Se é guloso e gosta de chocolate, esta reportagem é para si. E não engorda. Viagem ao mundo dos chocolates da Arcádia, uma empresa quase centenária com origens no norte e hoje espalhada por 27 lojas.
São caixas e mais caixas. Não há mãos a medir na zona de embalamento dos chocolates da Arcádia. A azáfama é grande e percebe-se porquê: o Natal é a época alta na empresa. A Arcádia, empresa nortenha com 84 anos de existência vende, por ano, 70 toneladas de chocolate, 30 das quais na época de Natal. É muito chocolate, muito bombom para embalar.
Das caixas de bombons sortidos às línguas-de-gato, passando pelos bombons de vinho do Porto — um sucesso de vendas –, tudo precisa de ser devidamente acondicionado para ser entregue nas lojas com o requinte que a marca e a tradição exigem. Um processo que é ainda mais exigente, na medida em que, na Arcádia, os processos são os tradicionais. Tudo é feito manualmente.
Vânia Sousa está na empresa há apenas quatro anos mas já ganhou o título de ‘mais rápida a embalar’. “É a mais despachada e tem vontade”, dizem as colegas entre sorrisos. Na “secção do chocolate”, música para os ouvidos dos mais gulosos, há tachos e tachos repletos de chocolate derretido onde apetece pôr o dedo. As funcionárias — todas mulheres e, algumas, com quarenta anos de casa –, olham embevecidas para o produto que vão fazendo: sabem que, do lado de lá da porta, aqueles bombons vão fazer as delícias dos mais gulosos. O pecado da gula mora por estes lados.
Maria de Lurdes Ferreira, 38 anos de casa e quase a reformar-se, diz orgulhosa que ainda come chocolate “com a mesma vontade” do primeiro dia. Das suas mãos saíram muitas das iguarias que podem ser encontradas nas 27 lojas da Arcádia e em alguma grandes superfícies que, por estes dias têm no chocolate um dos artigos premium.
Margarida Bastos, administradora da Arcádia e neta do fundador que, juntamente com o irmão, comanda os destinos da empresa, sorri também, e confessa: “O chocolate é viciante”. Só isso explica que, na família Bastos, todos adorem chocolate. “Uns gostam de uns, outros de outros”, diz, enquanto admite que os seus favoritos “são os bombons de chocolate com noz e as línguas-de-gato”.
Na fábrica da Arcádia, que agora abandonou a mítica Rua do Almada, no Porto — uma rua estreita a que os camiões têm dificuldade de aceder, ainda mais agora que a baixa portuense fervilha por todos os poros — e está instalada em Grijó (Gaia), a época do Natal começa a ser preparada ainda em setembro. Desengane-se se pensa que ali vai encontrar decorações relativas à época, ou até um pinheirinho. Nada. O Natal ali, na Arcádia, é feito de trabalho, muito trabalho. Por esta altura, a desarrumação é também uma constante. É muito chocolate para vender em sensivelmente três semanas.
Marca quase centenária
O início da Arcádia remonta a 1933. Manuel Pereira Bastos, um jovem de Celorico de Basto, criou em plena Praça da Liberdade uma confeitaria que rapidamente ganhou pergaminhos na cidade e conquistou as famílias mais nobres da Invicta. Na altura, conta a neta do fundador, o forte da Arcádia eram os artigos de pastelaria e os banquetes que fazia e que reuniam a fina flor portuense. A fama dos bombons foi surgindo aos poucos. Situada paredes meias com a estação de São Bento, as pessoas de Lisboa começam a “levar umas caixinhas”, um hábito que se foi enraizando e foi sendo apreciado.
“Uma das mais modernas pastelarias, digna de qualquer capital europeia” e onde “se reúne a melhor frequência do norte do país e as famílias mais distintas do Porto”, pode ler-se no Livro de Ouro do Comércio e Indústria do Porto, datado de 1943.
Da confeitaria ao número 63 da Rua do Almada, onde se situava a fábrica, é apenas um pequeno passo. Margarida Bastos fala da transição desses tempos do século passado, para os dias de hoje.
Em 1989, o pai de Margarida e João estava à frente da Arcádia mas a morte da mulher (e mãe dos dois filhos) fê-lo passar uma fase menos boa. Nessa altura, Margarida começou a acompanhar a gestão da Arcádia. Farmacêutica de formação, começou por apenas estar a meio tempo na Casa do Chocolate. O irmão, economista e, na altura, a trabalhar na Sonae, sempre acompanhou a parte financeira da Arcádia. Como o negócio começava a crescer, o meio tempo já não era suficiente. E é assim que, primeiro Margarida, e João depois, mergulham a tempo inteiro no mundo dos chocolates, das drageias de licor e das amêndoas. Era o caminho lógico, para quem nasceu literalmente ‘dentro’ do chocolate.
“Morávamos muito perto da Rua do Almada, e nas férias sempre trabalhamos lá, desde a caixa aos embrulhos”, adianta Margarida.
Em 2000, devido à desertificação da baixa do Porto, a administração, agora na terceira geração, resolve encerrar a mítica loja da Praça da Liberdade. Na Rua do Almada, a antiga loja que entretanto também tinha sido encerrada, foi restaurada com os azulejos originais, os móveis e os candeeiros, e reaberta.
A Rua do Almada era, no entanto, a zona das loja de ferragens do Porto, por onde passava pouca gente. Pelo que com o encerramento da loja da Praça, a Arcádia resolve, a título de experiência, colocar um quiosque no centro comercial Norteshopping. A experiência foi certeira. “Correu tão bem que resolvemos deixar esse quiosque até à Páscoa. No ano seguinte fizemos a mesma coisa, mas já não desmontámos, percebemos que as receitas davam para cobrir as despesas que ali tínhamos”, refere a administradora.
