criminosa. Mas, por exemplo, se se recolhem dados adicionais: apresenta-se um aditamento à queixa e aguarda-se que o processo seja analisado, o que raramente é compatível com os timings da atividade criminosa. Aguarda-se que sejam requeridas informações formais às instâncias competentes (por exemplo, recolha de informação bancária) e age-se apenas com base nisso – dias, ou semanas, após. Poderia ter-se agido com base na informação preliminar disponibilizada pelo queixoso, adaptando-se a investigação em conformidade com a informação que se vem a aportar para o processo. Mas em Portugal, isto dificilmente acontece. A norma é uma investigação excessivamente formalista e demorada. E, atualmente, obsoleta e incompatível com as exigências do mundo moderno.
Os mega processos são os responsáveis pela demora na Justiça Penal?
Os mega processos não trazem nada de bom à celeridade da Justiça Penal, mas também não são os responsáveis por todo o “mal do mundo”. Não há dúvida nenhuma que os mega processos se arrastam por anos, e todos perdemos com isso: perdem os juízes, que se vêm a braços com processos ingeríveis; perdem os advogados, que não têm o dom de se multiplicar para estar presente em processos que têm marcações de julgamento 4 ou até 5 dias por semana, já não falando do tempo necessário para a preparação de um julgamento num processo destas dimensões; perde a sociedade, que aloca meios e recursos para a gestão de processos cujos resultados se não materializam em tempo útil, gerando sentimentos de ineficácia, impunidade e ineficiência; mas sobretudo perdem as pessoas envolvidas – os arguidos, que são bastas vezes condenados em praça pública e dificilmente, mesmo quando absolvidos, conseguem reverter os danos que já foram provocados, quer nas vidas profissionais, quer nas vidas pessoais (imagine-se o impacto emocional e familiar que implica ter uma “espada de dâmocles” pendente por 5, 10, 15 anos..) e as vítimas, que têm também direito de ver os seus direitos afirmados, de encerrar o tema, de ver justiça feita.
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Recentemente, Conselho Superior da Magistratura (CSM) propôs a alteração da lei processual penal para evitar atrasos excessivos nos processos, a reformulação da instrução criminal, um combate aos expedientes dilatórios e mais recursos tecnológicos e humanos adequados aos juízes para enfrentar a complexidade dos mega processos. São medidas adequadas?
Creio que teremos de aguardar pelo relatório final para poder tirar as nossas conclusões, mas sim, pelo menos em teoria, medidas nessas áreas poderão contribuir para uma maior celeridade processual. Não sei se será apresentada alguma proposta no que se refere à fase de inquérito que, na minha opinião, é a fase onde as delongas processuais, por uma ou outra razão, mais se concentram.
Se fosse ministra da Justiça, que medida tomaria em primeiro lugar?
Reforço de meios, técnicos e humanos nos Tribunais, Ministério Público e órgãos de polícia criminal e aposta na formação transversal, mas especializada, para as funções exercidas.
A lei do lobby vai ajudar a esclarecer e tornar certos contextos mais transparentes?
Sim. Creio que estabelecer fronteiras entre o lícito e ilícito é benéfico – evita que se crie um sentimento generalizado de incerteza e suspeição relativamente a determinadas situações que nada têm de ilegal. E potencia quer a participação da sociedade na atividade governativa, de uma forma mais generalizada e igualitária, quer um maior escrutínio do poder público.
O que pode ser melhorado para não termos processos a durarem tantos anos?
A organização de processos mais pequenos e focados em termos de matéria, sempre que possível;
Recolher os contributos das partes e intervenientes processuais que permitam agilizar e tornar o andamento do processo mais célere e eficiente; e aposta na eficiência da fase de investigação, com reforço de meios, agilização de processos e porventura com o determinar de consequências reais para a ultrapassagem dos prazos máximos de inquérito definidos por lei – em Portugal, a única grande consequência processual existente é que num processo em segredo de justiça, a ultrapassagem do prazo de inquérito confere ao arguido, ao assistente e ao ofendido um direito de acesso ao processo (passam, por exemplo, a poder consultá-lo). E até isso tem vindo a ser de algum modo ultrapassado, neste tipo de criminalidade de que vimos falando, por uma interpretação legal que permite que o acesso seja vedado por períodos adicionais – e, na prática, ad eternum, até a investigação findar.
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“Os megaprocessos não são os responsáveis por todo o mal do mundo”
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