Governo quer perda de bens sem condenação em tribunal. O que diz o setor?
O Governo aprovou um novo mecanismo de perda alargada de bens que será ainda alvo de consulta pública. O confisco de bens passa a ser “em espécie” e não pelo valor do bem.
O Governo aprovou um novo mecanismo de perda alargada de bens. Ou seja, o confisco de bens que um arguido tenha obtido por atividade criminosa. Assim, os bens do arguido passam a ser confiscados, mesmo que não haja uma condenação, em casos em que os crimes tenham prescrito, o arguido morrido ou estar em fuga.
As novas regras – que serão ainda alvo de consulta pública – pretendem criar um novo mecanismo de confisco de bens que passa a ser “em espécie” e não pelo valor de bem, um regime de perda de bens apreendidos associados a organização criminosa e ainda a possibilidade do Gabinete de Recuperação de Ativos – que funciona na dependência da PJ – passar a decretar “ações imediatas” de arresto. Estas ações imediatas têm, no entanto, de ser confirmadas por uma autoridade judiciária (juiz de instrução ou magistrado do Ministério Público) nas 72 horas seguintes.
Como é que o setor avalia este anteprojeto? Nota negativa, para já
“O confisco é um instituto de má memória, banido dos ordenamentos jurídicos civilizados aquando das revoluções liberais, tendo sido recuperado em todas as ditaduras do século XX! Não estranhamente, a partir dos alvores do século XXI, iniciámos uma deriva no sentido do retorno aos regimes autocráticos, que vem a desembocar nestes nossos dias”, diz o penalista e sócio da DLA Piper, Paulo Saragoça da Matta, em declarações ao ECO/Advocatus. “Nos dias em que os índices de democraticidade do mundo mostram que se caminha a passos largos para ditaduras de todas as cores, e, obviamente, os poderes políticos estribados em juristas de espírito totalitário, voltam a consagrar o confisco como se fosse o único meio de combate ao crime, aos ‘maus’, aos ‘outros. Será estranho o crescimento exponencial do âmbito do confisco, dos casos em que é aplicável, e da destruição total das possibilidades reais e práticas de defesa dos visados – condenados à partida nos média e nos tribunais sem verdadeiro direito de defesa? Não acho nada estranho… os políticos, medrosos do judiciário (que lhes lembra que se não mostrarem que defendem o pregão e o baraço é porque compactuam com o crime), farão tudo o que as franjas mais antidemocráticas das corporações judiciárias lhes exijam, desde logo escolherem aqueles juristas nacionalmente conhecidos como sendo os mais agressivos defensores do confisco – aqueles para quem se pode confiscar mesmo que haja zero de prova de qualquer ligação a crime”, acrescenta.

Ana Raquel Conceição, Of Counsel da Antas da Cunha Ecija defende que “quando se refere que a perda poderá ser declarada mesmo em casos de prescrição do crime ou morte do arguido, causas que extinguem a responsabilidade criminal, vejo com muita dificuldade tal medida estar em conformidade com a nossa Lei Fundamental”, diz a advogada. “A existência de um processo de natureza não penal ‘que permita determinar o destino dos bens sem qualquer juízo de responsabilidade criminal, poderá significar que se utilizem medidas do direito sancionatório excecional e intervenção mínima, como o direito penal e processo penal, fora do seu âmbito e legitimação”. Ana Raquel Conceição diz ainda que “a criação de um novo sujeito processual da pessoa afetada, em bom rigor, parece-nos não ser novidade pois, o terceiro ao abrigo da lei penal ou ao abrigo da lei 5/2002 pode reagir quando se lhe apreendem, arrestem ou se declarem perdidos bens lhe pertencem, através da interposição de recurso pois, têm um direito afetado pela referida decisão. Mas vemos com bons olhos que se clarifiquem e aumentem os meios do direito ao seu contraditório. Mas chamá-lo de sujeito processual, parece-nos ser demasiado ambicioso”.
Já quanto à “apreensão em espécie, que rigorosamente deverá ser um arresto, já se encontra na previsão legal. O que se arresta, com vista à declaração de perda, são bens concretos, a novidade parece-nos consistir na possibilidade de se permitir que esteja abrangida a perda de um determinado bem, mesmo que não resulte da presunção de proveniência ilícita de um crime de catálogo sob investigação, mas associados a uma organização criminosa. Vemos com alguma preocupação esta medida, desde logo, porque carece de ser rigorosa a terminologia utilizada. A organização criminosa será entendida como o crime de associação criminosa ou crime praticado em comparticipação criminosa, ou criminalidade que caiba na definição de criminalidade altamente organizada? Estas dúvidas, imediatamente, fazem soar alarmes quando em causa está a aplicação do instrumento punitivo do Estado mais poderoso e mais lesivo dos direitos fundamentais. A mensagem que o crime não compensa deve ser sempre veiculada e realçada, mas desde que seja pelo caminho certo”, concluiu.
A organização criminosa será entendida como o crime de associação criminosa ou crime praticado em comparticipação criminosa, ou criminalidade que caiba na definição de criminalidade altamente organizada? Estas dúvidas, imediatamente, fazem soar alarmes quando em causa está a aplicação do instrumento punitivo do Estado mais poderoso e mais lesivo dos direitos fundamentais. A mensagem que o crime não compensa deve ser sempre veiculada e realçada, mas desde que seja pelo caminho certo”
Carlos Pinto de Abreu, advogado e sócio fundador da Carlos Pinto de Abreu e Associados diz que a grande novidade expressa no anteprojeto é a de que “os instrumentos, os produtos e as vantagens que resultem de facto ilícito típico [de crime] são declarados perdidos a favor do Estado (…) ainda que o procedimento por esse facto se extinga, entretanto, por força do decurso do respetivo prazo de prescrição quando seja inferior a 15 anos, ou por doença do agente, ou a responsabilidade criminal cesse em virtude de amnistia ou da morte do agente”.
