É maior a falta de memória do que o susto. Esmeralda Dourado, hoje administradora da TAP, reconhece os progressos feitos na supervisão, mas duvida da capacidade de resposta a uma crise como a de 2008.
Onde estava quando o Lehman Brothers faliu? Das três, uma: ou em Portugal, ou no Brasil ou em trânsito para um destes destinos. Esmeralda Dourado era presidente executiva da SAG quando, a 15 de setembro de 2008, os Estados Unidos serviram de palco para a maior falência da história. Dez anos depois, agora administradora não executiva da TAP e ainda na administração da SAG (como vogal), não pode dizer que o estrondo de então tenha sido inesperado, embora tenha sido “uma surpresa pelo efeito devastador que teve”. Mas a idade trouxe-lhe cinismo e, hoje, acredita que é maior a falta de memória do que foi o susto. Dizer que estamos preparados para um novo Lehman Brothers, se ele vier, é “wishful thinking“.
Esmeralda Dourado estava à frente da empresa que comercializa as marcas da Volkswagen em Portugal e, na altura, já era evidente a fragilidade dos mercados. “Toda a gente tinha noção de que havia um sobreaquecimento do mercado, de que havia um excesso de confiança. A noção de que estava a atingir patamares de risco elevados existia. Por onde é que ia eclodir a crise, não se sabia”, recorda a gestora.
Toda a gente tinha noção de que havia um sobreaquecimento do mercado, de que havia um excesso de confiança. Por onde é que ia eclodir a crise, não se sabia.
Aliás, acredita, poderia ter eclodido com outro evento totalmente diferente. “Foi o Lehman Brothers, mas podia ter sido outra coisa qualquer“. A verdade é que podia mesmo ter sido outro gigante a cair. No mesmo fim de semana em que se reuniam para tentar salvar o Lehman Brothers, a continuidade do Merrill Lynch também estava em jogo. Este último acabou por ser resgatado ao ser comprado pelo Bank of America, numa operação avaliada em cerca de 50 mil milhões de dólares. Antes disso, o Governo norte-americano já tinha feito uma intervenção de 182 mil milhões para salvar a seguradora American International Group (AIG). O banco com 158 anos de existência acabou por ter destino diferente. Apesar de ter interessados, sem uma ajuda federal que as autoridades recusaram conceder, nenhum investidor quis concretizar o negócio e a instituição ficou pelo caminho.
Com o Lehman ou com outro qualquer, o mundo mudou. “Foi um processo profundamente disruptivo que chamou a atenção para uma série de coisas. Fez tremer uma série de fundamentais e de pressupostos em que as instituições se baseavam e em que projetavam os seus planos futuro, que tiveram de ser todos repensados“, aponta a administradora da TAP.
[A queda do Lehman Brothers] fez tremer uma série de pressupostos em que as instituições projetavam os seus planos futuro, que tiveram de ser todos repensados.
Por cá, o efeito foi devastador, mas não poderia ser evitado. “Somos uma pequena economia atrelada a uma série de fatores exógenos. A nossa capacidade endógena de tomar determinadas medidas é relativamente mais reduzida do que a força dos fatores exógenos para nos arrastar para determinadas situações”.
“O excesso de confiança fura todas as supervisões”
Se é certo que a queda do Lehman Brothers serviu para “reforçar uma série de procedimentos de controlo e de supervisão”, é certo também que a natureza humana é de repetição dos erros, acredita Esmeralda Dourado. “A memória é curta e a tendência para as pessoas repetirem erros é enorme. Nunca são é erros da mesma forma. Podem ser derivados de erros”.
A gestora não aponta semelhanças concretas entre o atual contexto macroeconómico e o de então, mas reconhece um ponto em comum. “O excesso de confiança fura todas as supervisões e todos os procedimentos. Quando se está a surfar no pico da onda, muitas vezes, passa-se por cima de algumas cautelas, embora as instituições, nomeadamente as de supervisão, tenham uma função determinante na prevenção destas situações”.
No fim, é como “um jogo do gato e do rato”, em que “aparecem eventos novos que fazem com que os supervisores tenham de se posicionar de uma forma diferente ao nível de determinadas exigências”. No fundo, “existem processos de criatividade na forma de tornear algumas questões de escrutínio“.
