O PCP foi vítima. Os culpados são outros

Governo, Parlamento, PR e DGS foram construindo estrada sinuosa para permitir que Festa do Avante se pudesse realizar. Tão sinuosa e cheia de ratoeiras que o próprio PCP acabaria por se estampar nela.

Por muitas voltas que se queiram dar, toda a polémica que se gerou sobre a Festa do Avante é desproporcionada e atira ao alvo errado.

É desproporcionada porque o evento do PCP é um, mais um, dos que já vão ocorrendo por todo o país dentro do tão desejado regresso à normalidade. Uma normalidade com regras diferentes, é certo. Mas muitas dessas regras estão no papel mais “para inglês ver” e para que alguns burocratas ocupem o tempo se sintam úteis do que para serem cumpridas – o exemplo mais hilariante é a regra que proíbe o consumo de bebidas alcoólicas em espaços de restauração após as 20h00 a não ser que seja a acompanhar refeições e que é contornado com duas azeitonas ou uma carcaça.

Foi assim que tivemos as praias frequentadas com muita normalidade, que os peregrinos voltaram a Fátima, que se realizaram jantares-comício partidários, que as feiras do livro abriram portas, que regressaram espectáculos em espaços fechados ou abertos.
Em alguns destes casos houve menos gente? Claro. Primeiro porque há uma retração natural da da vontade de ir e da procura e depois porque há casos em que o controlo é possível e a lotação limitada.

Se olharmos apenas ao cumprimento de regras sanitárias, não havia nenhuma razão para que a Festa do Avante fosse diferente. Teria que se adaptar às regras impostas pela circunstância e pelas autoridades com voz na matéria, reduzir a entrada de pessoas de acordo com o espaço e gerir o evento da melhor forma. E, no terreno, é isso que se está a passar (escrevo na manhã do domingo de encerramento do evento): muito menos gente por lá do que é habitual – o receio de contágio neste ou noutros locais levou certamente muitas pessoas a preferir ficar em casa – e o cumprimento genérico das regras.

Não queremos abrir a economia e regressar às nossas rotinas? Porque é que a festa anual dos comunistas haveria de ser diferente

A polémica num assunto que não devia tê-la nasceu logo no início, na forma como os legisladores foram tomando decisões e as foram comunicando. Impunha-se tomar decisões sobre os festivais de Verão e, sabendo que o PCP queria realizar a Festa do Avante, Governo, Parlamento e Presidente da República foram construindo uma estrada sinuosa para o permitir. Tão sinuosa e cheia de ratoeiras que o próprio PCP acabaria por se estampar nela.

Repare-se na nota que está no site da Presidência da República onde Marcelo Rebelo de Sousa justifica a promulgação do diploma que proíbe festivais de Verão mas permite a Festa do Avante (citação integral):

“O presente diploma, na versão final aprovada pela Assembleia da República, só proíbe, até trinta de setembro, o que os promotores qualificam como festivais e espetáculos de natureza análoga.

Quer isto dizer que, se uma entidade promotora definir como iniciativa política, religiosa, social o que poderia, de outra perspetiva, ser encarado como festival ou espetáculo de natureza análoga, deixa de se aplicar a proibição específica prevista no presente diploma.

Por outro lado, mesmo os assim qualificados festivais e espetáculos de natureza análoga podem realizar-se desde que haja lugares marcados e a lotação e o distanciamento físico sejam respeitados.

Atendendo a este quadro legal, ganham especial importância a garantia do princípio da igualdade entre cidadãos, a transparência das qualificações, sua aplicação e fiscalização e a clareza e o conhecimento atempado das regras sanitárias aplicáveis nos casos concretos.

Nestes exatos termos, o Presidente da República promulgou o diploma da Assembleia da República que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19 no âmbito cultural e artístico, procedendo à segunda alteração ao Decreto-lei n.º 10-I/2020, de 26 de março.”

Isto foi no dia 26 de Maio: festivais proibidos excepto os que forem considerados como “iniciativa política”. E estes têm que respeitar regras.

O tratamento de excepção dado ao PCP não é da responsabilidade do próprio partido. Os comunistas não estão no governo, não dispõem de maioria absoluta no Parlamento para aprovarem a legislação que bem entenderem nem têm em Belém um presidente próximo que a promulgue.

E esse “elefante na sala” estava bem presente na Assembleia da República quando o tema foi debatido e votado. Só Joacine Katar Moreira votou contra (não sabemos porquê) e o diploma, naquela formulação que Marcelo Rebelou de Sousa interpretou e promulgou, foi aprovado entre votos a favor e abstenções das restantes bancadas.

