“Ticão”. Terá o tribunal dos casos mais complexos os dias contados?
Com dois juízes polémicos, é ao TCIC que vão parar os processos mais complexos. À Advocatus, advogados de arguidos dos processos mais mediáticos respondem sobre a viabilidade deste tribunal.
A discussão de que o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), vulgarmente conhecido como “Ticão”, deveria ser extinto ou reformulado é recorrente e merece debate entre as várias classes da justiça. É lá que vão parar os casos mais complexos e, por sinal, os mais conhecidos. Caso disso é o megaprocesso “Operação Marquês”, que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates, ou ainda o caso EDP/CMEC, que envolve António Mexia.
Outra característica invulgar deste tribunal é o facto de ter só dois juízes: Carlos Alexandre (no Ticão há mais de dez anos, e onde chegou a ser o único juiz durante vários anos) e Ivo Rosa (a dividi-lo desde 2015). Os dois de perfil marcadamente distinto: enquanto o primeiro é conhecido por ser favorável às teses do Ministério Público (MP), o segundo é comummente apelidado de “persona non grata” entre os procuradores do MP, por ser habitual decidir contra as suas posições.
O ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, defendeu em entrevista recente ao Expresso a sua extinção. “Trata-se de um tribunal cuja existência eu nunca compreendi e que hoje em dia não tem razão de ser. As funções do TCIC deviam ser desempenhadas pelos tribunais de instrução criminal”, referiu.
Também Mário Belo Morgado, vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura, disse à Advocatus que entende que deveria haver uma fusão do Ticão com o Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa. “Este último tem um quadro de sete juízes, já o Tribunal Central tem dois. Com um quadro de, pelo menos, nove juízes, evitar-se-ia que fossem sempre os mesmos dois juízes que estivessem no centro da atenção mediática”, argumentou.
Os advogados também têm uma palavra a dizer nesta matéria. Especialmente os dos arguidos mais mediáticos, que lidam de perto com este tribunal. Perguntámos objetivamente se este tribunal deveria ser extinto e se o facto de ter apenas dois juízes era um ‘senão’. As respostas foram praticamente unânimes. Deve ser extinto e a justiça perde com esta “pessoalização” das decisões instrutórias.
"Uma lei que obrigue um juiz de instrução a julgar em fase de instrução os seus próprios atos jurisdicionais em fase de inquérito e sem recurso é, a meu ver, materialmente inconstitucional.”
José António Barreiros, advogado de Zeinal Bava, ex-CEO da PT e arguido na “Operação Marquês”, defende que um tribunal de instrução criminal “que seja privativo de um departamento de investigação do MP, porque de um departamento para casos relevantes e sensíveis, e que a isso soma o poder de avocação de processos que corram pelo país, é uma situação apta a gerar problemas com repercussão pública”.
Problemas havendo sintonia e havendo divergência, diz. “A ideia de haver pessoalização nasce, afinal, do que resulta daquela relação de proximidade permanente. O mediatismo decorre da natureza dos casos que por ali correm. O paroxismo do que sucede é o fruto óbvio de tudo isso. O poder político que isto criou não ignorava que tal iria suceder”, conclui.
Um tribunal exclusivo?
Já quanto ao facto de só existirem dois juízes no TCIC, o advogado afirma que uma lei que obrigue um juiz de instrução a julgar em fase de instrução os seus próprios atos jurisdicionais em fase de inquérito e sem recurso é “materialmente inconstitucional”. O que aconteceu diversas vezes numa altura em que Carlos Alexandre foi o único juiz deste tribunal. “Havendo um só juiz é o que sucede sem alternativa. Havendo mais juízes é o que sucederá se o que tiver intervindo no inquérito não ficar impedido de atuar na instrução. Não é, pois, a quantidade que resolve. “Quem criou a lei impôs a juízes aquilo a que juízes não devem estar sujeitos”, conclui.
"Concordo em absoluto com a extinção do TCIC. Tenho até dúvidas da sua existência. Não há nada que justifique o DCIAP ter um tribunal exclusivo quando lhe dá jeito.”
João Medeiros, advogado contratado pelo Benfica para o caso e-Toupeira e também de um dos arguidos da Operação Marquês, diz que concorda em absoluto com a extinção do TCIC. E vai mais longe: “Tenho até dúvidas da legalidade da sua existência. Não há nada que justifique o DCIAP ter um tribunal exclusivo quando lhe dá jeito”, rematou. Já quanto ao Tribunal Central ter só dois juízes respondeu que “nada disso aconteceria se estivesse integrado nos tribunais de instrução criminal”.
Paulo Saragoça da Matta, advogado de Ricardo Oliveira, do caso BPP e do Benfica, no caso e-Toupeira, mostra-se mais cético quanto a uma extinção, justificando a existência deste tribunal com a sua especialização. “Tal como a extinção do DCIAP não faz sentido por razões de especialidade e complexidade dos temas ali investigados (sendo que a melhor prova da utilidade é a história dos últimos anos), seria impensável extinguir “a ideia de um” TCIC por essas mesmas razões”.
Já quanto aos juízes a questão é diferente. Principalmente, no que toca a saber “se este TCIC poderia alguma vez ter existido só com um juiz (durante anos a fio), que não poderia por razões óbvias. Mesmo só com dois juízes não se deverá manter, por algumas dessas razões (aleatoriedade do juiz a quem é distribuído o processo, transparência da Justiça, imagem pública de imparcialidade – o que é diferente de verdadeira imparcialidade que não ponho em causa com esta afirmação – e criação de uma verdadeira jurisprudência – que só é possível com pluralidade de magistrados a conhecer do mesmo tipo de questões)”.
