Empresas portuguesas testam soluções para dar “passaporte digital” aos produtos

Um regulamento técnico e de difícil leitura, o investimento em digitalização e a "concorrência desleal" são os principais desafios. Do calçado à cutelaria, várias empresas já estão a testar soluções.

É já a partir do próximo ano que as empresas vão ser obrigadas a ter um Passaporte Digital do Produto (DPP), uma iniciativa da União Europeia que tem como objetivo aumentar a transparência e rastreabilidade na indústria. Uma obrigatoriedade que está a desafiar o tecido empresarial, que passará a ter de recolher e organizar dados que até agora não eram obrigatórios — e para a qual as empresas parecem ainda não estar preparadas.

Um regulamento demasiado técnico e ainda indefinido, o investimento em tecnologia e o desafio de reorganização das empresas estão entre as principais dificuldades apontadas. Outro dos obstáculos enumerados pelos especialistas ouvidos pelo ECO é a “concorrência desleal” face a empresas de países terceiros, que não são obrigadas a ter o Passaporte Digital do Produto.

Os têxteis, a par de grupos de produtos como mobiliário e equipamentos eletrónicos, são considerados prioritários na definição de requisitos de conceção ecológica. E serão objeto do primeiro plano de trabalho da Comissão, que deverá ser adotado nos próximos dias.

O presidente da Associação Nacional das Indústrias do Vestuário e Confeção (Anivec) lamenta que o Passaporte Digital do Produto seja “uma obrigação para as empresas europeias e não para as empresas de países terceiros”, recordando que “mais de 85% dos produtos têxteis e vestuário consumidos na Europa têm proveniência de países terceiros”. César Araújo considera que esta regulamentação é “concorrência desleal”.

O Passaporte Digital do Produto é uma obrigação para as empresas europeias e não para as empresas de países terceiros. Isto é uma concorrência desleal.

César Araújo

Presidente da Anivec

O Centro Tecnológico das Empresas do Setor Têxtil e Vestuário (Citeve) tem realizado investimentos em ferramentas tecnológicas — desde o armazenamento de dados até à disponibilização e interoperabilidade — que cobrem aspetos essenciais para a operacionalização futura do Passaporte Digital do Produto neste setor tradicional.

Há quatro anos, o diretor geral do Citeve, Braz Costa, já avisava que era “imprescindível criar indicadores que melhorem a transparência, rastreabilidade e avaliação do ciclo de vida das peças”. Uma espécie de um bilhete de identidade das peças de roupa.

O Passaporte Digital do Produto vai reunir informações essenciais sobre um produto, nomeadamente a composição, origem, impacto ambiental e circularidade – e que poderá ser acedido ao longo de toda a cadeia de valor pelos consumidores.

Para ajudar as empresas neste processo foi criado o Greentech Lab, um projeto que faz parte da Rede Nacional de Test Beds e concebido para apoiar as pequenas e médias empresas na transição para a sustentabilidade. “Aqui, as empresas podem experimentar soluções, perceber o que funciona e como se adaptar antes de terem de cumprir a regulamentação de forma obrigatória”, refere João Pedro Pinto, partner da Aliados Consulting, entidade promotora do projeto.

“O nosso objetivo é tornar esta mudança mais simples e acessível para as empresas, transformando um desafio numa oportunidade”, afiança o partner da Aliados Consulting. João Pedro Pinto explica ao ECO que as empresas vão ter de “investir em tecnologia para garantir que essa informação está acessível digitalmente” e “adaptar processos internos e a relação com fornecedores para cumprimento dos novos requisitos”.

As empresas vão ter que investir em tecnologia para garantir que essa informação está acessível digitalmente e adaptar processos internos e a relação com fornecedores para cumprimento dos novos requisitos.

João Pedro Pinto

Partner da Aliados Consulting

No entanto, o partner da Aliados Consulting considera que, apesar destes desafios, o DPP irá trazer benefícios, como uma maior confiança por parte dos clientes, a otimização da cadeia de abastecimento e novas oportunidades de negócio.

Numa primeira fase, as empresas têm de perceber que informações vão ter de fornecer sobre os seus produtos. “Isso significa fazer um levantamento detalhado dos dados que já recolhem e dos que ainda precisam de começar a registar – desde a composição dos materiais até à pegada ambiental”, detalha João Pedro Pinto.

As regras do Passaporte Digital do Produto ainda estão a ser fechadas e podem variar consoante o setor. O partner da Aliados Consulting aconselha as “empresas a estarem atentas às atualizações para garantir que cumprem os requisitos desde o início”.