Que alguns partidos venham agora criticar a realização da Festa do Avante depois de se terem calado e oposto no momento e local certos é simples oportunismo político ao sabor da corrente.

Mas há mais, para além dos legisladores.

Mesmo perante uma lei sinuosa como esta, as autoridades de saúde tinham uma obrigação de transparência e bom senso que, de todo, não tiveram – nem neste caso nem noutros.

O normal e desejável é que, perante uma lei que faz depender a realização de eventos a um conjunto de regras, se divulgue o mais depressa possível que regras são essas. Depois, perante elas, os vários promotores decidem se avançam ou não.

É preciso conhecer as regras do jogo antes de preparar a equipa e entrar em campo. E essas regras devem ser conhecidas com tempo e iguais para todos.

Mas a Direcção-Geral de Saúde (DGS) prefere ir decidindo as regras caso a caso, em reuniões e conversas privadas.
Percebe-se a lógica do burocrata: o seu poder e importância são tanto maiores quanto mais amplitude de decisão tiverem para cada autorização concreta.

É o tique do porteiro de discoteca. O porteiro da discoteca onde as regras de entrada estão bem definidas, são claras e iguais para todos tem muito menos poder do que aquele que tem nas suas costas a placa do “Consumo obrigatório: 500 euros” que impõe a alguns clientes enquanto permite que outros entrem à borla.

É inenarrável que a DGS tenha enviado para o PCP o seu “parecer técnico” a sete dias do início do evento – o documento divulgado assinado por Graça Freitas tem a data de 30 de Agosto e a Festa do Avante começou no dia 6 de Setembro.

Pergunta: se as condições impostas pela DGS fossem de tal forma apertadas que não permitissem a realização da Festa do Avante nas condições que o PCP considera mínimas era a uma semana do arranque e com todos os compromissos já assumidos que o evento ia ser cancelado?

O que tivemos aqui é mais uma enorme trapalhada de criação de regimes de excepção na lei, de total falta de transparência em todo o processo e de entidades que deviam ter funções estritamente técnicas a usarem os seus processos burocráticos para servirem vontades políticas de ocasião – não surpreende porque a DGS se tem prestado a isso em toda a pandemia.

Mas nenhuma destas responsabilidades pode ser atribuída ao PCP que, neste caso, é muito mais vítima do que culpado.

Nos últimos dias ouve-se muita gente dizer que o PCP leu mal o sentimento geral e a realidade política. Muitos são os mesmos que há dois ou três meses, antes da polémica subir de tom, defendiam o direito dos comunistas à realização da sua festa. Eu também sou óptimo a acertar no Totobola à segunda-feira.

Muita gente defende também que os comunistas deviam ter sido os primeiros a renunciar à realização da Festa do Avante numa atitude de responsabilidade política. Não vejo porquê.

O julgamento sobre o assunto é técnico, sanitário e, supõe-se, ancorado na evidência científica disponível.

O PCP está a defender os seus legítimos interesses como eu defendo os meus, cada cidadão, entidade ou empresa defende os seus. Para impedir que interesses próprios e privados atropelem o interesse comum e possam pôr em causa os direitos de outros existe o Estado e as entidades reguladoras. É essencialmente para isso que elas servem.

Portanto, se os legisladores e a DGS consideram que a Festa do Avante, realizada desta forma, equilibra todos os interesses conflituantes em jogo não se exige que os organizadores sejam mais papistas que o Papa na defesa de um bem comum. E o PCP sempre disse que respeitaria as regras que viessem a ser definidas.

Nesta enorme embrulhada, o PCP acabou por ter o comportamento mais digno. Que isto tenha acontecido a um partido que defende um modelo de sociedade em que o Estado deve ser dono e senhor de todas as iniciativas, centralista, cheio de regras condicionadoras e controlador de tudo é só uma daquelas ironias da vida.

PS.: À margem deste processo. A clandestinidade do PCP acabou, e bem, com o 25 de Abril. No ano seguinte, o modelo que defendia para o país foi derrotado e essa derrota tem sido confirmada eleição após eleição. Já vai sendo tempo dos comunistas encararem as críticas que lhe são feitas como fazendo parte do jogo democrático e não como um ataque à existência do partido. Não há paciência para a vitimização e o tom da reacção que seu ouviu nestas semanas.

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