A eleição de Donald Trump acordou uma nova "resistência" nos Estados Unidos e serviu de "alerta" para outros países. É a visão de Symone Sanders, comentadora política da CNN, em entrevista ao ECO.
Quando um dos mais importantes canais televisivos da maior economia do mundo se sente na obrigação de explicar aos telespectadores que uma maçã é uma maçã, mesmo que alguém tente convencê-los de que é uma banana, é preciso refletir sobre o que se está a passar. Foi isso que o ECO fez com Symone Sanders, responsável pela comunicação de Bernie Sanders, o senador de Vermont que perdeu as eleições primárias do Partido Democrata para Hillary Clinton, no ano passado.
Symone Sanders é agora consultora de comunicação e comentadora de política na CNN — o canal que lançou um anúncio para explicar que uma maçã será sempre uma maçã. Passou por Portugal para participar no Web Summit e encontrou 20 minutos para falar com o ECO sobre a situação política norte-americana. O diagnóstico não a anima mas Symone Sanders antecipa uma revolução para breve. A eleição de Donald Trump, diz, acordou uma nova “resistência” nos Estados Unidos, que já se fez ouvir nas eleições intercalares realizadas a 7 de novembro, além de ter servido como um “alerta” para outros pontos do globo onde o “populismo sujo”, como lhe chama, está a ganhar força.
Trabalhou na campanha de Bernie Sanders durante as eleições primárias do Partido Democrata. Porque é que perderam para Hillary Clinton?
Há várias razões. O Bernie Sanders convenceu os millennials, mas não conseguiu estabelecer uma ligação com a base de eleitores mais velhos do partido, como sejam mulheres negras ou eleitores mais velhos em geral. Parte do problema foi que a mensagem não chegou a estes eleitores, a revolução não pareceu tão boa para os eleitores mais velhos como para os mais novos. Mas outra parte do problema foi que a Hillary Clinton tinha laços mais antigos com os democratas, particularmente com o círculo eleitoral que compõe a base do Partido Democrata. Quando já se conhece alguém, é muito difícil apresentar alguém novo, no caso um homem branco de Vermont, e dizer que esta pessoa é, de facto, o melhor candidato. Talvez com mais tempo e algumas táticas diferentes, tivessemos conseguido a nomeação do partido. O objetivo era, claramente, conseguir essa nomeação, e não conseguimos. Mas acredito que a campanha foi bem sucedida noutros aspetos. Esta revolução política de que Bernie Sanders falou ainda vive nos Estados Unidos. Ainda estamos a falar dela um ano depois.
Alguma coisa mudou?
Absolutamente. Na campanha, falámos de cuidados médicos gratuitos para todos nos Estados Unidos, e toda a gente nos disse que estávamos loucos. Fast forward para este ano, há dois meses: o Bernie Sanders apresentou no Congresso uma lei para avançar com um sistema nacional de saúde para todos e teve o apoio de 16 senadores. Isso nunca teria acontecido há um ano e meio. Isto é um resultado direto das conversas progressistas que estão a ser tidas pelos democratas.
Os resultados teriam sido diferentes se fosse Sanders o candidato democrata?
É difícil responder a isso. Em retrospetiva, toda a gente diz “talvez o Bernie tivesse vencido”. Talvez tivesse, talvez não. Hillary Clinton enfrentou uma série de desafios nas eleições que talvez Bernie Sanders não tivesse tido de enfrentar, mas teria tido de enfrentar outros. Há um grupo a que os americanos chamam de “eleitores Obama-Trump”. São os eleitores que votaram em Obama e depois votaram em Trump em 2016. Talvez esses tivessem sido eleitores Obama-Bernie. Mas nós falhámos em estabelecer uma ligação com os eleitores base do Partido Democrata. Os eleitores negros, os mais velhos, não estavam convencidos com o Bernie Sanders. Os mais jovens estavam. Nas eleições gerais, a questão seria se as mulheres negras teriam apoiado o Bernie em número suficiente. O Partido Democrata não consegue ganhar a nível nacional sem os eleitores negros. Esses são desafios diferentes que ele teria enfrentado. Talvez tivesse vencido. Talvez não tivesse, nunca saberemos.
