O jornalismo não pode ser cúmplice de uma mentira

Os políticos sempre mentiram, mas nunca essa mentira conseguiu chegar tão longe. A missão do jornalismo tornou-se, por isso, muito mais exigente.

Freedom of speech is not a licence to be stupid

1.
“Se somarmos todas as propostas da oposição, teríamos uma tragédia orçamental de 5,7 mil milhões de euros.” António Costa disse-o assim mesmo, sábado passado nas jornadas parlamentares do PS. E assim mesmo a frase passou, nas televisões, nas rádios, nos jornais, nos sites. Também nas redes sociais, em títulos com adjetivos à medida: Costa avisa para uma “catástrofe”.

Vi, ouvi e li muitas dessas notícias, à procura do contra facto. Na maior parte dos casos, o que vi (o que vimos todos) foram os números de António Costa, só e apenas aqueles que o primeiro-ministro nos quis mostrar, a dois dias do início das votações do Orçamento na especialidade. Havia um número por partido (convenientemente acentuando a “irresponsabilidade” da direita e não da esquerda), havia distribuição por receita e despesa. Mas nem um documento, nem um quadro, nada a indicar-nos que contas eram aquelas, que nos permitisse atestar se elas faziam sentido, se a informação era séria, propaganda ou falsa.

E valia a pena perguntar assim: Costa limitou-se a somar o que propõem PSD, CDS, BE, PCP e PAN, sabendo que os partidos tinham propostas coincidentes? Costa estava a usar números brutos ou líquidos? E se os números eram assim tão certinhos, por que não nos deu a lista detalhada? Se colocássemos a frase de António Costa numa escala de um polígrafo, ele diria que é enganadora. O mais correto, porém, seria chamar-lhe manipulação.

Porém, sem escrutínio, a mensagem bastou para marcar todo o debate final do Orçamento: Governo responsável, restantes partidos irresponsáveis (e tão curioso seria saber quanto custavam as propostas do PS, touradas incluídas).

2.
Não é de hoje que os políticos manipulam informação. Nem António Costa é o primeiro chefe de Governo a usar informação privilegiada para condicionar um debate.

Porém, se a prática é ancestral, a verdade é que a tecnologia de hoje potencia as piores características dos políticos. Antes, um discurso cheio de falsidades influenciava alguns, mas havia tempo para o desmascarar; hoje um discurso falso dissemina-se em minutos nas redes sociais, facilmente chega a milhões – tornando muito mais difícil um fact check em tempo útil.

Não por acaso, uma das discussões mais interessantes que se faz nos media americanos é se as televisões devem continuar a transmitir, em direto, um discurso de Donald Trump. Não, não é de o censurar, de o ignorar. É discutir se é desejável passar, sem filtro nem escrutínio, um discurso de um Presidente que (segundo dados do Washington Post) disse nove factos errados em cada dia deste ano.

A verdade é que os media se queixam muito, mas têm sido muitas vezes cúmplices dessas mentiras. Cúmplices por omissão, cúmplices por transmissão.

Por omissão, desde logo, porque aceitam ser mais “apelativo” um número grande com um adjetivo (“5,7 mil milhões”, “catástrofe”) do que recuar a um título mais crítico e defensivo. Também porque é mais fácil simplesmente reproduzir do que fazer perguntas e esperar respostas (e Deus sabe quão curtos são os meios com que trabalham). E, já agora, porque os jornalistas meteram na cabeça que não podem fazer notícias com dúvidas em aberto, porque acham que têm a obrigação de dar sempre respostas – como se fossem omnipotentes ou, simplesmente, mágicos. Não são.

Mas os media são também cúmplices por transmissão, porque o simplismo com que se reproduz o que alguns políticos dizem faz deles o hóspede perfeito para o vírus que esses políticos querem espalhar. Basta pôr a frase bombástica entre aspas, atribuí-la ao político e pôr a notícia no Facebook – onde ela chega a milhões. A grande questão é se, com a facilidade com que se propaga hoje uma mentira, a responsabilidade é só do político que diz a frase ou também do órgão de comunicação que aceita passar a mensagem como se fosse certa.

3.
É claro que é, ainda, bem diferente falar das mentiras de Donald Trump ou da manipulação que, grosso modo, ainda domina o debate público por aqui. É diferente na escala do problema, é diferente na qualificação dele (não é igual mentir ou distorcer) e é diferente no que se segue do processo político (porque Trump quer neutralizar os media tradicionais e, por cá, os políticos ainda só os querem usar).

Mas lá, como cá, a pergunta aplica-se de igual forma: devemos mesmo transmitir os discursos sem procurar, ao mesmo tempo, verificar os factos? A liberdade de expressão será uma licença para ser estúpido? – na formulação feliz de um cartaz que está exposto no Newseum, em Washington, e que devia estar afixada em todas as redações de media do mundo livre.

A resposta é, claro, que não. Porque os media têm uma obrigação pública de procurar a verdade e não se podem demitir dela sem pôr em causa a sua existência. Porque não serve o argumento de que nem sempre a verificação de dados é eficaz, porque um tweet de Donald Trump chega a mais pessoas do que o próprio New York Times – para não referir uma notícia falsa propagada por cá ou nos EUA, seja lançada pela Alt-Right ou por contas russas no Facebook.

A verdade é que basta termos a certeza de que podemos ajudar a desacelerar o vírus para garantirmos que cumprimos o essencial da nossa missão. Pelo menos para com os nossos leitores, para com os nossos ouvintes ou telespectadores. É verdade: a desinformação massiva é o nosso novo normal. Mas, como se dizia num belíssimo artigo, publicado esta semana na The Atlantic, basta isso: procura a verdade, para aqueles que se interessam por ela.

Declaração de interesses: esta semana, hoje mesmo, começa na TVI um programa de fact check, liderado pelo José Eduardo Moniz, que me honrou com um convite para o ajudar nesse projeto. Este artigo é, portanto, um convite para que nos sigam por lá também.

Notas soltas da semana

  • Orçamento em fim de ciclo. A quantidade de medidas que, neste orçamento, foram aprovadas sem o voto do PS mostra como António Costa terá enorme dificuldade em governar, a seguir a 2019, se não tiver um acordo escrito.
  • PSD em modo “suicídio assistido”. Se dois vice-presidentes de um partido têm que alertar que ou os críticos se calam ou o PSD morre, então é porque o dia do fim está mesmo à vista.
  • Benfica em modo de suicídio presidencial. Quando o presidente de um clube, já fragilidade, diz que o treinador fica mas esteve mesmo para sair; quando diz que ele não sai porque não pode contratar um treinador em 24 horas… isso já não quer dizer só que o treinador chegou ao fim da linha. Quer dizer que o presidente passou o prazo de validade.

* P.S. O parágrafo deste texto relativo às contas de António Costa às propostas da oposição foi alterado face à versão original. Mais correto deixar dúvidas, quando são elas que sobressaem.

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