“Não basta ter a informação – é preciso estruturá-la de forma digital e garantir que pode ser facilmente partilhada ao longo da cadeia de valor”, afirma João Pedro Pinto, acrescentando que “mesmo sem todos os detalhes fechados, as empresas já podem começar por mapear o que têm, o que falta e como se podem adaptar, para não serem apanhadas desprevenidas quando a obrigatoriedade entrar em vigor”.

Qual o grau de preparação?

O partner da Aliados Consulting, entidade promotora do projeto GreenTech Lab considera que a “a maioria das empresas ainda não está preparada”. “Algumas grandes empresas e setores como a eletrónica e a moda já começaram a preparar-se, mas muitas PME ainda desconhecem o impacto que isto terá no seu negócio“, avisa João Pedro Pinto.

Uma opinião partilhada pela Associação Empresarial de Portugal (AEP), que atesta igualmente que as “empresas não estão preparadas”. A associação liderada por Luís Miguel Ribeiro explica ao ECO que “o regulamento que fixa indicativamente os requisitos de desempenho, informacionais e outras obrigações adicionais, é um regulamento base que será posteriormente complementado por atos delegados específicos para cada grande grupo/família de produtos e, esses regulamentos delegados, com a adaptação dos requisitos genéricos fixados no Regulamento Base, ainda não foram publicados”.

“Ainda que já se conheçam genericamente os elementos que irão constituir o Passaporte Digital do Produto, o conhecimento dos aspetos específicos relativos a cada grupo de produtos é condição essencial para as empresas começarem a preparar o seu “sistema” de produção e recolherem informação a fim de conseguirem disponibilizar o documento”, refere o líder da AEP.

O presidente da Anivec considera que o têxtil e o vestuário estão preparados para a rastreabilidade, embora considere que existem indefinições no regulamento. “Não podemos dizer que estamos preparados sem saber as regras do jogo“, refere César Araújo.

Quais os principais desafios?

Um regulamento técnico e de difícil leitura, o investimento em digitalização e o desafio de reorganização do tecido industrial empresas são alguns dos principais desafios elencados pelos vários intervenientes ouvidos pelo ECO.

O presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP) considera que a “interpretação do próprio regulamento, muito extenso e muito técnico, com muitas remissões, e nem sempre escrito numa linguagem amigável”, é uma grande dificuldade para o tecido empresarial.

Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de PortugalHenrique Casinhas/ECO

A acrescentar à lista das dificuldades, enumera o “desafio da reorganização da empresa, necessária à integração das obrigações substantivas e de informação previstas no regulamento nos procedimentos da empresa, a fim de facilitarem a aplicação do regulamento” e “o investimento na digitalização deste instrumento, sem o qual não é possível dar resposta às exigências do regulamento”.

“Há aspetos do PDP que ainda não se encontram totalmente definidos, o que dificulta a adoção de uma abordagem preventiva por parte dos operadores económicos. De facto, não é fácil preparar aquilo que ainda não se conhece bem”, comentam Raquel Barroso Margarida de Oliveira Pedro, da Abreu Advogados.

A implementação poderá representar um desafio significativo para as empresas portuguesas, especialmente no que diz respeito à rastreabilidade dos produtos ao longo da sua cadeia de valor.

Abreu Advogados

Embora o Passaporte Digital do Produto represente um passo fundamental para a transparência e sustentabilidade no mercado europeu, a Abreu Advogados recorda que a “implementação poderá representar um desafio significativo para as empresas portuguesas, especialmente no que diz respeito à rastreabilidade dos produtos ao longo da sua cadeia de valor”.

Garantir que as informações essenciais sobre os produtos estão disponíveis e são rastreáveis em cada fase do seu ciclo de vida “exige um investimento considerável na aquisição ou desenvolvimento de soluções tecnológicas adequadas, bem como na formação dos trabalhadores”, asseguram as duas especialistas.

Na ótica das porta-vozes da Abreu Advogados, “as mudanças poderão revelar-se particularmente exigentes por prejudicar sobretudo as pequenas e médias empresas, que dispõem de recursos técnicos e financeiros limitados e que, muitas vezes, já enfrentam dificuldades consideráveis ao nível da transição digital e capacitação de recursos humanos”.

