Em entrevista ao ECO, António Saraiva defende que não deveria ser fixado qualquer referencial para a subida dos salários, já que a economia tem regras próprias e "não se move por decreto".
Na primeira reunião com os parceiros sociais sobre o acordo sobre competitividade e rendimentos, o Executivo de António Costa deu a conhecer os valores que, no seu entender, deveriam guiar os aumentos salariais fixados em sede de negociação coletiva, nos próximos anos. Em entrevista ao ECO, o presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) contraria, contudo, essa disposição, sublinhando que fixar um referencial é “absurdo”, já que a economia tem regras próprias.
António Saraiva defende, portanto, que cada setor deve ter liberdade para definir as valorizações remuneratórias que entender. E critica o Governo por exigir dos empregadores privados um esforço que ele mesmo, enquanto empregador, não está disposto a praticar. “Sejamos intelectualmente honestos, tenhamos práticas que sejam claras e uniformes e não tenhamos dois pesos e duas medidas”, atira.
Em conversa com o ECO, o patrão dos patrões deixa ainda pistas sobre como a valorização dos jovens, a formação e a conciliação da vida familiar, profissional e pessoal poderão ser vertidas neste acordo. Mas deixa claro: “Não podemos ter a ambição de colocar tudo neste acordo”.
As reuniões para um acordo sobre a globalidade dos rendimentos já começaram. Como é que esse acordo deveria funcionar na prática?
Deveria funcionar, desde logo, como um instrumento para que em diálogo tripartido e virtuoso, como eu gosto de lhe chamar, pudéssemos melhorar os critérios de competitividade da economia portuguesa e através dessa melhoria pudéssemos, como o Governo pretende e nós não rejeitamos, aumentar os salários e ter uma política de melhoria de rendimentos como o Governo anunciou que quer desenvolver.
Inicialmente o Governo tinha falado em estabelecer em sede de Concertação Social um pacto para rendimentos e a CIP impôs que fosse um pacto de competitividade e rendimentos, porque sem melhoria de competitividade não há possibilidade de sustentadamente melhorar rendimentos e a razão de ser do acordo é essa: é que demos sustentabilidade à economia através da melhoria dos seus fatores de sustentabilidade para que ela possa responder favoravelmente à melhoria dos rendimentos.
Mas entende que deveria ser fixado um referencial para essa melhoria dos rendimentos ou acha que não é necessário?
Não é o facto de ser ou não necessário. É o facto de ser ou não possível, porque a economia tem regras próprias. A economia não se move por decreto ou por mera vontade dos seus agentes. Querermos que ela funcione por decreto, definindo referenciais, definindo comportamentos é, digamos, absurdo, porque ela tem de facto regras próprias.
Por isso, tendo em conta que a economia portuguesa é composta por vários setores de atividade e cada um desses setores tem realidades concretas, especificidades próprias, é à contratação coletiva e à mesa negocial dessa contratação coletiva que esses referenciais ou esses valores têm de ser encontrados, porque o que é verdade para a indústria automóvel não é verdade para o têxtil, que não é verdade para o calçado, e assim sucessivamente. [É preciso] dar à contratação coletiva a liberdade que ela deve ter para incorporar incrementos quer de condições sociais, quer de política salarial. Cada setor, à mesa negocial respetiva, deve saber encontrar esses incrementos sem ter referências que, às vezes, até são absurdas em função da realidade do setor, quer para baixo quer para cima. Devemos dar à contratação coletiva a virtualidade que ela tem de diálogo construtivo entre os representantes dos trabalhadores e os representantes dos empregadores.
Cada setor deve ter a liberdade ele próprio de encontrar a progressão e o valor, não com um referencial encontrado de forma abstrata e eventualmente sem racionalidade económica.
Veria, portanto, com melhores olhos a fixação de um referencial por setor ao invés de um referencial para a globalidade dos rendimentos?
Não. O que digo é que cada setor deve ter a liberdade ele próprio de encontrar a progressão e o valor, não com um referencial encontrado de forma abstrata e eventualmente sem racionalidade económica. Deixar a liberdade, o grau de ação a cada setor de atividade no seu contrato coletivo. É aí que se deve encontrar, setor a setor, a realidade e incorporar a especificidade de cada setor nessa evolução, quer de condições de trabalho, quer de política salarial.
E isso é a virtude da contratação coletiva, que ao contrário do que alguns afirmam, tem vindo a melhorar, nestes últimos quatro anos. É dar a esse instrumento de contratação coletiva a margem que ele tem e que se está a sentir que está a melhorar e a abranger cada vez um maior número de trabalhadores.
