Há greve porque a escola é pública

Esta semana, ao ver os dirigentes sindicais vangloriarem-se dos efeitos das greves dos professores sobre os processos de avaliação dos estudantes, fiquei indignado.

Ao longo da minha vida, frequentei escolas privadas e escolas públicas. Guardo boas recordações tanto de umas como de outras. Mas esta semana, ao ver os dirigentes sindicais vangloriarem-se dos efeitos das greves dos professores sobre os processos de avaliação dos estudantes, fiquei indignado. Afinal, com que moral se atrapalha e se bloqueia a vida dos estudantes, designadamente os do 9º e do 12º ano, que têm de fazer escolhas para o seu futuro imediato e que dependem do lançamento das notas para as fazer? Não há moral. A isto chama-se instrumentalização dos alunos, que infelizmente também me recordo de ter vivido nos anos 90 quando andava no secundário – faz parte das recordações más – e que, sendo recorrente no ensino público, é indigna e atentatória da deontologia docente, independentemente do direito à greve e das razões que assistem os professores.

Enfim, escrevi-o aqui na semana passada e repito: em face do acordo entre o Governo e os professores, escrito e assinado no final do ano passado, reiterado no orçamento do Estado para 2018, e com o qual o Governo se comprometeu, os professores têm toda a razão em protestarem pela contagem integral dos tempos de carreira. Mas, a exemplo do que também critiquei no meu artigo da semana passada, não pode valer tudo. Assim, do Governo exige-se que honre os seus compromissos e dos professores que se comportem como educadores. Nem vigaristas, nem terroristas.

O regime do direito à greve está constitucionalmente consagrado por via do artigo 57º da Constituição da República Portuguesa. Porém, como refere o Professor António Monteiro Fernandes em “Direito do Trabalho” (Almedina, 18ª edição, p. 653), “[O] aspecto crucial desse regime é o da determinação dos serviços mínimos que os trabalhadores em greve devem prestar para que necessidades colectivas essenciais não deixem de ser satisfeitas”. Foi isso – os serviços mínimos – que o Ministério da Educação tentou esta semana negociar, sem sucesso, junto dos sindicatos e que agora, conforme previsto na lei, será provavelmente remetido para o Conselho Económico e Social que tratará de arbitrar a contenda.

Em reacção à greve dos professores, a Confederação de Pais e Encarregados de Educação (CONFAP) acusou os grevistas de “desonestidade intelectual” – falta de brio profissional teria ficado igualmente bem – referindo ainda que “[Esta] greve prejudica a escola pública, criando desigualdade de oportunidade com outros sistemas de ensino”.

O comunicado da CONFAP terminou, rematando forte e, na minha opinião, à baliza, da seguinte forma: “A manter-se tal conjuntura ano após ano e não conseguindo os sucessivos governos inverter esta situação, então deve-se repensar a política educativa sobre os contratos de associação ou outras formas que permitam a todas as famílias poderem fazer a sua escolha pela escola.”

Ora, o que está a acontecer nas escolas públicas só é possível porque são escolas públicas, e porque o sistema está centralizado num Ministério da Educação refém do lobby instituído nos sindicatos dos professores. É ver que não há registo deste tipo de actuação em escolas privadas. E é ver também o que sucedeu ainda recentemente noutra matéria relacionada com esta: no debate sobre a descentralização de funções do Estado para o nível local, foram os sindicatos dos professores que mais se manifestaram contra a possibilidade de incluir a gestão do pessoal docente nessa descentralização. Porquê? Por uma simples razão: quanto mais centralizado for o sistema, maior é o poder de influência dos sindicatos sobre o ministro e sobre a política que se alapa na educação.

Neste sistema centralizado, a relação de poder joga-se entre o ministro e o sindicalista-mor em Lisboa. É uma relação de natureza política. Ao mesmo tempo, configura do lado do ministro uma relação de principal-agente muito difusa, porque o ministro é agente de um principal – o Governo ou, no limite, a Assembleia da República – que frequentemente se desresponsabiliza das suas decisões. Pelo contrário, num sistema descentralizado, a relação de poder estabelece-se entre o director da escola e o professor, constituindo uma relação cuja natureza é essencialmente de mérito e em que o verdadeiro principal, o encarregado de educação, está muito mais próximo do agente, o director da escola no caso da escola privada ou o vereador da educação no sistema público descentralizado.