Um ano depois de Trump, o que mudou nos Estados Unidos?
Houve muita gente que, assumidamente, esteve a dormir ao volante, esteve desligada da política. A eleição de Trump assustou muita gente que antes não sentia que a sua vida era atacada pelo aparelho político. A marcha das mulheres é um grande exemplo disso. A marcha teve sobretudo mulheres brancas, que perceberam que tinham de fazer alguma coisa, que se sentiram galvanizadas com a eleição de Trump e com o impacto direto dessa eleição nas suas vidas. As pessoas de cor já lidavam com isso há muito tempo. Nos Estados Unidos, uma pessoa de cor, uma pessoa LGBTQ, já está sob ataque há muito tempo, já conhece essa sensação. Estas mulheres brancas acordaram de repente. Há vários problemas que sempre as afetaram, mas a eleição de Donald Trump, particularmente depois da divulgação das gravações em que ele fala “agarrar as mulheres pela vagina”, foi um choque para muita gente. O que mudou foi a resistência. A resistência sempre foi construída nas costas dos ativistas de cor. Estes ativistas e sonhadores, como o movimento Black Lives Matter, já eram ativistas há muito tempo. Agora, a resistência tomou uma nova identidade na era de Donald Trump, contra estas políticas e ameaças diretas a tanta gente. E os resistentes tornaram-se eleitores.
A resistência tomou uma nova identidade na era de Donald Trump, contra estas políticas e ameaças diretas a tanta gente. E os resistentes tornaram-se eleitores.
Vimos um culminar desta resistência [no dia 7 de novembro], com as eleições intercalares para governadores e presidentes de câmara. Este foi um verdadeiro teste para ver se toda esta energia que as pessoas têm levado para as ruas se traduziria em votos. E traduziu-se. Os democratas saíram-se muito bem por todo o país, candidatos de cor também. Até [7 de novembro], não havia qualquer vice-governador negro em todo o país. 50 estados, nenhum negro. Agora, temos dois. Também foram eleitas duas mulheres transgénero: Andrea Jenkins, uma mulher transgénero negra, foi eleita para a câmara de Minneapolis; Danica Roem, uma mulher transgénero branca, foi eleita para a Câmara dos Representantes da Virgínia. Ashley Bennett concorreu a um lugar em Nova Jérsia, contra um homem [John Carman] que, durante a marcha das mulheres, perguntou se elas iriam chegar a casa a tempo de cozinhar o jantar; e ganhou.
Estes resultados são uma resposta direta às políticas de Trump?
Em parte sim, em parte não. Se estas pessoas tivessem concorrido apenas com o mote “Donald Trump é tão mau e temos de fazer alguma coisa em relação a isso”, não teriam sido bem sucedidas. Por isso, não é um resultado direto. É resultado de as pessoas não gostarem de Donald Trump e das suas políticas, de Donald Trump estar com níveis de popularidade historicamente baixos, de o Partido Republicano estar com níveis de popularidade historicamente baixos. Mas também tem a ver com os candidatos estarem a trabalhar sobre questões que realmente importam às pessoas. Serviços de saúde, economia, redução das diferenças sociais. Neste momento, o fosso entre os mais ricos e os mais pobres nos Estados Unidos é o maior que alguma vez existiu na nossa história. Foi com esses assuntos que os candidatos se apresentaram.
Portanto, sim, foi um sucesso, mas a bandeira não foi apenas concorrer contra Trump. Isso foi o que Hillary Clinton fez em 2016 e perdeu. As pessoas diziam: “Nós sabemos que Trump é mau, mas porque é que tu és tão boa?”. Os próprios democratas apenas defenderam que não se podia deixar que Donald Trump fosse eleito, e vejam o que aconteceu. Perdemos terrivelmente em 2016, por todo o país. Agora, descobrimos o modelo: apresentamos bons candidatos, apresentamos ideias fortes, trabalhamos ativamente para conquistar a nossa base e falamos de forma autêntica e direta para os problemas com que as pessoas nos Estados Unidos lidam e se preocupam, arranjamos um plano para as suas vidas.
