Web Summit de pantufas, ou quando a vida se sobrepõe à tecnologia

Mais de nove horas diárias a assistir a conferências sem pausas marcadas para almoçar, jantar ou tomar café. Assim foi o meu primeiro Web Summit online. Mas nem tudo foi mau.

Quando, em 2015, voei para Dublin para assistir, pela primeira vez ao Web Summit — que, depois dessa edição, se mudaria para Lisboa — a expectativa era imensa. Nessa ano, conhecia algumas pessoas que já tinham ido ao evento mas eu não fazia ideia do mundo que ia encontrar. Empreendedores de todo o lado, línguas diferentes faziam-me viajar entre os pavilhões, havia ovelhas coloridas a pastar nos espaços verdes que ladeavam os diferentes edifícios em que o evento decorria e a night summit mostrou-me uma Dublin diferente daquela que via durante o dia. As ideias de negócio inovadoras, a dinâmica de abordar desconhecidos para um pitch e, claro, a vitória recente da Codacy no concurso de pitch, tornavam as coisas entusiasmantes. Foram dias de muito trabalho mas de enorme energia. E trouxe-a para Lisboa para o ano seguinte.

Todos os anos, apesar da intensidade de conteúdo que uma conferência com 70 mil pessoas traz aos jornalistas — além do volume de informação, são muitas horas de trabalho no pré, durante e pós evento — guardei sempre umas horas para andar só a observar. Entre os quatro pavilhões da FIL e o Altice Arena, encontrei muitas vezes gente conhecida mas, também, outras pessoas com quem meti conversa.

O Web Summit é, para quem nunca foi, um enorme mundo vibrante de ideias e de inspiração. Para quem agora começou a ir, um playground de inovação aberta onde cabem empreendedores, investidores, startups, empresas pequenas e gigantes. Para quem é um habitué, o Web Summit é uma espécie de casa onde se mede o pulso do ecossistema — e do mundo — e onde, também, como numa espécie de bola de cristal, se pode tentar adivinhar o futuro.

Se nos anos passados, já tinha percebido isto, este ano mais.

Recuperemos os temas principais que passaram pelos cinco palcos, pelas roundtables, sessões de perguntas e respostas e, até, pelas conferências de imprensa. Se, no ano passado, o tema “privacidade” marcou a agenda e o discurso de muitos dos políticos e outros oradores de renome — lembra-se do que disse Snowden, em direto da Rússia para o palco do Altice Arena, em Lisboa? –, assim como as questões relacionadas com a liberdade e com o tratamento de dados pelos gigantes tecnológicos, este ano passou quase despercebido em pequenas referências. Falou-se, em contrapartida, muito mais de inclusão e de como a tecnologia pode ser usada para integrar, incluir, juntar as pessoas. A naturalidade com que este tema foi tratado tem, talvez, uma razão: estamos a terminar um ano de pandemia. Fechados em casa, a tecnologia foi, mais do que apenas uma ferramenta de trabalho ou de lazer, um verdadeiro veículo de comunicação. Com ela, soubemos do que se passava no mundo, comunicámos com os nossos, projetámos o futuro. Por isso, não é de estranhar a transversalidade deste tema no alinhamento — e em quase todas as conversas tidas durante os últimos três dias: ninguém deixou de falar na pandemia, até porque estivemos todos juntos, cada um em sua casa, e a culpada foi ela.

Entre os outros temas falados pelos mais de 800 oradores que, durante cerca de 30 horas dos últimos três dias encheram os cinco palcos, estiveram — claro — as eleições norte-americanas (e que bom que foi ouvir falar mais sobre o projeto The Starting Point, cofundado por Chris Evans, que acredita que a democracia depende do envolvimento de todos os “normais” e que cresce e evolui através de pequenos incrementos. A sustentabilidade enquanto modo de vida e de operar, por startups e grandes empresas, por comunidades e cidadãos individuais, teve também um destaque preponderante. Falou-se de “digital com propósito” e do facto de a tecnologia ser insuficiente por si só sempre e quando não é usada em prol de um bem maior.

No palco virtual do Web Summit, a partir do meu computador, de pantufas, ouvi falar de muito mais do que tecnologia. Ouvi falar de vida, da forma como mudámos, como nos adaptámos, como alterámos hábitos, aprendemos a arte da paciência; como perdemos tantas vezes a cabeça e recuperámos; como nos levámos menos a sério, como exigimos dos outros (até à exaustão, às vezes); como exigimos de nós mesmos.

No Web Summit 2020 fez-se um balanço do ano: falou-se muito de trabalho remoto — e de como o trabalho é agora pandémico –, compararam-se práticas, experiências, teorias, conclusões preliminares, aprendizagens. A correr, entre cliques em palcos diferentes — entre as minhas partes favoritas, a facilidade com que, em apenas um clique, é possível alternar palcos e, por isso, transitar de uma discussão sobre as eleições norte-americanas para um workshop de culinária com hambúrgueres vegetarianos ou assistir, em direto, a um brinde entre as estrelas de Breaking Bad que vieram ao Web Summit falar sobre o processo que é pensar, criar, produzir e começar a vender a marca de mezcal (a bebida mexicana) Dos hombres –, cruzei-me com grandes e pequenos empresários, jovens e menos jovens, idealistas e realistas. A partir do meu computador, partilhei a minha sala com quem me viu no ecrã e senti-me entrar na casa dos outros numa intimidade franca de quem tem tanto para aprender como para ensinar.

O voyeurismo de espreitar a estante de livros de Malala pode até não justificar os 11 milhões que Portugal pagou — desta vez por um evento online. O retorno de 300 milhões não virá com certeza sob a forma de gastos dos 70 mil participantes em viagens, estadia, alimentação e algumas compras por impulso na cidade de Lisboa. Mas, e se olharmos outra vez? E se pudermos acelerar esta energia de partilhar conhecimento, de nos abrirmos ao mundo a partir da nossa sala, de podermos ouvir o que outros, iguais a nós — tão assustadoramente humanos como nós — e pudermos, através de um clique, falar diretamente com alguém com quem apenas sonhámos até aí?

Este Web Summit tinha muito mais de diferente do que apenas o facto de ser online. Enquanto outras grandes conferências mundiais cancelaram as suas iniciativas, o Web Summit tratou de encontrar uma forma de dar a volta às circunstâncias. A equipa de cerca de 250 engenheiros e programadores de Paddy Cosgrave trabalhou durante meses para construir a plataforma que mais de 100 mil pessoas usaram durante os últimos três dias. Com pequenas falhas de transmissão — pouco assinaláveis quando há tantas dezenas de milhares de pessoas online a partir de mais de 160 países do mundo. Se sentimos a falta de Sophia, a robô que este ano não deu a cara no evento From Lisbon? Sim. Se o online foi uma oportunidade para vermos estreantes como Deepak Chopra, Gwyneth Paltrow, Aaron Paul e Bryan Cranston ou ainda Arianna Huffington, Serena Williams? Sim. Se a conferência merecia mais momentos para respirar, mais espaço para a espontaneidade, improviso e naturalidade? Sim, merecia. Se esta edição vai deixar saudades? Se no próximo ano puder levar as minhas pantufas de unicórnio para o Parque das Nações, a mim deixa poucas.

Mas não consigo deixar de pensar, ao mesmo tempo, que estar no meio de tanta gente tão diferente, independentemente de onde estamos ou de para onde vamos, ouvir e falar garante-me, além de boas históricas, uma espécie de constância dentro do “conceito” que é 2020: uma enorme e desconcertante incerteza. Tal e qual a vida.

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