O líder da Anivec não tem dúvidas de que o maior desafio das empresas é a “concorrência” desleal perante as empresas de países terceiros que não são obrigadas a ter o Passaporte Digital do Produto. “O setor não está é preparado para a concorrência desleal que a Europa está estimular – que é o que está a acontecer”, considerando que a “Europa está indiretamente a aniquilar setores europeus”.

César Araújo recorda que “quem não cumpre os critérios, consegue pôr um produto mais barato no mercado”. E assegura que a grande maioria dos consumidores europeus não querem saber se o produto tem passaporte ou não; querem é o melhor preço”.

Calçado, cutelaria e embalagens antecipam soluções

Antecipando este desafio, mais de 30 pequenas e médias empresas já estão a testar soluções no GreenTech Lab, a plataforma que permite validar produtos e processos para cumprir os novos requisitos europeus de rastreabilidade, transparência e circularidade.

Embora a cutelaria não esteja abrangida pela obrigatoriedade em 2026 já decretada para indústrias como o têxtil ou o calçado, Emídio Silvério, responsável de sustentabilidade da Herdmar sabe que esse momento há de chegar. E a centenária Herdmar que ser das primeiras a ter um conjunto de talheres que mostre ao consumidor, através de um QR Code, essa informação sobre a compra da matéria-prima, as emissões, os gastos de água ou os métodos de produção.

A Herdmar está a trabalhar com uma consultora e espera ter esse produto no mercado até ao final do ano, como base para um modelo que possa ser extrapolado. “Se as diferenças de preços não forem gritantes”, Emídio Silvério acredita que será algo valorizado pelos consumidores. “Exportamos para mais de 80 países e alguns terão essa consciência e capacidade de absorver” o custo adicional, confia o responsável de sustentabilidade.

Reportagem na Herdmar, fábrica de cutelaria - 17MAR25

A Herdmar é uma das empresas que integra o GreenTech Lab, que na ótica da CEO Clara Marques “permitiu à empresa aceder a uma plataforma de conhecimento e suporte tecnológico para o desenvolvimento de um projeto-piloto centrado na criação do nosso DPP. “Estar na vanguarda do ecodesign e da economia circular é essencial para o futuro da cutelaria de mesa”, resume.

Outra das empresas que integra este projeto é a Procalçado. “Ao integrar esta plataforma, estamos a preparar-nos para os desafios regulatórios e a garantir que os nossos produtos cumprem os mais altos padrões de transparência e circularidade”, diz o responsável de engenharia de materiais. “O DPP reforça a confiança dos consumidores e melhora a eficiência da nossa cadeia de abastecimento, ao facilitar processos de reciclagem, reutilização e promoção da economia circular na indústria do calçado” destaca Rui Martins.

O DPP reforça a confiança dos consumidores e melhora a eficiência da nossa cadeia de abastecimento, ao facilitar processos de reciclagem, reutilização e promoção da economia circular na indústria do calçado.

Rui Martins

Responsável de engenharia de materiais da Procalçado

Já Isabel Neto, gestora de qualidade e ambiente da Sopsa Eco Innovation, salienta que a empresa entrou no GreenTech Lab com o objetivo de se preparar para a implementação do DPP e “antecipar os desafios” que essa transição poderá trazer. “Está a ajudar-nos a definir o caminho a seguir para desenvolvermos um Passaporte Digital dos nossos produtos de forma eficaz e alinhada com as exigências do mercado”.

“Acreditamos que esta mudança terá um impacto positivo tanto na nossa empresa como no setor, impulsionando um mercado mais transparente e eficiente, onde a rastreabilidade e a sustentabilidade sejam normas e não exceções”, corrobora Natércia Garrido, responsável pela gestão da qualidade, ambiente, saúde e segurança no trabalho da Silvex.

A Fapil já tem uma gama Ocean que é produzida com, pelo menos, 20% de plástico marítimo reciclado (artes de pesca) e entre 50% a 80% de plástico terrestre reciclado. “Vivemos uma mudança de paradigma, onde a redução da pegada de carbono e dos gases de efeito estufa é central para a sustentabilidade empresarial”, reforça Sara Teixeira do departamento de sustentabilidade da Fapil.

Apesar do setor alimentar não estar atualmente incluído nas categorias prioritárias para a implementação do DPP, também o CEO da Arcádia conta ao ECO que a empresa “está comprometida em promover a transparência e sustentabilidade na cadeia de valor”. “Continuaremos a monitorizar as diretrizes europeias e a adaptar as nossas práticas para assegurar conformidade com futuras regulamentações que possam impactar o nosso setor”, assegura Francisco Bastos.

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