Toda a gente analisou o caso, tirando daí imensas conclusões. Se são capazes de aplicar essas conclusões no quotidiano de maneira a poder prevenir situações derivadas dessa, isso é um pouco wishful thinking.
É por isso que, hoje, Esmeralda Dourado não espera milagres quanto à capacidade de resposta a uma nova crise. “Com a idade, vamo-nos tornando cínicos. É surpreendente como as pessoas têm tendência para se esquecer das aprendizagens e dos erros do passado. Toda a gente analisou o caso, tirando daí imensas conclusões. Se são capazes de aplicar essas conclusões no quotidiano de maneira a poder prevenir situações derivadas dessa, isso é um pouco wishful thinking“.
Quem olhasse para as capas dos jornais de há dez anos não teria a mesma sensação de “sobreaquecimento do mercado” que Esmeralda Dourado recorda. A 2 de setembro de 2008, a cerca de duas semanas da falência do Lehman Brothers, a única notícia vinda dos Estados Unidos que merecia destaque na imprensa portuguesa dizia respeito ao furacão Gustav, que então passava por Nova Orleães. “Traumatizada pelo Katrina, Nova Orleães preparou-se para o pior, as o pior não aconteceu. O furacão Gustav enfraqueceu ao chegar ontem à costa do estado da Luisiana”, escrevia o Público.
O Diário de Notícias e o Jornal de Negócios destacavam o efeito do Gustav sobre os preços do petróleo e, um pouco por todo o lado, havia também referências à convenção republicana, na altura em que John McCain — falecido recentemente — se preparava para concorrer à presidência contra Barack Obama, que teve de ser adiada por causa do furacão. Sobre o colapso financeiro que estava prestes a fazer-se sentir, pouco ou nada, apesar de, por esta altura, já se saber que o banco estatal coreano Korea Development Bank estava a negociar a compra de uma participação no Lehman Brothers — operação que, como se sabe, não veio a concretizar-se.
Por cá, o foco estava na Função Pública. Em vésperas de ano de eleições legislativas, o Governo em funções, liderado por José Sócrates, enfrentava as exigências dos sindicatos que exigiam o cumprimento da promessa de aumentos salariais em 2009. “Sindicatos exigem aumento mínimo de 3,5%”, escrevia o Jornal de Negócios. No setor da educação, o Diário de Notícias escrevia sobre a situação dos milhares de professores que não só tinham ficado sem vagas nas escolas, como nem sequer reuniam as condições para receber subsídio de desemprego.
No mundo do desporto, em setembro de 2008 ainda subsistia a dúvida: “Ronaldo pode ser melhor que eu”, admitia Eusébio, que acabou por falecer em 2014.
Nos primórdios do Lehman Brothers, a empresa esteve envolvida no negócio do tráfico de escravos. De acordo com a NPR, há registos de que, a 16 de março de 1854, a companhia comprou uma escrava de 14 anos chamada Martha, embora se desconheça que funções é que veio a desempenhar. No entanto, Martha não foi um caso isolado. Segundo os censos norte-americanos de 1860, citados pelo USA Today, o mais novo dos três irmãos, Mayer Lehman, era registado como proprietário de sete escravos nessa altura: três do sexo masculino e quatro do sexo feminino, com idades compreendidas entre os cinco e os 50 anos. O Lehman Brothers só admitiu ter lucrado com este negócio em 2003, quando se viu obrigado a fazê-lo para não perder o direito a continuar com os seus negócios em Chicago.
Foi há 10 anos que o Lehman Brothers colapsou. O dia 15 de setembro marca simbolicamente o início da maior crise financeira dos últimos 80 anos. ‘Onde estava quando o Lehman faliu?’ é uma rubrica diária, de 1 a 15 de setembro, onde empresários, banqueiros, políticos, economistas e advogados dizem ao ECO como viveram a queda do banco e o que aprendemos com a crise.
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Preparados para um novo Lehman? “Tendência para se repetirem erros é enorme”, diz Esmeralda Dourado
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