Empresa de Montenegro praticou atos exclusivos de advogados?
Ficam ainda no ar dúvidas relativamente aos atos praticados pela empresa de Montenegro. Se configuram, ou não, atos jurídicos que - até abril de 2024 - eram exclusivos de advogados.
A criação da empresa familiar de Luís Montenegro – a Spinumviva -ganhou contornos políticos este mês, levantando questões sobre o papel que o primeiro-ministro ainda terá nesta sociedade e levando o líder do Executivo a desafiar a oposição a apresentar uma moção de censura, o que acabou por acontecer, por iniciativa do PCP. Mas, análise política à parte, bem como um potencial conflito de interesses entre o primeiro-ministro e a Solverde, ficam ainda no ar dúvidas relativamente aos atos praticados pela própria empresa. Se configuram, ou não, atos jurídicos que – até abril de 2024 – eram exclusivos de advogados e só poderiam ser exercidos em contexto de uma sociedade de advogados e não de uma sociedade comercial.
Mas vamos por partes. Em 2021, Luís Montenegro – ainda só um quadro social-democrata e que já levava consigo uma derrota na corrida à liderança do partido, que ficou nas mãos de Rui Rio – cria a Spinumviva e, em julho do mesmo ano, o grupo Solverde começa a pagar uma avença à empresa, que subiu para 4.500 euros mensais em maio de 2022. Nesse mesmo mês, Montenegro passa a líder do PSD mas só um ano depois decide vender a quota que detinha na sociedade comercial à mulher. Contrato esse que, perante o Código Civil, é nulo e não tem efeitos práticos, visto que o casal está casado em comunhão de adquiridos.
Mas o que é então esta empresa familiar e em que moldes foi constituída?
Na sexta-feira, instada pelo próprio Montenegro, a empresa em questão envia uma explicação de três páginas em que começa por expor “as empresas que mantêm um vínculo permanente com a consultora Spinumviva na área da implementação e desenvolvimento de planos de ação no âmbito da aplicação do Regulamento Geral de Proteção de Dados”. Mas, lendo o comunicado na íntegra, depressa se percebe que os atos praticados pela empresa familiar não se limitam a assessorar empresas para aplicação do RGPD e que há indícios de prática de atos de consultoria jurídica.
E é aqui que surgem uma questão que continua sem explicação. Em que termos foram prestados serviços jurídicos de consultoria que, pela lei dos atos próprios dos advogados vigente à data, só podiam ser prestados por sociedade de advogados? Coisa que a Spinumviva não é mas cujos colaboradores são uma advogada e um jurista. Ponto que foi, aliás, levantados pela socialista Alexandra Leitão, na CNN Portugal, e que continua sem resposta.
O que são os atos próprios dos advogados?
Desde abril de 2004 que o “Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores” foi alterado, definindo o alcance dos atos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipificando ainda o crime de procuradoria ilícita. Uma alteração que surge na sequência de obrigações europeias, com a alteração da Lei das Associações Públicas Profissionais.
Os mais relevantes atos reservados aos advogados e solicitadores são no exercício de um mandato que é, no fundo, a representação legal de uma pessoa em tribunal. Mas não só. São também os atos de consulta jurídica como a elaboração de contratos e a prática dos atos preparatórios à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais, a negociação para cobrança de créditos ou o exercício do mandato no para reclamação ou impugnação de atos do Estado ou do Fisco. E que são exclusivos de advogados e solicitadores e não podem ser realizados por consultoras ou empresas comerciais, como é o caso da de Montenegro. Caso aconteça, estamos perante o caso de procuradoria ilícita, punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
Tendo sido tornado público que a empresa da família do primeiro-ministro prestou serviços jurídicos a entidades terceiras e tendo Luís Montenegro exercido os mesmos a título individual e não através de uma sociedade de advogados, podemos equacionar essa hipótese. Questionada pelo ECO/Advocatus, a bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, não se mostrou disponível para esclarecer se podemos estar perante o caso de procuradoria ilícita.
