Prejuízo dos transportes: Má gestão ou mal comum?
Os sistemas de transportes públicos dificilmente dão lucro, mas precisam de investimento. O que têm as cidades a ganhar? E que alternativas existem para financiar os transportes?
Esta quarta-feira às 15:00 vai estar aberto o debate no Parlamento: o Bloco de Esquerda quer falar sobre o desinvestimento nos transportes públicos nas duas maiores cidades portuguesas, com a porta-voz Catarina Martins a ser abertamente crítica, nas últimas semanas, das condições no metro e autocarros do Porto e Lisboa.
“Não há ninguém que viva nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto que não tenha sentido nos últimos tempos como falta tudo: falta a carruagem de metro que não chega, o autocarro que não chega, é a periodicidade, é gente a mais nas horas de ponta”, afirmou a coordenadora do BE esta segunda-feira quando fez, acompanhada pela imprensa, um pequeno trajeto na linha verde do Metro de Lisboa.
É certo e sabido que os transportes têm tido carências de investimento, com muitos equipamentos antigos à espera de financiamento para serem substituídos, e parece que os preços dos títulos sobem sem que os serviços melhorem. Mas o debate tem também a outra face da moeda: em Portugal, os transportes públicos dão prejuízo. Os autocarros e metro do Porto e de Lisboa fecharam todos 2015 no vermelho, uns com mais, outros com menos, prejuízo do que no ano anterior.
Enquanto a Metro do Porto, concessionada à Barraqueiro, conseguiu que o seu prejuízo se ficasse pelos 193 milhões de euros e recuasse assim para menos de metade do registado em 2014, a Carris esteve no centro das atenções por ter divulgado os seus resultados líquidos negativos em 21,2 milhões de euros, face aos 59,63 milhões de euros em 2014, pouco depois de ser anunciado que a empresa ia passar para as mãos da Câmara de Lisboa. Também a STCP, que perdeu 31,6 milhões em 2015, e o Metro de Lisboa, que fechou o ano com um prejuízo de 13,57 milhões, estão na mesma situação.
O que se passa? Será uma incapacidade de gestão característica de Portugal? A verdade é que, quando se olha para os restantes países europeus, parece ser um problema comum. O Metro de Madrid, por exemplo, perdeu 523 milhões desde 2009. O que têm as cidades a ganhar ao investir nestas operadoras que não dão dinheiro?
Só os bilhetes não chegam
“Não quer dizer que não possa haver alguns casos pontuais, mas em condições normais, nas grandes capitais europeias, as infraestruturas de transporte não dão lucro financeiro”, explica ao ECO o investigador do Instituto Superior Técnico (IST), Rui Cunha Marques. “Normalmente a receita através dos bilhetes permite a recuperação integral dos custos, mas no caso das infraestruturas de transporte, que são infraestruturas de capital intensivo e normalmente também de mão-de-obra intensiva, isso não é suficiente”.
Torna-se claro quando se olha para as taxas de recuperação de custos operacionais pelas receitas de bilheteira nos diferentes países europeus. As taxas mais altas são nos países do Norte da Europa: por exemplo em Roterdão, na Holanda, em 2015, a taxa de recuperação era de 77,1%, e em Berlim, em 2010, era de 70,3%. A mais alta, a do Metro de Londres, chega aos 92%.
Mas é de notar que mesmo estas taxas altas não chegam aos 100% — não cobrem todos os custos operacionais — e que há mais custos para além destes. Há ainda necessidades a nível do capital, por exemplo para realizar manutenção e adquirir material circulante, ou mesmo para fazer expansões das linhas. Esses gastos não estão incluídos nestas estatísticas.
Bilheteira: pensar mais além
Além das receitas dos passes e bilhetes, os sistemas de transportes públicos também rentabilizam a publicidade, por exemplo, nas paragens e nos autocarros e carruagens, como uma forma acessória de se financiar. E a grande maioria “acaba por recorrer ao financiamento do contribuinte, ou seja, através dos impostos”, afirma Rui Cunha Marques.