O sistema de ensino em Portugal está, de resto, completamente inquinado. Ele empurra-nos para a escola pública, sendo que os encarregados de educação são como que coagidos a inscreverem os seus filhos nas escolas públicas, sejam estas boas ou más. Por um lado, porque há critérios de residência que obrigatoriamente limitam a colocação das crianças nas respectivas escolas e que infelizmente estimulam também muita aldrabice nas provas de residência prestadas pelos encarregados de educação. É o que se designa por efeito não pretendido, mas que decorre da imposição de um critério burocrático que não premeia, antes secciona, a qualidade escolar.

Por outro lado, porque independentemente do número de filhos, e isto num quadro de elevadíssima progressividade fiscal do IRS, as deduções fiscais por conta de despesas de educação dos agregados familiares estão limitadas a um valor pífio de 800 euros por ano (o equivalente a duas ou três mensalidades por aluno num bom colégio privado). Com este incentivo, só os “tolinhos” ou os endinheirados investem mais na educação dos seus.

Assim, dizer-se que existe em Portugal liberdade de escolha na educação não passa de uma gigantesca fraude intelectual que serve a agenda corporativa (e frequentemente também ideológica) dos sindicatos dos professores, mas não o interesse da generalidade dos alunos. É, de resto, uma fraude que arreda a possibilidade a muitas famílias de classe média e classe média-alta de poderem oferecer aos seus filhos uma educação alternativa (e frequentemente de melhor qualidade), encerrando aqui um autêntico atentado aos direitos fundamentais de qualquer pai ou mãe: decidir como deve investir na educação dos seus.

O comunicado da CONFAP vai ao cerne da questão: o problema da educação pública em Portugal está na prestação pública da educação, num sistema que está centralizado e fechado sobre si próprio. Neste quadro, há várias alternativas institucionais. Dos cheques ensino, aos contratos de associação, às IPSS, às “charter-schools” do tipo norte-americanas, ou outras formas que incluam financiamento público com prestação privada, não faltam soluções e não faltam países que as tenham adoptado com maior ou menor descentralização institucional, com maior ou menor financiamento público, com maior ou menor prestação privada, público-privada ou cooperativa.

Na realidade, seria perfeitamente possível desenhar um sistema alternativo que conciliasse três aspectos fundamentais. Primeiro, que nenhum aluno ficasse sem direito à educação, cumprindo o desiderato constitucional da educação como bem público. Segundo, que as escolas beneficiárias de financiamento público directo (através de contratos directos com o Estado e excluindo formas indirectas como cheques ensino), como contrapartida contratual, admitissem corpos discentes cujos agregados familiares fossem representativos da distribuição de rendimentos no País.

E, terceiro, que aos encarregados de educação fosse permitido descontar na totalidade as despesas de educação que excedessem a sua respectiva quota no orçamento público disponível para educação. Na prática, isto representaria a possibilidade, atendendo a que o orçamento público do ensino básico e secundário ronda os 6.000 milhões de euros para cerca de 1,7 milhões de alunos, de deduzir na íntegra qualquer montante acima de 3.500 euros anuais por aluno (cerca de 300 euros por mês) que fosse investido pelas famílias em despesas de educação adicionais.

Nesta arquitectura institucional alternativa todos ficariam melhor. Os encarregados de educação beneficiariam finalmente de liberdade de escolha na educação dos seus e, também, de incentivos adequados ao investimento em educação. A ideologia seria deste modo neutralizada em prol da educação enquanto bem público que a todos aproveitasse, independentemente do modo da sua prestação (cooperativa, privada ou público-privada).

Quanto aos alunos, estes certamente sairiam beneficiados porque as relações de poder deixariam de estar dominadas pela habilidade política dos sindicatos em Lisboa, passando a estar centradas na qualidade das escolas e responsabilizando os directores e os professores em cada localidade do País perante os alunos e os encarregados de educação.

E, por fim, também os professores ficariam melhor. Na verdade, a situação dos professores melhoraria duplamente. Primeiro, abrir-se-lhes-ia a possibilidade de oferecerem os seus talentos a uma procura constituída por um número muito maior de empregadores, em vez de em geral se ficarem pelo empregador único (o Estado). Trata-se aqui da maior protecção que se pode oferecer a qualquer trabalhador: concorrência pela contratação dos seus serviços que, a prazo, resulta na valorização do mérito e, claro está, em salários mais elevados para aqueles que, a exemplo de todas as outras carreiras, têm mais qualidade (sendo esta aferida pelos critérios específicos da profissão). E, segundo, professores que fossem promovidos e valorizados por essa mesma concorrência de escolas revigoradas, seguramente encontrariam um patrão que cumprisse “ipsis verbis” os seus compromissos. Habituados que estão a lidar com um Estado que é gangster, pior não ficariam. Mas, claro está, porque em Portugal gostamos de fazer de conta, tudo permanecerá como está. Os “tolinhos” que se amanhem.

Nota: O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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