O Governo, na última reunião, distribuiu um documento, onde estava indicada uma variação salarial para o próximo ano de 2,7%. Qual é a posição da CIP sobre esse valor?
A posição da CIP é aquela que tem sido e que é a da coerência dos indicadores. Nós temos que assentar em indicadores objetivos: aumentos de produtividade, inflação, crescimento económico. E em função desses indicadores termos uma prática de melhoria das condições das empresas e dos seus trabalhadores. Esses são referenciais objetivos, que o próprio Governo utiliza enquanto empregador.
O Estado empregador aumenta os seus funcionários de acordo com esses referenciais e a questão que está é saber se aumenta de acordo com a inflação de 2019 ou se a esperada de 2020. Então e depois obriga a que os parceiros sociais privados tenham outras exigências, outras fasquias de obtenção desta ou daquela dimensão? Enfim, sejamos intelectualmente honestos, tenhamos práticas que sejam claras e uniformes e não tenhamos dois pesos e duas medidas, porque nos dá jeito decretar, porque somos Governo, aos privados, e não utilizamos as mesmas práticas quando somos Governo empregador e temos práticas diferentes.
Os referenciais devem assentar em critérios objetivos e são esses que nós temos apresentado e foram esses que nós apresentamos nas medidas que, entretanto, enviamos ao Governo para iniciar este percurso do contrato de competitividade e rendimentos.
Uma das prioridades do Governo para este pacto de rendimentos é valorizar os trabalhadores qualificados, sobretudo os jovens qualificados. Como é que essa valorização deveria ser posta em prática, neste âmbito?
Não perdendo de vista este objetivo que me parece meritório e já com o Governo anterior iniciamos essa discussão, que não é fácil. É desejável, mas não é fácil. É desejável porque nós temos de valorizar aqueles que, querendo ter melhores competências, tiraram cursos superiores. Não podemos deixar de premiar esse esforço que foi feito na melhoria das suas competências, até porque as empresas, e logo o país, aproveitam dessa valorização. Mas temos que ter metodologia para atingir esse objetivo.
Imagine que um recém-licenciado em Biologia Marítima não arranja emprego e vai para caixa de supermercado. Como é que eu vou diferenciar esse trabalhador licenciado do outro que não é, mas faz rigorosamente a mesma função? Coisa diferente é se a empresa vai buscar um jovem licenciado para o empregar para a função onde ele se especializou com essa licenciatura. Se a empresa empregar com o ganho, com vantagem, se retirar valor da licenciatura porque o posto de trabalho que é ocupado exige conhecimentos específicos da licenciatura tirada, aí, muito bem, a empresa tem de premiar através do salário ou de outros estímulos. Todos ganham. Motiva o jovem licenciado e a empresa, porque tira daí mais valor, e mais uma vez é um ecossistema em que todos ganhos, porque quanto melhores empresas, melhor o país. Por isso, aí sim, desde que o trabalhador seja captado para um posto em que há ganho de causa da sua especialização, aí tem de se encontrar forma e encontrá-la-emos seguramente para otimizar o salário e diferenciar.
Este acordo tem, então, de encontrar formas de facilitar que os jovens cheguem a esses postos onde usam efetivamente as suas qualificações? Como é que se pode fazer isso?
Há dimensões e dimensões e vários momentos de aplicação. Apesar de eu subscrever a ambição, temos de ter ambição q.b.. Não podemos ter a ambição de colocar tudo neste acordo. As coisas têm de ser evolutivas e temos de colocar neste acordo aquilo que lá couber, priorizando aquilo que lá deve estar nesta fase e neste momento. E depois ir fatiando em novos acordos ou, pelo menos, em novos momentos.
Não queiramos, em 2020, absorver todas estas realidades e encontrar-lhes soluções. Provavelmente encontraremos [essas soluções] em 2021, 2022. Há prioridades, não queiramos tudo num único momento, não percamos de vista os objetivos que temos de atingir, mas temos de os fatiar e os priorizar.
A propósito do que cabe ou não neste acordo. O acordo de António Guterres incluía também matérias como a reforma antecipada. Acha que este acordo teria espaço para pensar em questões mais amplas além da competitividade das empresas?
Não está em cima da mesa. Está a conciliação do trabalho e da família, a natalidade, o envelhecimento e o efeito que tem na Segurança Social. Lá estão, são as tais prioridades. Não cabendo num acordo todas as matérias que teremos de continuar a melhorar, há que definir prioridades. Também é prioritária a questão das alterações climáticas, a transição para a sociedade digital e o combate às desigualdades sociais em todas as suas dimensões.
