Bons a improvisar, maus a planear
Sobretudo na fase que se seguiu ao confinamento, houve decisões erráticas e contraditórias, desprezo pela comunicação sanitária, excesso de comunicação política e péssimos exemplos.
Nada de novo. É desta massa que somos feitos e contra isso não se pode fazer muito: quando a epidemia surgiu e foi necessário improvisar lá nos desenrascámos; quando se tratou de planear começaram os problemas.
Há meio ano éramos fantásticos, disciplinados, sacrificados, altruístas, operadores do “milagre chamado Portugal” e, pasme-se, até merecemos ver uns jogos de futebol de equipas estrangeiras anunciados com pompa, circunstância e uma enorme camada de ridículo no Palácio de Belém.
Hoje já somos irresponsáveis, relaxados, egoístas, indisciplinados e o que merecemos é ter operações da polícia que nos mandem parar à hora de ponta nas grandes cidades quando estamos a regressar a casa depois de uma semana de trabalho.
Num fósforo passámos de bestiais a bestas. O certo é que somos os mesmos de Março e Abril.
O povo é o mesmo, quem o governa também.
Por isso, não será boa ideia tratar as pessoas como mentecaptas que ou são incentivadas com o chupa-chupa do futebol de Verão ou punidas com os açoites e orelhas de burro da operação stop de Outono.
Mas haja esperança. O primeiro-ministro disse este Sábado, durante o anúncio das novas medidas de combate à pandemia, que “não podemos transformar este problema de saúde num problema de polícia” – Jerónimo de Sousa tinha dito algo semelhante dias antes.
E têm razão. Não é possível ou praticável ter um polícia para cada um de nós nem assentar o essencial da prevenção e travagem da contaminação em medidas e acções repressivas.
Voltar a confinar radicalmente, como se fez na Primavera, faria baixar os números de novo.
Mas é económica e socialmente insustentável não só pelos fortes danos transversais como pela injustiça relativa: aqui sentado ao computador, com rendimentos que dependem de uma actividade que pode ser exercida em casa, como acesso fácil a entregas à porta de restaurantes e de supermercado, com um computador e mais do que uma assoalhada “per capita”, livros e plataformas de “streaming” é muito fácil decretar que toda a gente devia ficar em casa mais algumas semanas.
Mas também não se pode deixar isto em roda livre porque dessa maneira, com o Serviço Nacional de Saúde já próximo do limite da capacidade instalada, iremos contar muitos mais mortos Covid e não Covid nos próximos meses – desde o início da pandemia já morreram mais 8 mil pessoas do que a média dos últimos cinco anos e destas “apenas” 2.200 são atribuídas ao Covid.
Este é um caso clássico em que é necessária uma alteração rápida de comportamentos e rotinas de toda a população, em que é necessária uma mobilização colectiva em torno de um objectivo comum que diz respeito a todos. Tal como uma guerra, analogia muito utilizada no início da pandemia, mas com uma diferença: aqui não há bombas a cair nem corpos pelas ruas e a noção de risco é muito mais difusa.
E isso pede, na primeira linha, forte liderança política, comunicação eficaz e credível capaz de gerar mobilização e bons exemplos.
E aí o que é que temos?
Sobretudo na fase que se seguiu ao confinamento de Março, temos decisões erráticas e contraditórias, desprezo pela comunicação sanitária, excesso de comunicação política e péssimos exemplos vindos de quem devia ser irrepreensível a dá-los.
A mensagem inicial foi clara e fácil de entender e de cumprir: “fiquem em casa”.
Depois tudo se complicou quando se pediu às pessoas para começarem a fazer a sua vida com a normalidade possível. As regras multiplicaram-se, os maus exemplos abundaram, a arbitrariedade apareceu e, na altura em que era mais crítico sensibilizar e fazer pedagogia, as autoridades de saúde preocuparam-se mais em usar os espaços de comunicação para habilidades políticas, propaganda e cortinas de fumo.
