A concessão dos CTT
A mensagem que a ANACOM transmitiu aos CTT resume-se ao seguinte: vamos acabar com o que nós entendemos serem os vossos lucros anormais nem que tenhamos de tornar a vossa vida num inferno.
Na semana passada, escrevi sobre a burocratização da economia como sendo o maior perigo do socialismo. Pois bem, menos de vinte e quatro horas depois a ANACOM presenteou-nos com um belíssimo exemplo dessa burocratização a propósito da reformulação dos parâmetros de qualidade e objectivos de desempenho do serviço postal universal.
Assim, onde antes existiam onze critérios de avaliação da qualidade do serviço prestado pelos CTT, existirão de futuro vinte e quatro. Onde antes existiam valores mínimos, que definiam os patamares abaixo dos quais se aplicavam as penalizações, passam agora a existir valores-objectivo mais ambiciosos e vinculativos. E, por fim, onde antes existia uma variação média ponderada de preços equivalente ao valor da inflação mais 1,6 pontos percentuais, passa a vigorar (em 2019 e 2020) uma actualização máxima equivalente ao valor da inflação menos 1,28 pontos percentuais (aplicável também a serviços de margem tradicionalmente negativa como o correio normal até 20 gramas). O protagonista deixou de ser a empresa CTT. O verdadeiro protagonista é a ANACOM.
A mensagem que a ANACOM transmitiu aos CTT resume-se ao seguinte: vamos acabar com o que nós entendemos serem os vossos lucros anormais nem que tenhamos de tornar a vossa vida num inferno.
O regulador está essencialmente a ditar ao regulado como é que ele há-de gerir o seu negócio. Mas não é para isto que serve um regulador, sobretudo, quando à luz dos onze critérios inicialmente estabelecidos o desempenho dos CTT até estava a ser positivo.
A este respeito, é consultar as deliberações da ANACOM relativamente aos critérios de qualidade do serviço postal universal em anos anteriores. Em 2015, os CTT cumpriram dez indicadores. Em 2016, os CTT voltaram a cumpriram dez indicadores. E, em 2017, à data do terceiro trimestre (ver página web dos CTT), a empresa cumpria nove dos onze indicadores.
Ao longo destes anos, desde a privatização dos CTT, é facto que nem tudo foi pacífico. Durante algum tempo, os CTT não cumpriram a obrigação de recorrer a uma empresa de auditoria externa para a verificação independente dos critérios de qualidade reportados à ANACOM. Foram assim devidamente sancionados, sendo que, entretanto, contrataram a auditoria externa. Na realidade, existe hoje uma dupla auditoria externa. Aquela que os CTT contrataram, e aquela que a ANACOM contratou para auditar a auditoria externa. Esperemos que não seja necessário contratar uma terceira auditoria, para fazer a auditoria da auditoria da auditoria.
A integridade contratual e a estabilidade regulatória são elementos essenciais à confiança que necessariamente preside aos investimentos privados, sobretudo quando são investimentos deste tipo. Em “The Mechanisms of Governance”, o Nobel da Economia Oliver Williamson classifica aqueles como mecanismos que consubstanciam a noção do compromisso credível (a ideia de “credible commitments” é, aliás, um dos esteios conceptuais da chamada escola do novo institucionalismo económico).
Ora, o contrato de concessão do serviço postal universal prevê que o regulador possa rever os critérios de qualidade a cada três anos. Ao regulador compete ainda a definição de critérios de densidade geográfica da rede postal, bem como a ratificação da tabela de preços proposta pelo concessionário. Neste contexto, as alterações agora anunciadas encontram respaldo no contrato da concessão e, formalmente, não há como acusar a ANACOM de arbitrariedade contratual. Mas será mesmo assim? Não estaremos, de facto, perante uma mudança das regras do jogo? (quando faltam ainda três anos até ao final da concessão em 2020). Quais são os motivos pelos quais se tenta justifica agora a mudança das regras do jogo?
