PS perdeu maioria nos Açores. Direita perdeu a vergonha
O que se está a passar nos Açores não é a reedição da Aliança Democrática (AD) como argumenta Rui Rio, é a criação de uma Aliança Demagógica (AD) com um partido de extrema-direita xenófoba.
O líder do PSD/Açores, José Manuel Bolieiro, foi este fim de semana indigitado presidente do Governo Regional. Não ganhou as eleições, mas conseguiu juntar uma maioria de deputados, formando uma espécie de geringonça à direita.
Até aqui esta notícia é capaz apenas de nos arrancar um leve sorriso, ao ver alguns socialistas desmemoriados no Continente a estrebuchar contra alguém que ousa formar um governo sem ter ganho eleições.
O sorriso desaparece quando olhamos para a composição desta coligação de direita: para assegurar os 29 deputados que garantem a aprovação do programa de governo, Bolieiro anunciou um acordo de governo com CDS e PPM, e ainda um acordo parlamentar com o Iniciativa Liberal e o Chega.
É a primeiro vez em democracia que a viabilização e a continuidade de um Governo depende do apoio de um partido que António Costa classificou, e bem, de “extrema-direita xenófoba”. Aqui chegados, vale a pena recordar o que disseram sobre o Chega os partidos que agora se vão sentar à mesma mesa com André Ventura.
Demagogia 1) João Cotrim Figueiredo
O líder da Iniciativa Liberal, que aceitou fazer parte deste acordo nos Açores, revelou numa entrevista ao Público, em outubro do ano passado, o que pensava do Chega: “O Chega faz, nas políticas que propõe, apelo ao pior que a natureza humana tem: o medo, a raiva, a vingança, a desconfiança do que é diferente”.
João Cotrim Figueiredo reforçava nessa mesma entrevista que o IL era o oposto do Chega: “Abraça as diferenças, quer que as pessoas vivam de forma livre e portanto diferente, e apela ao que de melhor as pessoas têm: a colaboração voluntária, a vontade de fazer melhor, a entreajuda e a defesa da liberdade individual. A matriz das duas posturas é incompatível”.
Incompatível até começar a cheirar a poder. Não deixa de ser caricato lembrar a revolta de Cotrim Figueiredo quando, depois das eleições, puseram-no sentado no Parlamento ao lado dos partidos de direita, tendo afirmado na altura que se queria sentar “o mais longe dos extremos possível” no plenário da Assembleia.
Do “agnosticismo” relativamente à divisão esquerda-direita, o Iniciativa Liberal passou a ser crente numa coligação de direita com um partido que “apela ao pior que a natureza humana tem”.
Demagogia 2) Francisco Rodrigues dos Santos
Não foi nem há um ano, foi há apenas três meses que o líder do CDS-PP deu uma entrevista à revista Visão em que afirmou que “neste momento é nula” a probabilidade de entendimentos com a Chega.
“A partir do momento em que se percebe que há um distanciamento” em relação aos valores do centro-direita e há “uma tentativa constante de ultrapassar estas linhas vermelhas”, a resposta a um possível entendimento com o Chega “está dada” e será sempre não, jurou a pés juntos Francisco Rodrigues dos Santos.
A resposta é não, até começar a cheirar a poder.
Demagogia 3) Rui Rio
Este verão, em entrevista à RTP 3, Rui Rio chegou a admitir “conversar” com o Chega mas só se o partido evoluir “para uma posição mais moderada”, ou seja, se abandonar a “linha de demagogia e populismo”.
Passaram-se três meses, o Chega não evoluiu. Continua a querer castrar as mesmas pessoas, continua a não gostar das mesmas cores de pele, continua a embirrar com quem recebe RSI, e agora pelos vistos até quer confinar os ciganos por causa da pandemia.
Rio tenta romancear e dignificar o que se passa nos Açores ao dizer que o PSD está apenas a tentar reeditar a Aliança Democrática (AD) do tempo do doutor Sá Carneiro. Creio que o líder do PSD está a falar do mesmo Sá Carneiro que no da 21 de maio de 1978 disse que “Nós, Partido Social Democrata, não temos qualquer afinidade com as forças de direita”.
Direita ensaia dois argumentos
Então por que é que o PSD, o CDS e o Iniciativa Liberal, tendo dito tão mal do Chega, vão juntar-se ao Chega no Parlamento? Falta de vergonha? Sede de chegar ao poder sem olhar a meios? Estes partidos tentaram nos últimos dias aventar dois argumentos no sentido tentar explicar o embaraço político de se juntarem a um partido de extrema-direita.
1. O argumento da autonomia dos Açores
É o pior dos argumentos reivindicar que os partidos nas ilhas gozam de autonomia regional e, como tal, não precisam seguir os valores da casa mãe no Continente.
Tem de haver um limite. Os valores não se autonomizam. Os princípios não se regionalizam.
Como dizia, e bem, António Costa este final de semana, “a normalização da extrema-direita xenófoba é abrir a porta aos inimigos da democracia e nunca se pode esquecer que, quem é xenófobo, ofende o princípio basilar da igualdade da pessoa humana”.
Outros, na direita dita moderada, tentam desculpabilizar e argumentar que o Chega ficará fora do Governo regional, apenas dando o seu apoio no Parlamento. Este último recurso argumentativo é o que a Ciência Política, desde Bill Clinton, chama de “fumei, mas não inalei”.
2) O argumento da Venezuela e da Coreia do Norte
Paulo Rangel tentou ensaiar um outro argumento justificativo. Argumenta o eurodeputado que “o PCP defende a Venezuela e a Coreia do Norte que são regimes terríveis e está a apoiar o Orçamento. Como é que o PS é capaz de ser apoiado no Orçamento por esse partido? Sempre disse que para mim extrema-esquerda e extrema-direita é a mesma coisa”.
Rangel tem razão quando aponta incongruências ideológicas e posições anacrónicas à geringonça, coisa que aliás nenhum dos partidos que a integrou fez questão de esconder. Mas Rangel não tem razão quando mete no mesmo saco a esquerda radical e a extrema-direita. Não são a mesma coisa, pelo menos em Portugal. Com uns partilhamos alguns valores, embora possamos discordar do caminho a trilhar para os materializar e os defender; com a extrema-direita xenófoba e racista, como sociedade e como civilização, não partilhamos nada, nem valores, nem princípios, nem fins. Apenas sentimos, ou deveríamos sentir, vergonha.
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