No Porto, mais de 450 profissionais do calçado discutem o futuro da indústria. Fortunato Frederico e Luís Onofre, ex e atual presidente da APICCAPS, dizem que a mão-de-obra é um dos constrangimentos.
Fortunato foi presidente da APPICAPS durante 18 anos, Luís vai a caminho do seu segundo ano no mesmo cargo. Um é líder de uma das maiores empresas do setor (Kyaia), o outro é um dos rostos mais mediáticos do calçado de luxo em Portugal (Luís Onofre). O ECO desafiou os dois para falarem do setor que, a partir desta quinta-feira discute, no Porto, em congresso mundial, o futuro da indústria no plano internacional. O encontro reúne no Porto mais de 450 profissionais ligados a esta indústria que vêm de todo o mundo.
Fortunato Frederico e Luís Onofre representam duas gerações distintas mas com ideias semelhantes. Por um lado, Onofre quer o setor líder mundial das novas tecnologias e atrair jovens talentos. Por outro, Fortunato diz que há constrangimentos devido à falta de mão-de-obra. No entanto, ambos defendem a expansão para novos mercados, mas sempre com passagem pelos Estados Unidos. Duas gerações em discurso direto.
Atendendo aos tempos que correm e aos desafios no contexto da globalização, que grandes desafios tem o setor do calçado pela frente para os próximos anos?
Luís Onofre: Temos a grande ambição de ser líderes mundiais na utilização de novas tecnologias, criando uma nova relação com os clientes. Vamos investir 50 milhões nesse projeto. Depois, gostaríamos de ter mais empresas a exportar: temos um exército de empresas preparadas para isso, para um número crescente de mercados. Gostaríamos de duplicar as vendas para fora da Europa — representam agora 15% do total — na próxima década.
Fortunato Frederico: Diria que esta é a pergunta para um milhão de euros. Há um historial do setor do calçado. E nós, e falo pela minha empresa, a Kyaia, procuramos evoluir e estar cada vez mais competitivos, pelo que temos vindo a reforçar as nossas parcerias, quer com o Centro Tecnológico do Calçado, quer com a Universidade do Minho, quer com o INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência), na medida em que o futuro exige mais conhecimento.
Há um novo paradigma na indústria, devido sobretudo à mudança estrutural que se vive ao nível da sociedade. Nesse sentido, desenvolvemos uma plataforma de vendas online para o setor, a Overcube, que pretende “apanhar” uma fatia dos mais de 80 milhões de pares de sapatos que o setor português exporta por ano. Para além das nossas quatro marcas — Fly London, Softinos, Foreva e Portuguesa –, contamos já com mais 15 a 16 marcas que se juntaram na plataforma. A Overcube arrancou há meses com uma equipa de 21 pessoas, e é um modelo de negócio em que podemos substituir salários mais baixos, do retalho, por salários mais altos, de pessoas com mais conhecimentos tecnológicos.
Um problema que tem sido transversal a todos os setores prende-se com a falta de mão-de-obra, qualificada e não só. O que está a indústria de calçado a fazer para dar resposta a este problema?
Luís Onofre: Na última década, o setor contratou 10.000 novos colaboradores. O emprego cresceu mais de 20%. Mas assumimos claramente que uma das grandes prioridades do setor passa por atrair uma nova geração de talento.
Fortunato Frederico: Todo o crescimento do grupo Kyaia está meio bloqueado por falta de mão-de-obra, quer pessoal qualificado, quer pessoal não qualificado. Temos planos de crescimento até 2024 mas há, de facto, estrangulamentos em todo o setor do calçado. Como é que isto se melhora? Não sei. Damos boas condições de trabalho, temos cantina e tínhamos até uma creche que, por falta de crianças, vamos transformar em centro de dia.
Ainda na questão da mão-de-obra, como é que se pode atrair jovens quadros para o setor?
Luís Onofre: Temos várias iniciativas com a nossa Academia. Temos muito trabalho em curso, com as escolas, na opinião pública, ações de rua e nas redes sociais, para atrairmos mais talento. E aspiramos a novos patamares de excelência.
Fortunato Frederico: Tem de haver uma maior ligação às universidades e aos centros tecnológicos. A Kyaia tem ainda o problema acrescido de estar localizada numa zona onde existem grandes companhias, fortemente capitalizadas e, para onde vão a grande maioria dos quadros, como é o caso da Bosch, por exemplo. Temos de concorrer com essa gente.
Que investimentos considera vitais, sobretudo atendendo às exigências da indústria 4.0?
Luís Onofre: Investimentos em novas tecnologias que acelerem os prazos de resposta, ações em matéria do digital, formação avançada e, naturalmente, criando uma relação mais próxima com os clientes finais. Vamos atuar em várias frentes.
Fortunato Frederico: Não penso que haja uma cartilha única, cada caso é um caso. Sobretudo tem de haver capital para investir e, depois, podemos beneficiar da imagem do calçado — que é boa — mas temos de cumprir com os prazos. O grande desafio, parece-me, é ter um quadro de pessoal estável, e não andarmos a desestruturar a fábrica do vizinho, pois isso vai desorganizar o setor. De resto, posso dar o nosso exemplo, que há 21 anos fomos para Paredes de Coura exatamente porque havia estrangeiros em Guimarães a roubar-nos quadros. E hoje estamos a assistir a um movimento semelhante, mas com portugueses.
Relativamente aos mercados externos, como está a aposta no mercado dos Estados Unidos? Esta aposta não fica condicionada às ameaças protecionistas de Trump?
Luís Onofre: A aposta nos EUA será sempre uma aposta a médio prazo. Este será o ano em que iniciamos definitivamente a abordagem ao mercado americano. Vamos fazê-lo em conjunto com os nossos colegas do vestuário. Encontramos na ANIVEC os parceiros adequados para promovermos esta ação conjunta, que desejamos que tenha um grande impacto. As nossas vendas para os EUA quintuplicaram na última década e acreditamos que a margem de crescimento para os próximos anos será significativa.
Fortunato Frederico: O que está em causa com a procura de mercados externos é a nossa sobrevivência, é a sobrevivência do próprio setor. Nos tempos que correm vivemos uma mudança estrutural, dantes as crises eram conjunturais, agora as crises são difusas, como costumo dizer, dantes sabíamos onde estava o gato e onde estava o rabo. Agora, nem do gato sabemos, quanto mais do rabo. Os novos mercado são instrumentos que temos para tentar fazer face a estes constrangimentos e o mercado americano pelo sua imensidão e pelo seu poder económico são vitais para o setor do calçado. Na Kyaia já vendemos nos 50 estados americanos. E o mercado dos Estados Unidos juntamente com o do Canadá, que para nós é um só, é já o primeiro mercado em termos de volume para a Kyaia, tendo mesmo ultrapassado o Reino Unido. Quanto a Trump, ameaça é não ter saúde, isso sim é uma ameaça. O resto vai-se contornando.
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Duas gerações e 80 milhões de pares de sapatos exportados. O que ainda falta fazer no calçado?
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