Nova “lei da Uber” pode ser inconstitucional
Cobrança de até 2% sobre receitas da Uber, prevista na nova lei, pode violar a Constituição. Dúvidas também levaram os deputados a mudar designação de "taxa" para "contribuição".
A nova lei que que regulamenta as plataformas como a Uber, Cabify e Taxify poderá ser inconstitucional e violar as atuais regras tributárias. Em causa está a “contribuição” que as plataformas terão de pagar ao Estado para “compensar os custos administrativos de regulação e acompanhamento das respetivas atividades”, que se fica entre 0,1% e 2% das receitas obtidas por estas empresas com cada viagem.
Ao que o ECO apurou, existem dúvidas quanto à natureza deste tributo: apesar de ser considerado uma contribuição financeira, terá características semelhantes às de um verdadeiro imposto, que tem outras regras e condições específicas. Uma outra dúvida prende-se com o facto de a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) vir a ganhar um poder semelhante ao do Fisco na cobrança dessa contribuição, por reservar o direito de corrigir a liquidação do mesmo, caso necessário.
O alerta começou por ser lançado pela sociedade RFF Advogados, que garante que a contribuição sobre as plataformas eletrónicas de transporte suscita “dúvidas legítimas quanto à sua conformidade” com a Constituição da República Portuguesa e com a própria Lei Geral Tributária. Ou seja, a cobrança pelo Estado de até 2% das receitas das plataformas com cada viagem é algo que pode “vir a ser contestado pelas entidades”. Por outras palavras, mesmo que avance, existem pontas soltas na lei que podem abrir espaço a que a Uber, Cabify e Taxify optem por não pagar a devida contribuição. Mas outros advogados contactados pelo ECO também reconhecem o caráter “muito duvidoso” do que está inscrito na nova lei.
“Contribuição” com sabor a imposto
Desde logo, a primeira dúvida está relacionada com a natureza da contribuição. Segundo a RFF Advogados, pela forma como está descrita na nova lei, tem as características de “um verdadeiro imposto”. Ora, os impostos estão “sujeitos a regras” específicas, sublinha a sociedade, “que exigem especial atenção por parte do legislador“: são unilaterais (pagam-se sem que se receba algo em troca), recaem muitas vezes sob a alçada do Fisco e são “criados por lei”, que determina a taxa, a incidência, os benefícios e as garantias dos contribuintes, diz a Constituição.
No entanto, a própria sociedade vai mais além, e diz que não entende “se estamos perante um imposto ou um tributo de outra natureza”. “Se a contribuição incide sobre o valor das taxas de intermediação cobradas pelos operadores das plataformas eletrónicas de transporte, parece que estamos perante verdadeira tributação do rendimento dos referidos players“, reconhece a sociedade, num documento assinado por Rogério Ferreira, Vânia Rodrigues e João Costa. Ou seja, a “contribuição” assemelha-se a um imposto direto sobre as receitas das plataformas.
Mas o que está aqui em causa? Ao ECO, o fiscalista João Espanha vai mais a fundo. Uma contribuição tem de ser uma espécie de “taxa coletiva”, na qual o “conjunto de pessoas ou entidades” que a pagam é, de alguma forma, beneficiado em jeito de retribuição. “A pergunta é: [Uber, Cabify e Taxify] recebem efetivamente alguma coisa em troca? De quem? É porque, neste caso em concreto, estamos a falar de uma taxa que tem a receita consignada ao serviço público de transportes”, indica o fiscalista da Espanha e Associados. Ora, na visão do advogado, estes operadores “estão a ser chamados a entregar ao Estado reservas para que o Estado as gaste em algo que não tem nada a ver com eles”. “Só isso lança uma dúvida que me parece fundada quanto à natureza desta taxa”, resumiu.