Ou seja, “em casos de prescrição, de morte, de doença, de amnistia e de fuga, e mesmo que não haja condenação criminal, o confisco de bens pode vir a ser decidido, isto de acordo com o anteprojeto agora aprovado pelo Conselho de Ministros e cuja proposta foi feita por um grupo de trabalho de alto nível para transpor para o ordenamento jurídico nacional a diretiva relativa à recuperação e perda de bens das vantagens da atividade criminosa aprovada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu, precisamente há um ano, em Abril de 2024”.
As novas regras, conclui o advogado, “não visam apenas reforçar a eficácia dos mecanismos de perda alargada; visam igualmente um reforço dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos visados com interesse nos bens que podem ser declarados perdidos, nomeadamente herdeiros de arguidos ou de cidadãos, terceiros de boa-fé ou de má-fé, que tenham feito negócios com alguém que é ou foi investigado, criando-se uma nova figura do processo penal, precisamente o sujeito afetado que terá, para além das normais garantias de defesa penais e patrimoniais, o direito à informação, os direitos de participação e de audiência, o direito de se opor e de requerer, de apresentar e solicitar provas, o direito de alegar, o direito à decisão de juiz e o direito de recorrer”.
Que novidades se podem esperar deste novo mecanismo alargado de bens?
- O novo mecanismo de perda alargada de bens passa a ser “em espécie” e não pelo valor de bem. Ao contrário do que sucede no confisco clássico, não se tem de demonstrar a ligação de um crime específico e as vantagens obtidas, mas “apenas” quais os bens em causa. Ou seja: a perda é avaliada pela espécie do bem e não pelo valor em si, mesmo que os crimes não estejam ainda totalmente apurados. Rita Júdice concretizou com um exemplo: “Imaginem que as autoridades descobrem um armazém de droga, onde encontram armas, produtos estupefacientes e um quadro muito valioso. O crime foi julgado, o arguido foi condenado por tráfico de droga, mas não ficou provado no processo de que tipo de crime, em concreto, resultou a obtenção deste quadro para o arguido – em que dia, em que situação foi obtido o quadro. Segundo o novo mecanismo da perda em espécie, um bem específico, obtido por um arguido condenado, que tenha tido origem em atividade criminosa, mesmo que não se prove a ligação entre o quadro e o crime específico em causa pode ser confiscado a favor do Estado”, disse.
- Mudanças no “Confisco clássico”: voltando a pegar no mesmo exemplo, “o quadro foi obtido através da prática de um crime comprovado, houve um processo penal, mas que prescreveu. Ou o arguido morreu e o processo penal foi extinto. A legislação atual tem muitas lacunas e gera incertezas sobre o que fazer neste caso. O Código penal não é muito claro no caso em que o processo prescreve ou se dá a morte do agente do crime: não pode haver processos-crime contra pessoas mortas. Agora preenchem-se essas lacunas, com regras claras: mesmo com a extinção do processo penal, passa a ser possível abrir um processo autónomo, de natureza não penal, que permita determinar o destino desse bem, declarando-o perdido a favor do Estado”, concluiu.
- Para explicar mais uma novidade do diploma – perda de bens apreendidos associados a organização criminosa – a ministra usou mais um exemplo: “Imaginem que o arguido – o traficante de droga do caso prático – não foi condenado. Foi feita uma investigação, foi aberto um processo penal, durante a investigação esse quadro foi apreendido por ordem do Ministério Público ou tribunal. Não tendo, por qualquer razão, sido o arguido condenado pelo crime sob investigação [e não sendo, por isso, possível a aplicação do novo mecanismo de perda alargada em espécie], pode suceder, ainda assim, que em tribunal o juiz tenha ficado convencido de que o quadro apreendido tenha sido obtido mediante atividade criminosa praticada no âmbito de uma organização criminosa. Quando não houver condenação, apesar de ter havido um processo penal, e seja claro para o tribunal, com base em toda a prova disponível, que o bem em questão resultava, não só de atividade criminosa, mas especificamente de atividade criminosa praticada no âmbito de uma organização criminosa, o que vem dizer esta proposta é: o bem pode ser confiscado”.
- Será ainda criada um novo sujeito processual, a “pessoa afetada” por decisões de apreensão, arresto ou perda de bens (incluindo a venda antecipada), com o direito a de estar presente e ser ouvida pelo tribunal, o direito à informação e o direito ao recurso. “É um novo sujeito processual, com direitos e deveres, com legitimidade para intervir no processo. Quem seria a pessoa afetada no nosso caso prático? O herdeiro do arguido, a pessoa a quem o arguido vendeu (entretanto) o quadro, por exemplo”, explicou ainda a ministra, no briefing do Conselho de Ministros.
- Por fim, há também novidades quanto ao Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA) onde é feita uma reforma institucional. São-lhe acrescentadas competências, como a de passar a ter a possibilidade de decretar “ações imediatas” que são apreensões cautelares, inclusivamente em caso de arresto. Estas ações imediatas têm, no entanto, de ser confirmadas por uma autoridade judiciária nas 72 horas subsequentes.
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