Do ponto de vista dos critérios de qualidade do serviço postal universal, sabemos que o concessionário cumpre hoje nove dos onze indicadores inicialmente estabelecidos pelo regulador. Do ponto de vista dos critérios da densidade de rede, sabemos também, segundo dados da ANACOM, da existência em Portugal de um estabelecimento postal (um conceito que abrange estações de correio e postos de correio) por cada 4.400 pessoas e de um por cada 39 quilómetros quadrados de território.
Em ambos os casos, os valores em Portugal revelam uma densidade de rede superior à média da União Europeia (1 EP/4.600 pessoas e 1 EP/ 40 Km2). Finalmente, quanto ao preço cobrado pelos CTT, de acordo com o relatório IPC Global Post Industry Report de 2017, o preço médio por carta em Portugal (ajustado pela paridade do poder de compra) é de 0,73 cêntimos por carta contra 0,92 cêntimos na média das empresas congéneres europeias – portanto, um preço médio em Portugal que é 20% inferior ao que é normal por essa Europa fora. Ou seja, sob todos os pontos de vista (qualidade, densidade e preço), o serviço postal universal em Portugal parece estar bem entregue e a funcionar à altura das expectativas inicialmente definidas (declaração de interesses: não possuo acções dos CTT).
Não obstante, a ANACOM parece sugerir o contrário. Na realidade, com as alterações anunciadas, ela mais do que duplicará o número de critérios de qualidade. Assevera, contudo, que segundo “a análise feita foi possível concluir que dos novos objetivos de qualidade de serviço não resultarão aumentos dos custos da empresa.” (11/01/2018).
Apetece dizer: tomem lá as chaves e tratem vocês de gerir o negócio. Trata-se de uma abordagem regulatória cada vez mais comum em Portugal. A regulamentação europeia é hoje muito complexa e muito densa – a União Europeia e a Comissão Europeia assim o asseguram. E nós em Portugal, ao fomentarmos a imprevisibilidade contratual – de que as tiradas do senhor Primeiro-Ministro, sempre que “crucifica” alguma empresa na Assembleia da República, são exemplo –, tratamos de tornar tudo ainda mais complexo.
A isto acresce a eterna dúvida sobre quem, afinal, regula os reguladores, matéria que constituindo a eterna questão filosófica em toda a parte do mundo, produz entre nós um de dois extremos: ou a tendência para a intervenção “ad-hoc”, como aquela que a ANACOM parece ter em curso, ou a tendência para a inimputabilidade, de que é exemplo o Banco de Portugal e as administrações (e.g., Haitong) metidas na gaveta “ad-aeternum”.
Que não reste qualquer equívoco: a regulação tem de fazer valer as regras do jogo. Isto inclui capacitar o Estado para a negociação dos contratos. Mas uma vez definidas as regras do jogo, o regulador deve limitar-se ao papel de árbitro, e não ao de árbitro-jogador. Porque são as regras do jogo que servirão de último recurso em caso de conflito. São estes os mecanismos contratuais de governação para os quais as partes devem poder reverter em caso de litígio. As regras não podem, portanto, constituir a causa do conflito, algo que tenderá a suceder sempre que o árbitro se torna jogador também. Este tipo de jogador acabará a dar caneladas em todos os adversários e no final expulsá-los-á todos (à canelada, ou expulsando-os mesmo do jogo).
Um regulador tipo dono da bola afugentará os investidores e os prestadores privados. Os mais cínicos dirão que é uma forma muito eficaz de voltar a justificar a existência da empresa pública. Mas seria uma pena se assim fosse porque a escolha entre a prestação pública ou privada é uma escolha política, dos cidadãos representados parlamentarmente, não uma escolha de um regulador cuja função é tão-só fiscalizar o modo da prestação e não o de se substituir ao prestador. As regras, mais ainda numa concessão limitada no tempo, não se reescrevem a meio do processo, salvo entendimento voluntário entre as partes. As regras, vistas como mecanismos de governação, reavaliam-se no fim do contrato.
Nota: Este autor escreve, por opção, de acordo com o antigo acordo ortográfico.
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