A austeridade, quando acaba, não é para todos
Clareza é explicar que governar é fazer escolhas. E o Governo fê-las. Ao aumentar o salário mínimo dos trabalhadores do Estado ou a reduzir o IVA na restauração.
Ligo a televisão. Num noticiário, António Costa, o primeiro-ministro, está a ser entrevistado. E ouço-o a dizer “Eu acho é que ninguém tem direito, nem a procurar criar ilusões aos professores, mentir aos professores sobre o que é que está em causa, nem enganar os portugueses. Todos temos o dever de ser claros”.
Engraçado. É que uma pessoa vai ao Google – essa moderna ferramenta que, para aparente desconhecimento da nossa classe política (a alternativa é falta de vergonha), nos devolve memórias em 0,3 segundos –, pesquisa “António Costa austeridade” e encontra mais de milhão e meio de resultados. Entre eles, o “Virar a página da austeridade, relançar a economia”, uma carta que António Costa dirigiu aos portugueses.
Nesse 27 de Agosto de 2015 (a umas semanas de eleições legislativas, portanto), escrevendo em Fontanelas, António Costa defendia que “o aumento do rendimento tem de resultar de um esforço conjunto com o Estado. Não só na reposição dos salários, pensões e mínimos sociais, acabando com os cortes, mas também inovando”. É possível que António Costa não se tenha apercebido, mas estas suas palavras criaram ilusões. Principalmente, quando nessa carta até se garantia existir um cenário macroeconómico a dar cobertura aos compromissos assumidos. Muitos portugueses, professores incluídos, não perceberam que a página da austeridade ia ser virada, mas que ia ter uns quantos parágrafos iguais aos do texto anterior. António Costa devia ter sido mais claro.
Já o documento “Uma Década Para Portugal”, o tal relatório produzido por 12 economistas coordenados por Mário Centeno, era um bocadinho mais transparente. O capítulo da política salarial e carreiras afirmava “A partir de 2018, inicia-se o processo de descongelamento das carreiras e de limitação das perdas reais de remuneração que deverão ser avaliadas no cruzamento dos programas orçamentais com as respetivas carreiras e ter e conta o impacto transversal de algumas carreiras em vários programas orçamentais”. Um bocadinho mais transparente, mas ainda longe da clareza. Tem aquele toque de eufemismo de que os portugueses tanto gostam. Além de que bem sabemos que os programas eleitorais são bibliografia que muitos votantes não lêem.
Clareza é explicar que governar é fazer escolhas. E o Governo fê-las. Conforme escrevi aquando da aprovação do diploma que contabilizou dois anos, nove meses e dezoito dias da carreira dos professores, sou muito sensível ao argumento “não existe dinheiro”.
Um país que tem uma dívida pública superior a 120% do PIB – o que o coloca no pódio dos devedores da União Europeia – bem pode invocar tal argumento. Um país que tem um défice orçamental de 0,5% do PIB – que quando ajustado do ciclo económico é de 1,1% – bem pode dizer que não tem dinheiro.
Só que houve dinheiro para aumentar o salário mínimo nos empregos públicos. Ou para reduzir o IVA da restauração. (E nem vou pela via demagógica de mencionar os montantes que houve para os bancos.) São escolhas. Escolhas legítimas, mas que impossibilitam que se recorra à justificação de não haver dinheiro. Essa era uma razão que se poderia alegar caso a opção tivesse sido fazer a consolidação orçamental a um ritmo maior, procurando chegar mais depressa ao excedente, para poder começar a reduzir o rácio da dívida pública também pela diminuição do numerador. Assim não.
Aliás, a 15 de Dezembro de 2017, aparentemente, a contagem integral do tempo para efeitos de progressão na carreira e da correspondente valorização remuneratória não era nenhum problema. Pelo menos, a bancada socialista votou favoravelmente, ao lado de BE, PCP, Verdes e PAN, a que viria a ser a primeira Resolução da Assembleia da República de 2018, onde se sugeria ao Governo que dialogasse com os sindicatos no sentido daquela reposição. Então o PS concordava em recomendar algo que comprometia a estabilidade orçamental?! Ou em Dezembro de 2017 as finanças públicas estavam mais sãs que agora?
