Teletrabalho: que importância tem o contacto presencial?
O homo sapiens deve a sua sobrevivência e o seu êxito como espécie às suas aptidões sociais, e condená-lo ao isolamento tem comprovadamente efeitos pavorosos.
A grande maioria das experiências com o teletrabalho iniciadas antes da expansão provocada pela pandemia da Covid-19 foram na realidade soluções de “trabalho repartido”, ao manterem a obrigatoriedade de o trabalhador comparecer nas instalações da empresa com uma certa regularidade – por exemplo um ou dois dias por semana. Procuravam assim assegurar a comunicação necessária para manter o alinhamento entre os “trabalhadores remotos”, combater o risco de isolamento e alienação e manter uma suposta coesão cultural.
Parece fazer sentido manter esta prática: o homo sapiens deve a sua sobrevivência e o seu êxito como espécie às suas aptidões sociais, e condená-lo ao isolamento tem comprovadamente efeitos pavorosos; mas também haverá aqui alguma confusão, ou mesmo uma conceção totalitária da atividade profissional como detentora do monopólio da socialização. Pelo contrário, com o que sabemos hoje, não é possível afirmar categoricamente que o contacto presencial regular com os colegas é indispensável para assegurar a estabilidade emocional e a colaboração à distância, e existem mesmo múltiplos indícios de que aqueles objetivos podem ser alcançados por outros meios.
Em primeiro lugar, é fundamental distinguir, uma vez mais, entre os diferentes tipos de atividade: as atividades puramente “transacionais”, que podem ser executadas individualmente seguindo procedimentos estandardizados, são naturalmente aquelas em que a monotonia e repetição tendem a tornar-se mais penosas e desmotivadoras quando realizadas em condições de isolamento. Paradoxalmente, são aquelas que precisam de menos supervisão na perspetiva da tarefa em si mesma, mas que passam a exigir maior acompanhamento e atenção no plano relacional para combater aqueles riscos. Nestas, a limitação dos períodos de isolamento e o regresso à empresa a intervalos regulares parecem ser, de facto, uma prática prudente. Ironicamente, talvez o teletrabalho leve mesmo a que estes trabalhadores tenham finalmente mais apoio e atenção por parte das chefias do que quando trabalhavam todos os dias nas instalações da empresa…
Em alternativa, este tipo de funções pode ser ampliado e enriquecido para incorporar atividades mais interativas e mais “tácitas” (envolvendo a análise, discussão e resolução de problemas em grupo). Neste segundo tipo de atividades, o consenso convencional é de que apesar de a interatividade reduzir fortemente a perceção de isolamento, as equipas funcionam melhor quando os seus membros já se conhecem pessoalmente, ou tiveram uma oportunidade de interagir presencialmente no início. Existem no entanto indícios de que este contacto presencial prévio não é indispensável, patentes por exemplo na intensa colaboração que se gera entre totais desconhecidos em jogos MMORPG (massively multiplayer online role-playing games) como o War of Warcraft, o League of Legends, o Grepolis e outros, onde as alianças entre jogadores são essenciais para sobreviver, prosperar e vencer.
Tal como numa equipa presencial, a chave da colaboração é a confiança, e esta depende da previsibilidade dos comportamentos de cada indivíduo, que resulta da extrapolação dos seus comportamentos anteriores. Saliente-se que nestes jogos os indivíduos reais permanecem desconhecidos uns dos outros, pois jogam sob a capa de avatares; tudo o que têm é o testemunho de confiabilidade que recebem uns dos outros, e não é isso que impede estas alianças de elaborar estratégias altamente sofisticadas. Além disso, quem conhece estes mundos virtuais sabe que as alianças, tribos, clãs, etc. que se formam entre jogadores desenvolvem rapidamente uma forte cultura identitária, que consegue conciliar um núcleo de princípios comuns com uma enorme diversidade de estilos individuais de jogo.
A necessidade do contacto “em carne e osso” parece pois ter menos a ver com a confiança e a colaboração e mais com a estabilidade emocional. Como salientou Lynda Gratton da London Business School no seu livro The Shift: The Future of Work is Already Here, além do grupo de trabalho a que pertencemos, todos necessitamos de uma “comunidade regeneradora” composta pela família e pelos amigos chegados – isto é, fora do trabalho. Em consequência, é possível que as tensões criadas pelo ambiente artificial do trabalho à distância possam ser adequadamente compensadas por mais e melhor tempo de convívio em família – justamente algo que o teletrabalho pode favorecer, se as organizações souberem evitar os excessos do always on. Simultaneamente, as empresas veriam diluir-se o papel de referente identitário que ainda têm para tantos trabalhadores, o que me parece francamente saudável.
Admitindo porém que trabalhar sempre a partir de casa tem um efeito tão concentracionário – ou ainda mais – do que trabalhar sempre na empresa, vale a pena considerar uma terceira alternativa: os espaços de coworking “de proximidade”, onde os trabalhadores podem passar uma parte do seu horário de trabalho em contacto com trabalhadores… de outras empresas!
Esta solução permitiria às empresas desconcentrar as suas instalações para locais na proximidade da residência dos trabalhadores, reduzindo o tempo de deslocação (e a pegada carbónica), selecionando criteriosamente os locais onde pudesse sediar um pequeno grupo de trabalhadores. Estes não teriam de fazer parte da mesma equipa (salvo uma ou outra coincidência fortuita, as equipas manter-se-iam virtualizadas), mas recuperariam a possibilidade de conviver com colegas da mesma empresa e facilitar a comunicação horizontal. A solução mais racional seria provavelmente contratar o espaço necessário junto de operadores de coworking, o que poria os trabalhadores de uma dada empresa em contactar com os de outras empresas, transformando esses espaços em polos de uma estimulante troca de ideias, da qual resultaria certamente inovação para todas as partes.
Na “nova normalidade”, talvez o dia-a-dia de um trabalhador seja sair de casa de manhã e caminhar até um espaço de coworking situados no seu bairro, vir almoçar com a família e ficar a trabalhar em casa – umas vezes em atividade individual, outras vezes interagindo remotamente com a sua equipa; ou, noutros dias, inverter esta ordem; tudo isto sem deixar de visitar a espaços a sede da empresa, sempre que a necessidade o justificasse. Num tal “novo normal”, acredito que a qualidade de vida daria um passo de gigante.
*João Paulo Feijoo é consultor, docente e investigador.
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