Dois tribunais e dois bancos centrais: quem agiu ultra vires?

  • Luís Fábrica e Sílvia Bessa Venda
  • 1 Julho 2020

A delimitação entre os domínios atribuídos à UE e os domínios reservados aos EM não é rígida, antes segue, em geral, os contornos sinuosos e flexíveis do princípio da proporcionalidade.

Antes de regressar à Universidade, Andreas Voßkuhle, presidente cessante da segunda secção do Tribunal Constitucional Alemão (TCA), ainda queria dizer duas ou três coisas sobre os limites aos poderes dos juízes – afinal, o tema da sua primeira obra, com o título premonitório de “Tutela contra o Juiz”.

Os juízes em que estava a pensar não eram os seus colegas de Karlsruhe. Eram outros, no Luxemburgo, com os quais travava desde há anos um diálogo de surdos. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) invocava o primado do Direito da UE sobre a atuação das instituições dos Estados membros (EM), incluindo os tribunais, assim como a competência exclusiva dos seus juízes para interpretar os Tratados e apreciar à sua luz os atos das instituições europeias. O TCA recordava que as competências da UE não se apoiam em decisões próprias, antes se encontram delimitadas pelo âmbito das atribuições conferidas pelos tratados internacionais celebrados por EM, no exercício de poderes soberanos.

Mas a delimitação entre os domínios atribuídos à UE e os domínios reservados aos EM não é rígida, antes segue, em geral, os contornos sinuosos e flexíveis do princípio da proporcionalidade: a atuação da UE não deve exceder o necessário para atingir os objetivos dos Tratados. E se o TCA, no quadro de uma relação de cooperação, não tem contestado os resultados da leitura que o TJUE faz deste princípio, também sempre deixou claro que não renuncia ao controle sobre esses resultados, podendo declarar, em casos extremos, o carácter ultra vires de uma atuação das instituições europeias.

O caso extremo surgiu agora. Perante uma ação proposta por um grupo de cidadãos sustentando que o programa de aquisição de dívida pública do BCE constituía uma intervenção ultra vires na competência do Estado alemão, o TCA procedeu a um reenvio prejudicial. A resposta do TJUE foi que tal programa, lido à luz do princípio da proporcionalidade, se compreendia na competência atribuída pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia.

Geralmente, era assim que as coisas acabavam. Mas não no dia 5 de maio. Na derradeira sessão sob a presidência de Voßkuhle, o TCA proclamou, sem rodeios, que o Acórdão do TJUE era incompreensível, por realizar um pretenso juízo de proporcionalidade sem atentar nas consequências do programa do BCE, que entravam de modo aparentemente excessivo nos domínios económicos, reservados aos EM. Tongue in cheek, vem dizer que, desta vez, quem violou o Tratado foi o TJUE e que, por isso, o Acórdão deste é, também ele, ultra vires e não vinculativo. Ainda segundo o TCA, passa agora por este a aferição do programa do BCE à luz do princípio da proporcionalidade, determinando ao Governo e ao Parlamento alemães que promovam, junto do BCE, a realização, no prazo de três meses, de uma análise aprofundada do programa de aquisição de dívida, de modo a infirmar a aparente natureza ultra vires desse programa. Caso a suspeita se confirme, o banco central alemão terá de parar a compra de dívida pública, pois nenhuma instituição alemã pode participar em atuações ultra vires.

A reação da UE foi a previsível: o Tribunal de Karlsruhe terá agido… ultra vires.

O futuro dirá se a CE avança para uma ação por incumprimento ou se a resolução do dilema passará por uma resposta indireta do BCE, que permita à Alemanha considerar que (nas palavras do TCA) a conformidade com os Tratados se encontra restabelecida.

  • Luís Fábrica
  • Consultor da Abreu Advogados
  • Sílvia Bessa Venda
  • Associada da Abreu Advogados

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