Já ninguém pode apoiar-se em bandeiras da Confederação ou políticas anti-imigração para se candidatar. Isso não vai funcionar neste mundo pós-Trump.
Podemos olhar para estes resultados como uma antecipação dos resultados das presidenciais de 2020?
Sim. Até podemos olhar para estes resultados e ver uma antecipação de 2018 [ano em que haverá eleições intercalares], onde cada lugar vai ser disputado. Toda a Câmara dos Representantes, todo o Senado, mais de 200 mil lugares locais e estatais vão ser disputados, tudo está em jogo em 2018. Nas eleições desta semana, vimos um modelo de como os democratas podem sair-se neste clima de Trump. Ao mesmo tempo, vimos um modelo do que os republicanos não podem fazer se querem ser eleitos. Já ninguém pode apoiar-se em bandeiras da Confederação ou políticas anti-imigração para se candidatar. Isso não vai funcionar neste mundo pós-Trump. Já não é suficiente para conseguir o apoio dos eleitores independentes, que são muito importantes nestas eleições intercalares. Os democratas também não fizeram tudo bem nas eleições de [7 de novembro]. Tivemos uma boa perspetiva do que tem de acontecer. Temos de investir dinheiro em sítios onde está a nossa base e temos de avançar com a mensagem inclusiva e autêntica, que fala diretamente sobre quem nós somos. Se fizermos isso, seremos bem sucedidos em muitos sítios.
Como é que a oposição lida com um presidente que apelida de “fake news” tudo aquilo com que não concorda?
É muito perigoso. “Fake news” tornou-se sinónimo de “coisas de que não gostamos, coisas que não nos favorecem”. E isso é muito perigoso. Quando chamamos tudo de fake news, e quando o nosso presidente é quem lidera essa ofensiva, torna-se difícil ter conversas autênticas no espaço mediático. A outra coisa que a eleição de Donald Trump provocou é que os factos tornaram-se discutíveis. Isso torna todas as conversas de política muito difíceis e é com isso que estamos a lidar. Neste momento, temos uma campanha política chamada “factos primeiro”. O anúncio é uma voz off, com um cenário branco e uma maçã. A voz diz “isto é uma maçã. Alguém poderá tentar dizer-lhe que é uma banana. Podem gritar tão alto quanto quiserem que é uma banana, mas vai continuar a ser uma maçã”. Isto resume o que se está a passar. O maior canal noticioso teve de por este anúncio no ar porque temos um presidente, apoiado pelo Partido Republicano, que está a questionar os factos. Nada disto é normal.
A eleição de Trump fez com que os factos se tornassem discutíveis, quando os factos não são discutíveis, é a própria essência deles.
Trump cumpriu muito poucas, ou nenhumas, das promessas que fez. O seu eleitorado está arrependido? E dentro do Partido Republicano, está a perder apoio?
Entre os eleitores base de Trump, a verdadeira base, os MAGA [sigla para “make America great again”, “tornar a América grande outra vez”, o slogan da campanha presidencial de Donald Trump], aí ele não está a perder apoio. A sua base de eleitores é muito forte. Entre os republicanos, uma sondagem recente mostra que Trump ainda tem uma taxa de aprovação de 80%. A questão é com os independentes. Entre esses, 32% não aprovam o trabalho que Trump está a fazer e esse número está a aumentar. São com esses que temos de nos preocupar. A nível global, a taxa de aprovação do presidente está nos 30%. É a taxa mais baixa de qualquer presidente no seu primeiro ano na história das sondagens nos EUA.
Se Trump falhou, se os republicanos falharam, especialmente quanto estão totalmente no controlo — têm a Casa Branca e ambas as câmaras do Congresso, se mesmo assim não conseguem aprovar as leis, é muito difícil vender isso ao eleitorado. Isso cheira a problemas para os republicanos. Primeiro, tentaram eliminar o Obamacare por três vezes e falharam. Agora, dizem que vão fazer um orçamento e vão fazer uma reforma fiscal. Uma reforma fiscal é muito difícil de fazer, não é feita nenhuma desde os anos 70. Entretanto, já falam em fazer outras, como reestruturações de infraestruturas, que são muito populares entre os democratas, mas que vão fazer com que percam alguns republicanos. O facto de não ter sido feito nada é mau, à falta de melhor termo, para os republicanos, e já estão a pagar por isso. Foi o que vimos nas eleições de [7 de novembro]. Isto é ótimo para os democratas, se tivermos alguma contraproposta.