Mas, segundo advogados contactados pelo ECO, a doutrina diverge. O advogado Paulo Saragoça da Matta considera que sim, que parece “claro que estamos perante procuradoria ilícita” mas já o líder do Conselho Regional do Porto da OA, Jorge Barros Mendes, disse ao ECO que não considera que seja o caso. Este é o órgão da OA que faz o crivo dos advogados que trabalham na empresa de Luís, Carla, Diogo e Hugo Montenegro, já que estão inscritos na regional do Porto. Paulo de Sá e Cunha, atual presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, também considera que não estamos perante um caso de procuradoria ilícita.
José Costa Pinto, advogado e candidato a bastonário da OA, defende, ao ECO, que “não conhecemos os detalhes da atuação da sociedade da família do Primeiro-Ministro, nem os serviços efetivamente prestados. Para além das questões de avaliação política, que não me cumpre apreciar, cabe-me assinalar a importância de, neste e noutros casos, serem investigados e clarificados eventuais indícios de procuradoria ilícita“. Porém, sublinha que a sua candidatura “tem sido a única a defender com firmeza a revisão do quadro regulatório da advocacia e a proteção dos atos próprios dos advogados. Além disso, propomos medidas concretas para garantir justiça fiscal, como o fim da transparência fiscal, a redução do IVA de 23% para 6% e o reconhecimento fiscal dos custos com serviços jurídicos” porque, defende, que “o atual enquadramento legal permite demasiadas zonas de ambiguidade, comprometendo a proteção dos cidadãos no acesso a aconselhamento jurídico qualificado e enfraquecendo as prerrogativas dos advogados. É por isso que propomos iniciativas como a “Defesa 24h”, um canal direto entre os Advogados e a sua Ordem para denunciar ameaças ao exercício profissional, incluindo casos de procuradoria ilícita”.
António Jaime Martins, advogado e ex-dirigente da OA – atual candidato ao Conselho Superior – defende que os atos referidos pela empresa “exigem qualificação jurídica. E mesmo agora a consultoria jurídica por empresas está sujeita a requisitos apertados
e neste caso a empresa nem sequer é uma multidisciplinar pois não tem sócios advogados”. Relembrando que, mesmo com as alterações introduzidas pela Lei n.º 10/2024 (publicada a 19 de janeiro de 2024 e em vigor deste abril deste ano), a prestação de serviços de consulta jurídica continua sendo uma atividade reservada aos profissionais e entidades que se enquadrem expressamente nas hipóteses previstas na lei.
Outra questão remete-nos para o regime de tributação em causa. Sendo uma empresa comercial, está sujeito ao regime geral de IRC mas, caso fosse uma sociedade de advogados, o regime seria o da transparência fiscal.
A transparência fiscal é o regime obrigatório que incide sobre certas pessoas coletivas – como as sociedades de advogados – em que não são tributadas em sede de IRC. Sendo, ao invés, os respetivos sócios tributados diretamente em sede de IRS.
No sábado, Luís Montenegro revelou que vai deixar de ter qualquer interesse, ainda que indireto, na sua empresa Spinumviva, ao passar todo o capital para os seus filhos (atualmente está dividido entre estes e a sua esposa, com quem é casado em comunhão de bens). A sede da empresa, atualmente na casa da família Montenegro, também será alterada.
“Relativamente à empresa familiar, ela será doravante totalmente detida e gerida pelos meus filhos. Mudará a sua sede e seguirá o seu caminho exclusivamente na esfera da vida deles“, anunciou. Montenegro defendeu ainda que prestou todos os esclarecimentos, mas apontou o dedo à oposição e considerou que “para alguns” as explicações nunca serão “suficientes”. “Este é um ciclo vicioso que muitos desejam”, criticou. “A exposição a que fui sujeito com a minha família chegou a um limite que nunca imaginei. Não me queixo, sei que sou primeiro-ministro porque quis e porque os portugueses me confiaram”, disse, garantindo: “Não pratiquei nenhum crime, nem tive nenhuma falha ética“.
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