Sobre a conciliação da vida familiar, profissional e pessoal. Os funcionários públicos têm atualmente uma dispensa de três horas para acompanhar os filhos no primeiro dia de aulas. Na altura que este diploma foi aprovado, o Governo atirou para a Concertação Social a discussão sobre a possibilidade de um alargamento ao privado. Acha que este acordo pode ser também o momento para isso?
Não nego que possa ser discutida, mas essa é mais uma matéria que deve parquear na contratação coletiva e nos contratos coletivos, tal como hoje já existe. Se formos visitar o clausulado dos contratos coletivos em Portugal, facilmente percebemos que uns têm mais dias de férias, outros têm mais dias para questões pessoais, outros têm mais isto e aquilo. É nessa dimensão da contratação coletiva e dos seus contratos que devem parquear essas medidas, porque o país tem um enorme combate pela frente que é a melhoria da competitividade e o aumento da produtividade. E o aumento da produtividade não passa apenas por horas trabalhadas. Passa pela eficiência do Estado: o tempo que perdemos numa repartição das Finanças, o tempo que perdemos numa fila de espera nos hospitais. Enfim, a ineficiência da máquina do Estado e isso leva à produtividade. Há várias dimensões, perdas de carga horária que têm de ser avaliadas e compensadas desta ou daquela forma.
A Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) defendeu um desconto em 10% da TSU para os empregadores que aumentem salários acima da inflação. O que acha desta reivindicação?
Não comentamos as medidas de outras confederações, não seria até ético fazê-lo. Se a CCP o referiu é porque, na análise que terá feito sobre a matéria, foi essa a sua prioridade. Nós elencamos outras prioridades. E é do conjunto das prioridades que cada uma das entidades patronais leva à Concertação Social que resultará um caderno final das várias soluções propostas.
Já conhecemos as prioridades da CIP para o Orçamento para 2020. Esta descida da TSU não estará no caderno de encargos nos próximos anos?
Se disser que, com o aumento de 35 euros do salário mínimo que o Governo decretou para janeiro de 2020, o Estado vai arrecadar um valor superior a 150 milhões de euros. Se o Governo quiser, como pelos vistos quer, ter melhorias das questões sociais, tem disponíveis um conjunto de variáveis onde pode combater a pobreza e onde pode regular melhor as desigualdades de algumas camadas mais desfavorecidas. A TSU pode ser uma delas. Vamos ver o que é que o futuro e a sustentabilidade da Segurança Social nos vão aconselhando.
Mas considera que ainda há margem para descer a TSU?
Considero. Se pensarmos que, nas camadas mais desfavorecidas, os salários mais baixos, ao invés de se descontar 23,75%, vá a benefício do trabalhador alguma coisa ou que a empresa descontando menos possa remunerar melhor os trabalhadores. Há aqui uma morfologia, um conjunto de variáveis que podem em geometria variável podem beneficiar os salários mais baixos, tentando melhorá-los numa prática de política social que também defendemos.
Sendo a qualificação uma das prioridades para o desenvolvimento económico de Portugal, temos de canalizar verbas para aí e reforçar outras.
Uma das prioridades que tem sido apontada neste âmbito do pacto sobre rendimentos é a formação. Como é que essa área deve ser traduzida no acordo?
Na transição para a sociedade digital, temos quer profissões que vão desaparecer, quer outras que vão ser feitas de forma diferente, quer efeitos regionais diferentes. Temos de qualificar e requalificar os nossos recursos humanos quer em determinadas profissões, quer por região, porque aquilo que é necessário no Algarve é diferente da necessidade do Norte ou do Centro.
Sendo a qualificação uma das prioridades para o desenvolvimento económico de Portugal, temos de canalizar verbas para aí e reforçar outras. As associações têm excelentes centros de formação profissional protocolados com o Instituto do Emprego e da Formação Profissional (IEFP). Temos que reforçar as verbas desses centros. Temos que canalizar verbas do Fundo Social Europeu, privilegiando mais a formação do que a educação, como tem sido feito até agora.
Por isso, fazer uma aposta muito firme na qualificação profissional com reforço de verbas privadas, através das associações empresariais, públicas, através de fundos comunitários ou no Orçamento do Estado e provavelmente, em algumas funções, até os próprios trabalhadores contribuindo com o seu tempo. O investimento em formação deve ser feito por três entidades: os trabalhadores, pelas melhores competências que passam a ter para enfrentar os novos desafios das novas ou requalificadas profissões; as empresas, que com trabalhadores mais qualificados ficam mais competitivas; e o país, que com melhores empresas mais competitivas é ele próprio mais competitivo na globalização em que hoje vivemos. É hoje um esforço acrescido de canalização e reforço de verbas para a formação profissional.
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Definir um referencial para subir salários “é absurdo”, diz António Saraiva
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