"A criação deste novo tributo, nos termos plasmados no Projeto de Lei aqui em apreço, suscita dúvidas legítimas quanto à sua conformidade, quer com a Lei Geral Tributária e outros diplomas legais quer com a própria Constituição da República Portuguesa, podendo vir a ser contestado pelas entidades a ele sujeitas.”
Ainda sobre este ponto, em conversa com o ECO, o advogado Tiago Caiado Guerreiro foi pragmático. Não é contribuição nem é taxa, é um imposto: “Isso de ser contribuição especial não me cai bem. Tem características de um imposto”, disse. O advogado detalhou que um imposto tem “caráter unilateral como receita para o Estado”, pelo que seria a “terminologia” mais correta.
Para o advogado da Caiado Guerreiro, taxa é que nunca poderia ser, pois todas as taxas são bilaterais: pagam-se em troca de um serviço público, prestado pelo Estado. “Uma taxa incide numa prestação de serviços. É completamente diferente de um imposto”, explicou Tiago Caiado Guerreiro. Para comparação, há que recordar a recente polémica da Taxa de Proteção Civil em Lisboa, que foi recentemente declarada inconstitucional por este motivo. Ao ECO, o advogado nunca descartou a hipótese da inconstitucionalidade da lei, mas também não a confirmou.
Regulador dos transportes com função do Fisco
Há ainda uma segunda dúvida a orbitar a nova lei das plataformas eletrónicas de transporte. A “contribuição” em causa é cobrada por “autoliquidação”, mas a AMT vai ficar com a “faculdade de proceder à correção da autoliquidação”. Ou seja, segundo a RFF Advogados, este fator confere ao regulador dos transportes alguns “poderes semelhantes aos de uma verdadeira inspeção tributária”. Por outras palavras, nos termos da nova lei, a AMT ganharia um papel semelhante ao do próprio Fisco.
Sobre este ponto, o advogado João Espanha defendeu, em conversa com o ECO, que o assunto “é discutível” em termos de inconstitucionalidade. Pode ser [inconstitucional] e pode não ser, na medida em que esta lei, se sair sob a forma de lei, em princípio terá um mesmo valo que qualquer outra lei”, garantiu o fiscalista. Ainda assim, para João Espanha, é uma “opção legislativa de caráter muito criticável”. Isto porque atribui “a entidades públicas que não têm objeto tributário coisas que normalmente são da administração tributária”, detalhou.
Deputados anteciparam dúvidas constitucionais
A nova “contribuição” inscrita na lei que foi votada na semana passada partiu de uma proposta do PSD. Inicialmente, os social-democratas propunham a criação de uma “taxa” de até 5% sobre as receitas das plataformas. Contudo, não só o valor máximo foi revisto para 2% no âmbito das negociações com o PS como a denominação de “taxa” foi substituída por “contribuição”.
O ECO sabe que esta mudança de designação, de “taxa” para “contribuição”, surgiu precisamente por existirem receios entre os deputados de que a primeira designação pudesse vir a criar entraves à promulgação da lei, por existirem dúvidas quanto à sua constitucionalidade. Assim, os alertas da RFF Advogados e os dos restantes fiscalistas ao ECO vêm dar corpo e voz a essas dúvidas, que já existiriam nas galerias da Assembleia da República.
Segundo o projeto-lei, a “contribuição” sobre os ganhos de plataformas como a Uber, que pode incidir em até 2% da comissão que retiram sobre o valor pago pelo cliente é repartida pelo Fundo para o Serviço Público de Transportes (40%), Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (30%) e Instituto da Mobilidade e dos Transportes (30%). O valor final deverá ser definido em portaria pelo Governo.
Na semana passada, as várias propostas dos partidos foram votadas ponto por ponto. Os serviços do Parlamento ficaram com a tarefa de redigir a redação final com base na votação e a lei deverá subir novamente ao plenário, para votação final. Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, terá a última palavra a dar: poderá promulgar ou vetar a lei, mas tem também a possibilidade de a enviar para avaliação do Tribunal Constitucional.
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