E também houve dinheiro para contabilizar a totalidade do tempo congelado nas carreiras gerais. Pelo que o argumento, plasmado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 36/2019, de que se está a “aprofundar um quadro de equidade com as carreiras gerais da Administração Pública” é ainda pior. Dois anos, nove meses e dezoito dias é cerca de 30% do tempo que a carreira dos professores esteve congelada. Chamar igualdade a reconhecer esse tempo porque ele é 70% da duração típica do escalão na docência e os 100% reconhecidos nas carreiras gerais representam os tais 70% de um módulo de progressão é chamar-nos estúpidos.
O Governo quer discutir as carreiras na Administração Pública?! Acho óptimo. Já aqui defendi a necessidade de se proceder a uma reforma da Administração Pública e não é de agora que alerto para os problemas da gestão de recursos humanos na função pública. Portanto, acho óptimo um debate sobre o emprego público, embora não vá perceber muito bem porque é que se andou, nas últimas semanas, a rever e a criar mais carreiras especiais (de fiscalização, da Guarda Prisional, do pessoal da Polícia Judiciária, de conservador de registos e de oficial de registos, de enfermagem, da Autoridade Tributária e Aduaneira e de inspecções sectoriais).
Ou talvez perceba. É que, na verdade, não se quer reflectir sobre a estrutura e o funcionamento da Administração Pública, carreira docente incluída. Apenas se deseja cavalgar a percepção relativamente ampla na sociedade portuguesa de que os professores são uma classe muito bem paga, cheia de vantagens e de regalias. Se assim for, é bastante estranho que nem 1,5% dos alunos do ensino superior queira seguir a profissão e que quem tem tais planos nem sejam os melhores alunos, o que coloca em risco a qualidade futura do nosso sistema educativo. Mas isso não interessa nada quando há eleições para ganhar e as vitórias se fazem de imediatismo e de sensações, não de pensamento a longo prazo baseado em factos.
E, por isso, António Costa ameaçou que se demitia caso as alterações ao decreto que definiu os termos da reposição do tempo de serviço dos professores, aprovadas na Comissão de Educação e Ciência, o fossem também na generalidade. Apresentou-se como o paladino da responsabilidade orçamental, numa jogada política que só é genial pela inabilidade de PSD e CDS.
Nas propostas iniciais de PSD e CDS, a reposição do tempo além dos já contemplados dois anos, nove meses e dezoito dias far-se-ia a partir de 2020, sujeitando-se à capacidade financeira do país. Pelo contrário, PCP, Verdes e BE apresentavam já um calendário definido que terminava em 2025. Da votação na especialidade, onde o Partido Socialista rejeitou ambas as posições, saiu um texto final que ficou a meio: não estabeleceu fases de reposição, não continha referências às finanças públicas, apenas remetia para negociação. Nada que justificasse dramatismo.
O PSD e o CDS podiam ter chamado o PS a jogo, lembrando-lhe tomadas de posição passadas e colocando nele o ónus de escolher entre os partidos com quem tem um entendimento parlamentar e a política orçamental de Mário Centeno – ou ver-se forçado a recusar a ideia de que é possível devolver rendimentos sem comprometer a estabilidade orçamental. Se é para jogar xadrez político, saiba-se fazer xeque-mate.
Mas não. Assustaram-se com a reacção desproporcional do primeiro-ministro, deixaram que lhes colassem o rótulo de despesismo, andaram a ver para onde caía a opinião pública, recuaram, deram uma imagem de desnorte e acabaram aliados ao PS na votação da passada Sexta-feira.
A comunicação social falou em fim da crise política. Só que não. A crise política não terminou a 10 de Maio. E também não tinha começado uma semana antes. A crise política não é uma ameaça de demissão do Governo.
A crise política é estrutural e dura há muito. Consiste em governos e oposições que se demitem de pensar o país a longo prazo, de ter um projecto para ele, de traçar um rumo que sigam sem teimosia, mas com coerência; que decidem em função do soundbyte e do que parecer granjear mais votos no imediato. E faz-se de uma população que se rende a essa cultura do curto prazo, cujo sentido crítico e nível de exigência não vai além do escândalo nas redes sociais. Ninguém tem o direito a criar ilusões?! Não as criem. Vendam-nas, que nós compramos.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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