"O TCIC, que por razões de gestão processual, que por razões dogmáticas (constitucionais e processuais penais) nunca deveria ter tido menos do que três juízes em permanência.”
Por tudo isso, o TCIC “quer por razões de gestão processual, quer por razões dogmáticas (constitucionais e processuais penais) nunca deveria ter tido menos do que três juízes em permanência”.
Já Rui Patrício, advogado de Hélder Bataglia, arguido da Operação Marquês e do Benfica no caso e-Toupeira, não responde à questão em concreto sobre o Tribunal Central. “Não é uma questão que me preocupe especialmente nem que mobilize de forma particular os meus pensamentos sobre a Justiça”.
“Sinceramente, e digo-o não para “fugir” à questão, mas digo-o antes com marcada intencionalidade: interessa-me o que se passa nos processos, mas onde eles correm, sinceramente, interessa-me bem menos. Ou seja, e passe o plebeísmo: estou preocupado com questões de processo penal essenciais ou bem mais importantes (legais e “práticas”, e muitas), já quanto à manutenção ou à extinção de um Tribunal em concreto, francamente, “estou-me nas tintas”. E tenho pena que estejamos, uma vez mais, a discutir (e acaloradamente) o acessório e a “deixar andar” o essencial”, referiu.
"Estou preocupado com questões de processo penal essenciais ou bem mais importantes, já quanto à manutenção ou à extinção de um Tribunal em concreto, francamente, «estou-me nas tintas».”
Quanto aos poucos juízes deste tribunal o jurista responde que “quem pode, e tem que, responder a essa pergunta é o legislador e, com especial intensidade, o Conselho Superior de Magistratura, e é aí que temos que ir buscar, e exigir, a resposta”.
Mediatismo nocivo
Francisco Proença de Carvalho, advogado de Ricardo Salgado, do caso das Secretas e do caso CTT, entende que “é perigoso para o regular e equilibrado funcionamento de um Estado de Direito a existência de “super” poderes ou juízes que assumam um protagonismo excessivo na opinião pública, acentuando um culto da personalidade e potenciando uma ação penal mais “justiceira” e, consequentemente, menos “justa”.
Como tem sido evidente, a existência deste “Ticão” fomenta muito isso, prejudicado a serenidade e objetividade com que deve ser exercida a Justiça”. O jurista fala na “perversidade deste modelo”, que ficou ainda mais à vista de todos com a recente mediatização do sorteio da Operação Marquês “que mais parecia digno do mundo do futebol (inclusive com claques de um lado e de outro) do que de um sistema de justiça democrático de “primeiro mundo”.
"É perigoso para o regular e equilibrado funcionamento de um Estado de Direito a existência de «super» poderes ou juízes que assumam um protagonismo excessivo na opinião pública, acentuando um culto de personalidade.”
Para o advogado não faz sentido o TCIC existir, pelo que os processos deveriam seguir o modelo geral de distribuição. Caso exista, “quanto mais juízes tiver, melhor. Não tanto pela complexidade dos processos, mas sim para diluir os riscos que a concentração de poder provoca”.
Por sua vez Paulo de Sá e Cunha, advogado em processos como a Operação Marquês, Operação Furacão e Operação Labirinto, mais conhecido como “Vistos Gold”, não vê “justificação plausível” para que exista um tribunal central, “ao qual seja conferida uma competência (super) especializada, seja em razão da matéria seja em razão da plurilocalização do crime (em territórios de diferentes distritos judiciais). A única especialização que verdadeiramente importa é em matéria penal e processual penal. E, nesse domínio, os tribunais de instrução criminal são já tribunais de competência especializada”, defende.
Para o advogado a função do juiz de instrução “não é investigar”, mas sim de “garantir o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, assegurando o justo equilíbrio da sua compatibilização com as exigências reclamadas pela eficácia da investigação criminal que necessariamente os vai atingir.
Para o jurista o que é “verdadeiramente intolerável” era a situação que se verificava antes de 2015, “em que apenas um juiz integrava o quadro do TCIC”. Uma situação que, a seu ver, poderia permitir a manipulação dos critérios de “atribuição ou de subtração de competência a este tribunal”.
"O que me parecia verdadeiramente intolerável era a situação que se verificava antes de 2014, em que apenas um juiz integrava o quadro do TCIC. Esta situação, em tese, poderia permitir a manipulação dos critérios de atribuição ou de subtração de competência a este tribunal.”
“Naturalmente que é preferível, por tudo o que apontei, ter dois juízes em lugar de um só. Mas a verdade é que – e a realidade tem vindo a demonstrá-lo – a concentração, em pessoas determinadas, de processos como os que têm vindo a ser decididos no TCIC, submete os juízes que ali exercem funções a um mediatismo que me parece nocivo”, continua.
Para o jurista o papel do juiz de instrução “não pode ser – nem parecer ser – o de um juiz inquisidor, que apoia e dá cobertura ao Ministério Público durante a investigação e na subsequente instrução, se a ela houver lugar. Há, pelo contrário, que acentuar a sua verdadeira matriz de “juiz das liberdades”, que, sem descurar as necessidades cautelares do processo e de prevenção penal”, remata.
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