Quem seria um bom candidato democrata para 2020?
Não sei quem será o candidato democrata em 2020. Mas alguém que irá sair-se bem e disputar a vitória com Donald Trump é alguém que consiga pintar um quadro global. Não é suficiente ser contra Donald Trump, ninguém vota por ser se contra Trump, tem de ter alguma coisa por que votar.
Os movimentos alt-right são supremacistas brancos de caqui. É tudo o que são. É supremacia branca e temos de lhe chamar isso.
Como olha para a ascensão do populismo e dos movimentos autodesignados de “alt-right” na Europa?
O populismo tem uma má reputação. Há diferentes tipos de populismo. Eu sou uma populista. Não sou uma populista racista, ou uma populista nacionalista. Sou a favor de todos terem uma hipótese e de haver governos e sistemas que funcionem para toda a gente. Vimos a ascensão daquilo a que gostaria de chamar “populismo sujo” na Europa. O populismo de Donald Trump é sujo, é etnocentrismo misturado com algum nacionalismo, polvilhado com racismo e alguns aspetos económicos. Quanto aos movimentos alt-right, são supremacistas brancos de caqui. É tudo o que são. É supremacia branca e temos de lhe chamar isso.
O que significaria, a nível global, que alguém como Trump fosse eleito numa grande economia europeia?
Já quase foi, mas os franceses disseram: “esperem! acabámos de ver isto nos Estados Unidos, se calhar não queremos fazer isto”. A nossa história serviu de alerta para o resto do mundo. Poderia haver uma figura como o Donald Trump, que poderia ascender ao poder na Europa, porque há um sentimento anti-imigração por toda a Europa. Foi isso que vimos com o Brexit. Mas as pessoas estão a olhar ativamente para a presidência dos Estados Unidos e a perceber o quão perigoso é este tipo de populismo sujo quando o pomos na instituição máxima do nosso país. A eleição de Trump poderá ter o efeito contrário no resto do mundo. Foi isso que vimos em França, com Le Pen e Macron. Ela estava a servir populismo sujo numa bandeja. A certa altura, nessas eleições, as pessoas acreditaram que ela poderia de facto ser eleita. E, embora haja muitas coisas que podem ser ditas sobre Macron, se pusermos os dois lado a lado, e depois olharmos para os americanos e para o Brexit, concluímos que, se calhar, não queremos aquilo se quisermos continuar a andar para a frente.
A presidência de Trump atuou de tal forma que os americanos já não são vistos como o adulto na sala. Passámos a sentar-nos na mesa das crianças em alguns sítios.
Outra coisa que a eleição de Donald Trump fez foi criar espaço no panorama político global. Os Estados Unidos perderam a posição de liderança a nível global com a presidência de Donald Trump, que atuou de tal forma que os americanos já não são vistos como o adulto na sala, estamos na mesa das crianças. Continuamos a ser a América, mas perdemos algum respeito e estamos a ceder a nossa posição no contexto global. Foi o populismo sujo que fez isso. Outros países, especialmente na Europa, estão a olhar para isso. Vimos, por exemplo, Angela Merkel a aproveitar a oportunidade que Trump lhe cedeu para conquistar espaço para a Alemanha neste palco global. Por exemplo, com a perseguição de pessoas LGBTQ na Chechenia, tivemos Angela Merkel a condenar estes acontecimentos, ainda que não defenda a sua própria população LGBTQ na Alemanha. Ela viu a oportunidade de falar num espaço que, anteriormente, era ocupado pelo presidente Obama. Vemos o mesmo com o presidente Macron. Há uma oportunidade que os líderes europeus encontraram na presidência de Trump para se afirmarem, de formas diferentes, no palco global. Vamos ver qual será o cenário daqui a três ou quatro anos.
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“Trump fez com que os EUA se sentassem na mesa das crianças”
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