Livre comércio não é um jogo de soma zero
Eu faço a minha própria manteiga de amendoim e não ando de mota, mas estou consciente de que o proteccionismo não é bom para a economia. E Donald Trump é capaz de ter essa noção também.
Uma das críticas que frequentemente se atiram aos economistas – usualmente num contexto em que se tenta mostrar que a Economia não é uma ciência – é a de que inventamos modelos para explicar porque falharam os anteriores. É engraçado porque eu tenho a ideia de que toda a Ciência evolui assim. Afinal, já foi o Sol a girar em torno da Terra. O que sucede é que a Economia, contrariamente às Ciências Naturais (julgo eu), tenta acertar num alvo em movimento, o seu objecto de estudo está em mutação (e reage ao que se diz sobre ele, o que complica a tarefa de prevê-lo).
Para esclarecer este meu ponto, costumo recorrer a David Ricardo. O seu modelo de comércio internacional, que até usou Portugal como exemplo, considerava um único factor de produção, o trabalho, que era homogéneo. Hoje em dia parece-nos disparatado, mas David Ricardo era um economista brilhante e as hipóteses subjacentes à sua teoria das vantagens comparativas faziam sentido no mundo pré-industrial em que ele viveu. De resto, a sua ideia central – de que os países exportam os bens que produzem de modo relativamente mais eficiente – mantém-se válida.
Claro que aquilo que determina essa maior eficiência relativa foi tendo várias explicações ao longo dos últimos 200 anos, reflectindo as alterações que o mundo foi conhecendo. A produção passou a envolver mais factores produtivos, alguns deles sem mobilidade sectorial; a tecnologia conheceu economias de escala; os bens deixaram de ser homogéneos. Todas estas modificações exigiram novos modelos. E todos eles concluíram que o livre comércio não é um jogo de soma zero, a soma é positiva.
No entanto, tal não significa que não exista quem perde com a liberdade das trocas internacionais. Pelo contrário, esse resultado de que há em cada país grupos de pessoas que saem prejudicadas com o comércio sem barreiras está previsto (por exemplo, pelo teorema Stolper-Samuelson). O “gráfico do elefante”, de Branko Milanovic, ilustra-o. Mas, no total, a passagem de uma situação de autarcia para uma de comércio internacional gera sempre ganhos de bem-estar.
Por isso, assisto com apreensão às notícias que vêm do lado de lá do Atlântico. Refiro-me, naturalmente, às tarifas que os EUA se preparam para aplicar às importações de aço e de alumínio. Eu faço a minha própria manteiga de amendoim e não ando de mota, mas estou consciente de que o proteccionismo não é bom para a economia. E Donald Trump é capaz de ter essa noção também. Tal como deve saber que uma taxa sobre produtos mexicanos não significa que é o México a pagar o muro, porque há uma coisa chamada elasticidade, que determina a incidência económica de qualquer imposto. Mas desenganem-se: isto não é uma questão de racionalidade económica. Aliás, notem que, num tempo em que se fala da Indústria 4.0, o Presidente dos Estados Unidos escolhe taxar algo que “é tão século XX”.
No seu livro O Mundo É Plano (parece uma obra de 1500, escrita antes da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães, mas tem uma dúzia de anos), Friedman (o Thomas, jornalista) narra uma história particularmente eloquente. Em 2003, uma empresa indiana ganhou um concurso público para melhorar o sistema informático de processamento de pedidos de desemprego no estado do Indiana. Ganhou o concurso porque apresentou a proposta mais barata, isto é, como menos custos para os contribuintes do Indiana. Possivelmente, alguns teriam perdido os seus empregos para a Índia. O contrato acabou por ser revogado pelo governador democrata, depois de os republicanos terem feito polémica dele. Mais irónico não podia ser.
Por cá, o debate político raramente sai da obsoleta dicotomia Esquerda-Direita, onde se tenta encaixar tudo, como se a Revolução Francesa tivesse sido ontem. Com resultados um bocadinho absurdos, como o de considerar Obama um socialista. Talvez por a leitura de gráficos ser uma competência complicada, ignorou-se que uma segunda dimensão, a libertário-autoritário, era necessária. Com a globalização, pelo menos mais um eixo é necessário, um que capte o grau de (supra)nacionalismo. Sem ele, republicanos contra o comércio livre é esquisito. Tal como é estranho que a Grécia tenha sido governada nos últimos anos por uma aliança entre o Syriza e o ANEL.
A abertura do mundo e as novas cadeias de valor vieram misturar categorias que nos tínhamos habituado a encarar de modo maniqueísta: opressor versus oprimido, explorador versus explorado, topo versus base. Deixou de ser fácil reconhecê-los. E o consumidor que há em nós quer que os preços baixem, mas entra em conflito com o trabalhador que somos, que vê o seu salário diminuir. Do mesmo modo que o filantropo hesita sobre a quem devotar a sua solidariedade, ao nacional do país em vias de desenvolvimento ou ao ocidental que acaba de perder o seu emprego para o primeiro. Neste contexto, os partidos políticos tradicionais deixaram de ter respostas. Enquanto as procuram, o populismo foi oferecendo slogans a que foi fácil aderir. Problema maior é quando deixam de ser apenas discurso.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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