Na fase em que estamos é ainda mais fundamental corrigir os erros dos últimos meses. No dilema difícil de equilibrar entre epidemia e economia, o governo optou por medidas suaves e geograficamente diferenciadas. Isso deixa ainda mais a evolução da epidemia entregue aos comportamentos individuais e sociais.
E isso exige coisas básicas, como por exemplo:
- Regras claras, justas e sem dualidade de critérios. Se queremos que a generalidade das pessoas cumpram elas têm que perceber o que lhes é pedido e porque lhes é pedido. Não se pode autorizar hoje que uma corrida de automóveis tenha 27 mil pessoas nas bancadas e amanhã decidir que não podem estar umas dezenas no cemitério a recordar os seus mortos. Desde as comemorações do 25 de Abril que não mais se parou nos disparates, contradições e enorme contorcionismo a tentar justificar o injustificável. E devem evitar-se ruídos desnecessários. Nas regras anunciadas este sábado que sentido faz que os grupos em casa estejam limitados a cinco e nos restaurantes a seis? E se a ideia base é evitar que as pessoas reduzam ao máximo a proximidade física com outras pessoas que sentido faz limitar o horário do comércio, levando a uma concentração maior de pessoas nas lojas ou transportes públicos? Fazia mais sentido alargar horários.
- Credibilidade dos mensageiros. Do lado das autoridades de saúde só há comunicação política. Porque os actores são políticos – membros do governo -, o que é natural. Ou porque quem devia manter-se como autoridade técnica e científica cedo se transformou numa espécie de ministra da Saúde adjunta para a epidemia e controlo de danos políticos. Graça Freitas escolheu esse campo desde o início e tornou-se a protagonista das mais flagrantes contradições, indicações erróneas e justificações descabidas. Os especialistas que todos os dias estão no espaço público, mais distanciados do poder político, são hoje mais credíveis mas não têm a autoridade nem a visibilidade de uma directora-geral de Saúde.
- Deixar a ideologia fora da equação. A enorme trapalhada arranjada com a articulação entre sectores público, privado e social é tudo o que é dispensável numa altura em que todos os meios disponíveis são poucos. Do mesmo modo, opiniões subjectivas sobre o estigma que pode significar a ordenação dos concelhos do país de acordo com parâmetros epidémicos, como a que a ministra da Saúde expressou há dias, só colocam obstáculos novos e acabam por descredibilizar ainda mais os decisores quando são obrigados a recuar, como acontece agora.
- Dar os melhores exemplos. Pedem-se sacrifícios, privações e mudanças de rotinas a toda a gente. Muitos perderam empregos ou rendimentos. Todos têm que limitar contactos e convívios familiares, adiar casamentos e baptizados. O mínimo de empatia e de bom senso recomendaria que quem decide estas coisas – Presidente da República, governo, Parlamento, partidos – não reserve para si a liberdade de fazer o que proíbe nem dê maus exemplos. Desde o “Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?” de Ferro Rodrigues até aos jantares, comícios, marchas e outros eventos políticos, tudo alimenta um conceito de casta que leva muita gente a pensar: se eles podem porque é que eu não posso? A ideia de não querer limitar a actividade política é muito digna numa democracia. Mas a limitação de circulação dos cidadãos é um valor menor do que esse? E não estamos a fazê-lo?
- O Estado tem que fazer a sua parte. Pede-se à população que instale e use a app, ao ponto de até se ter ponderado que ela devia ser obrigatória. Mas o Estado não consegue gerar mais de 2% dos códigos que devia para ela funcionar eficazmente. Pede-se disciplina às pessoas e reorganização dos métodos de trabalho às empresas. Mas a Segurança Social e a Saúde não se organizam sobre os lares de idosos. A manutenção das aulas presenciais é fundamental, mesmo que muitos pais preferissem manter as crianças em casa. Mas reina a confusão sobre as regras e procedimentos quando há casos positivos nos estabelecimentos de ensino.
Não sabemos nem quando nem como sairemos disto. Não é fácil tomar decisões com dilemas tão grandes em cima da mesa. Evitar os erros mais básicos e que não custam dinheiro a corrigir é um primeiro passo para que pelo menos isto não corra pior do que deve.
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