
Confiscar sem julgar – quando a exceção vira regra
Ao dar às autoridades o poder de confiscar sem condenar, abre-se uma porta que nunca mais se fecha. E em Portugal, onde a Justiça é tudo menos célere, dar mais poder sem mais garantias é temerário.
Há ideias que parecem boas até começarem a ser usadas. E há leis que se apresentam como respostas justas, mas escondem um preço alto, quase sempre pago pelos mais frágeis.
Na mais recente proposta do Governo, pretende-se permitir a perda de bens sem necessidade de condenação em tribunal. Basta a presunção de que aquele património teve origem em atividade criminosa. Não é preciso julgamento. Não é preciso sentença. É preciso apenas… suspeita.
Pausa para respirar.
A inversão do ónus da prova — esta ideia de que o cidadão é que tem de provar que é inocente — não é nova. Mas a sua normalização é. Com esta proposta, não só se rasga o princípio da presunção de inocência, como se instala uma presunção de culpa. A Justiça deixa de ser um árbitro neutro e torna-se parte interessada. E isso, num Estado de Direito, é uma aberração.
Voltaire escreveu, com a lucidez feroz que o caracteriza: “É melhor correr o risco de salvar um culpado do que condenar um inocente.” Esta frase — que sintetiza o espírito do Tratado da Tolerância — não é apenas uma ideia filosófica. É uma advertência moral contra o fanatismo, o arbítrio e os julgamentos apressados. Hoje compreendo que o preço de uma justiça sem garantias não é apenas legal — é, acima de tudo, civilizacional.
Ao dar às autoridades o poder de confiscar sem condenar, abre-se uma porta que nunca mais se fecha. E em Portugal, onde a Justiça é tudo menos célere, onde a confiança no sistema judicial está longe de ser sólida, dar mais poder sem mais garantias é, no mínimo, temerário.
E depois vem a realidade, essa senhora impiedosa. Porque não serão os grandes corruptos, rodeados de advogados e estruturas offshore, os primeiros a cair. Serão os pequenos. O empresário que não declarou um terreno. O emigrante que mandou construir uma casa à moda antiga. O herdeiro de um bem mal registado. Gente sem rede, sem voz, sem proteção.
Tal como já vimos leis antiterrorismo aplicadas a estudantes e manifestantes, também esta poderá ser usada contra quem não tem poder para se defender. É sempre mais fácil apanhar os distraídos do que os espertos.
E há ainda outro perigo: o da exceção que se torna regra. Hoje é o confisco sem julgamento. Amanhã pode ser o bloqueio de contas, a limitação de movimentos, a exclusão do sistema financeiro — tudo com base em suspeitas. Sempre com a mesma promessa: proteger o bem comum.
Mas desde quando é que o bem comum se protege eliminando as garantias individuais?
Se queremos combater o crime económico — e devemos — há alternativas sérias. Reforçar a Polícia Judiciária. Criar tribunais especializados e céleres. Melhorar a cooperação internacional. Levantar sigilos bancários de forma mais eficaz. Tudo isso dentro da Constituição. Sem contornar as garantias. Sem sacrificar o que nos define como sociedade livre.
Sim, a corrupção é um flagelo. Mas o remédio não pode ser pior do que a doença.
Maquiavel escreveu que os fins justificam os meios. Mas só os regimes autoritários seguem esse conselho à risca. Uma democracia vive precisamente da recusa dessa lógica. Porque os meios — o direito, o julgamento justo, o contraditório — não são um detalhe: são a essência.
Hoje, parece que um novo espectro paira sobre a Europa. – e Portugal não é exceção. Não é o do comunismo, como Marx escreveu. É o espectro do autoritarismo — elegante, técnico, justificável, mas sempre perigoso.
E ele entra, como sempre, com boas intenções.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Confiscar sem julgar – quando a exceção vira regra
{{ noCommentsLabel }}