A experiência foi então repetida em outros centros comerciais e nos mesmos moldes. Entretanto, aparece uma oportunidade no Norteshopping, com uma loja pequenina. “E aventurámo-nos. São condições muito diferentes de uma loja de rua, com outros custos e outras exigências a nível de funcionários”. Depois, foi começar a crescer em número de lojas: hoje são 27, entre lojas próprias e franqueadas, espalhadas de norte a sul do país. Mas o número deverá crescer já no início de 2018, com a abertura de mais uma unidade, em Gaia. Este ano, a empresa prevê faturar 6,1 milhões de euros. Deste montante 45% é chocolate, 35% drageias e amêndoas e 20% outros produtos (pastelaria, cafetaria, etc.).
Margarida Bastos explica a estrutura da empresa. “A Arcádia, detida por mim e pelo meu irmão, detém 75% da Coffee Box, empresa que faz a gestão das lojas. Os restantes 25% da Coffee Box são detidos por Armindo Dias, ex-quadro da Sonae, que entretanto saiu, e que tinha já três ou quatro quiosques de café, um deles que ainda existe no Norteshopping e que brevemente irá ostentar a marca Arcádia”.
Páscoa, a segunda época alta
A Arcádia não são só chocolates. A empresa tem também grandes pergaminhos nas amêndoas, drageias de licor e coelhos de Páscoa. Aliás, a seguir ao Natal, a Páscoa é o segundo momento mais importante do ano.
A Arcádia vende 50 a 60 toneladas de drageias e amêndoas anualmente, o mesmo é dizer em 15 dias do ano. Mas se as vendas estão concentradas nesses períodos, a confeção requer um timing bem mais alargado. Mal termina a época da Páscoa, começa a preparação do próximo ano. O processo é demorado. E, mais uma vez, é tudo feito à mão. As drageias de licor — que não têm álcool, apenas açúcar com aroma — são as mais difíceis de produzir. É arte, o que se faz em cada uma daquelas pequenas drageias, tudo pela mão das “bordadeiras”. Mais uma vez só mulheres trabalham nesta secção.
“Penso que é por ser um trabalho mais delicado”, refere Margarida. De resto, não há outra explicação. Na Arcádia, trabalham neste momento quatro homens na confeção das amêndoas e um na pastelaria. “Já tivemos homens também no embalamento. No chocolate nunca tivemos, porque nunca calhou”.
As receitas, quer no chocolate quer nas drageias, continuam a ser as originais. E vão passando de geração em geração. “Não há um segredo especial, penso que o segredo é mesmo todo o método tradicional e artesanal”, confessa Margarida Bastos. E, sobretudo frisa: “A qualidade dos nossos produtos: importamos o melhor chocolate belga, é caro, mas é o melhor, e isso faz a diferença”.
Não há um segredo especial, penso que o segredo é mesmo todo o método tradicional e artesanal.
Com 84 anos, a Arcádia já viveu muitas crises. A última, com a vinda da troika para Portugal, também foi sentida na empresa. Mas curiosamente as vendas do chocolate dispararam. “O chocolate no Natal foi das coisas que mais cresceu, dantes as pessoas davam uma camisola de cem euros, e passaram a dar uma caixa de chocolates, porque há para todos os preços. Mas na cafetaria sentimos imenso, as pessoas deixaram de tomar o pequeno-almoço fora de casa”.
A Arcádia emprega 150 pessoas e, nas épocas de maior procura, chega mesmo às 160. Para já a empresa não tem tido dificuldades em contratar, recebendo quase diariamente candidaturas espontâneas. Ao mesmo tempo, a Arcádia tem vindo também a diversificar o seu espólio de produtos: aos chocolates e às amêndoas, a Arcádia juntou também os bolos e, mais recentemente, os gelados.
“Tudo tem sido feito ao sabor das necessidades dos nossos clientes. Os gelados eram para ter surgido no verão passado mas, com os atrasos, só avançamos em novembro, o que não é uma boa altura. Mas o calor vai regressar”, diz Margarida. Hoje a empresa vende mais de 300 bolos por semana e mais de mil macarons.
O museu que há-de nascer
Na antiga fábrica da Arcádia, na rua do Almada, a administração da empresa gostava de projetar um museu. Há muito material antigo pronto a ser utilizado mas o plano não está ainda bem definido. Nem sequer o projeto de arquitetura está definido.
Margarida Bastos diz que a “ideia é mostrar a história, só que não tanto através dos objetos”. Mas, se o plano não está ainda bem definido, o mesmo não se pode dizer da meta: conquistar o turismo. O mesmo que floresce em toda a cidade do Porto.
A administradora da Arcádia reconhece que esta é uma falha da empresa. “Ainda não conseguimos conquistar os turistas. A marca começa a ser reconhecida, o facto de sermos a única marca portuguesa nos aeroportos nacionais tem tido algum impacto. E há turistas que compram uma caixa de bombons e depois vão para os seus países, e que depois nos contactam a pedir para enviarmos mais caixas porque provaram e gostaram muito”, frisa.
Mas porque não se impõe a Arcádia no meio dos turistas? A marca justifica com o facto de o negócio dos chocolates ser ainda muito sazonal. “As pessoas não andam com chocolates no verão”, diz Margarida Bastos. De resto, a empresa ainda não se afirmou também em termos de presença internacional. Margarida Bastos conta que já fizeram algumas experiências ao nível de feiras, as pessoas gostam, mas quando percebem que o produto é made in Portugal retraem-se. “Não temos tradição no chocolate, não somos uma Suíça nem uma Bélgica”.
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Arcádia: há 84 anos a construir um doce Natal de chocolate
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