Sanur, o mistério
Mas há um mistério em Sanur. E está relacionado com as piscinas dos resorts. Aqui, onde o golfinho cospe água e as aulas de hidroginástica se dão ao som do último hit, há uma magia a acontecer.
“You have to accept Jesus in your heart. Your name is Maria like the mother of Jesus. You have to love Jesus!!”
Não sei se alguma vez apanharam um taxista balinês evangélico mas garanto-vos que 15 minutos dá para cobrir grande parte do Novo Testamento e ainda aprender que o profeta Maomé era doido e foi envenenado por uma mulher.
A religião é o tema mais delicado do mundo. Não que Deus seja uma entidade vulnerável mas não há nada mais sensível que um homem religioso. Em países especialmente espirituais, mais vale ser de outra religião que não ter religião e é por isso que, quando o taxista me começou a perguntar sobre Jesus, eu achei que a pergunta era fruto de uma curiosidade saudável de alguém que não teve catecismo. Obviamente que rematei com o respeitável, “mas todas as religiões são filhas de Deus”, só para levar com a cruz na tola e com o sermão colado a cuspo, da terceira igreja pentecostal cá do sítio. Por isso já sabem, antes de responderem qual é a vossa religião, tentem perceber qual é a resposta certa, isto se quiserem chegar a Sanur.
Ah, Sanur! Como é que eu vos explico este sítio? Então, as pessoas que querem boa praia saem de Bali, a malta jovem que de praia só quer o drink do sunset vai para Canggu ou Seminyak e as pessoas que nasceram algures no período entre-guerras vêm para Sanur. Sanur foi a primeira estância balnear de Bali, quiçá da Indonésia inteira.
Isto é uma mistura entre o Dirty Dancing (sem o Patrick Swaze, a Baby e o roça-roça) e o Cocoon (sem os aliens). Ou seja, o paraíso geriátrico, o sonho do reformado holandês (que colonizaram a Indonésia por 300 anos) e o único sítio em que as mulheres podem usar a piscina todos os dias do mês.
O dia começa com um nascer do sol triunfante, em pleno mar (para ver o pôr-do-sol dentro de água há que ir para a costa oeste), as hordes de avós dirigem-se à praia para a sessão de Yoga sentado. As praias têm o formato das suas primas da linha de Cascais, com a diferença de que têm vista para o vulcão, não têm rebentação (a não ser na longínqua barreira de corais) e a água está à temperatura do divino. Foi para aqui que vieram todos os “bifes” que não assentaram no Algarve mas já lá estiveram antes de mim. A referência portuguesa não é o Ronaldo, é a Praia da Rocha.
A vida é pacata, as peles estão penduradas e, uma trintona como eu sente-se uma adolescente no meio de tanta gravidade. Já fiz “novas” amigas: a Ruth, cinco netos e uma filha que, depois de abandonada pelo marido com tamanha prole, conseguiu voltar a erguer-se através de um negócio de queijos (já vai em trinta variedades), a Silvana, uma avó loiraça casada com um bombeiro reformado, que ainda faz parte do júri da Miss Albânia, sem esquecer a Greta, uma avó toda tatuada que passa o dia dentro da piscina a misturar cerveja com a artrite. É com elas que jantamos todas as noites, no mercadinho noturno. Todas nos felicitam pela nossa reforma antecipada e todas nos convencem a continuar sem filhos. Depois do jantar, os bares enchem-se de noites dançantes, com o típico cantor romântico e aulas de salsa, merengue e Cha Cha Cha, é um fartote.
Mas há um mistério em Sanur. E está relacionado com as piscinas dos resorts. Aqui, onde o golfinho cospe água e as aulas de hidroginástica se dão ao som do último hit, há uma magia qualquer a acontecer. Qual Cocoon!, os velhos ganham uma energia há séculos perdida, recuperam a virilidade, riem que nem crianças, ficam horas a chapinhar. Eu própria me sinto estupenda sempre que aqui me venho banhar. Há qualquer coisa nestas águas bentas, um tónico a engarrafar. Até que finalmente percebi: o milagre da transformação desta água em vinho não foi a graça de Jesus… foi medicamentos de graça.
Pois esta “auguinha”, renovada sei lá com que tardia frequência, é um cocktail de gotinhas de idosa incontinência. Multipliquem isso pela dose cavalar de medicamentos que cada um toma, do antidepressivo ao Viagra, da insulina ao Benuron, e chegamos à conclusão que andamos todos drogados. Não admira que isto “dê saúde”, é uma farmácia aquática.
Depois de uma semana, achámos que era altura de fazer o desmame e decidimos apanhar táxi para outra banda. Assim que me sento para uma viagem de uma horita, só peço duas coisas: ar condicionado e rádio desligado (a música tradicional é de uma cacofonia dissonante que roça a tortura se passar dos cinco minutos). O taxista olha para nós e reconhece-me num instante: “It’s you, Maria, like the mother of Jesus”. Oh não, vai começar a procissão. Respiro fundo, fecho os olhos e sinto o Xanax com cloro a começar a bater. “Venha ela.”
“Crónicas asiáticas” são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. O ECO publica as melhores histórias da viagem à Ásia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui. Leia ou releia também as “Crónicas africanas” e as “Crónicas indianas”.
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