"Uma empresa, se estiver numa zona onde tenha acesso a uma boa rede de transportes, tem vantagens. Uma parte desse valor deveria retornar aos transportes, e se isso acontecesse poderíamos ter a capacidade de cobrir as despesas de investimento nos transportes.”
Dentro do trajeto dos impostos, existem ideias específicas mais inovadoras. A professora e investigadora no IST Rosário Macário dá o exemplo dos fundos de transporte, como existem na Austrália e na Nova Zelândia. Estes fundos são alimentados por impostos sobre áreas adjacentes à dos transportes e impostos sobre os combustíveis ou sobre a energia, para ajudar a financiar tanto os custos como as necessidades de capital das infraestruturas de transporte.
A alternativa mais promissora, que já tem sido implementada em certos países asiáticos, é a captura de valor. Rosário Macário explica a estratégia exemplificando: “Uma empresa, se estiver numa zona onde tenha acesso a uma boa rede de transportes, tem vantagens”, afirma, não só pela facilidade de captação de clientes, mas também por poder contratar trabalhadores de mais longe, talvez com mais competências. “A mesma coisa acontece com o imobiliário, que evidentemente valoriza por estar perto da rede de transportes. Todo esse valor, na maior parte dos países e em particular em Portugal, não tem retorno para o setor dos transportes. É um valor que só dá lucros extraordinários aos agentes económicos que dele beneficiam”.
Qual a solução? “Uma parte desse valor deveria retornar aos transportes, e se isso acontecesse poderíamos ter a capacidade de cobrir as despesas de investimento”, afirma a investigadora.
E o exemplo mais óbvio, o de Hong Kong, mostra já como a estratégia poderia funcionar. O sistema de metro e comboio urbano de Hong Kong é gerido por uma empresa chamada MTR, da qual o Governo é o maior acionista, e que opera não só na área dos transportes mas também na do imobiliário, vendendo e alugando para fins comerciais e imobiliários os terrenos e edifícios à volta das suas linhas.
“O operador assume-se como um investidor, e portanto vai obter lucros e receitas de outros setores. E é com esses lucros adicionais, ao transformar-se num empreendedor, que vai arranjar fontes de financiamento para existir”, afirma Rosário Macário. E resulta. A MTR em Hong Kong tem um lucro anual de quase dois mil milhões de euros.
Investir nos transportes não é um poço sem fundo
Enquanto mecanismos como a captura de valor não estão ainda a funcionar em todo o lado, é com financiamento público — e com prejuízo — que os sistemas de transportes públicos operam. O que tem a cidade a ganhar com o investimento nos transportes urbanos? “Mais do que a recuperação financeira, que é importante também, importa pensar ainda que seja viável do ponto de vista económico”, afirma Rui Cunha Marques.
“A cidade ganha em tornar-se uma cidade mais sustentável”, afirma Rosário Macário ao ECO, explicando que uma menor utilização do transporte individual torna a cidade mais simples de gerir. “É mais fácil dar espaços ao cidadão, sem o penalizar tanto com os espaços atribuídos ao trânsito”, esclarece, “e a cidade torna-se toda ela mais agradável”.
Para Rui Cunha Marques, existem três consequências principais de um bom sistema de transportes públicos e da redução do uso do automóvel. “A primeira é que o impacto ambiental é muito menor, logo a poluição gerada é mais reduzida e a qualidade de vida melhora de forma substancial”, afirma o investigador.
“Por outro lado leva também a que exista menos congestionamento, e assim as pessoas circulam com maior facilidade e portanto aumenta a produtividade, tanto individual como do ponto de vista das empresas”. Em terceiro lugar, o transporte público pesa menos no orçamento familiar, o que deixa mais dinheiro para gastar noutros fins, como o comércio ou o lazer. “Com certeza é mais bem utilizado do que para ir trabalhar”, comenta Rui Cunha Marques. “Todas estas sinergias acabam por tornar a cidade mais atraente”, conclui Rosário Macário.
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