Petrolíferas evitam milhares de milhões em impostos usando seguradoras cativas
O setor Oil & Gas obtém enorme proveito manipulando preços de transferência e custos. Cativas detidas por petrolíferas são muito mais lucrativas do que as cativas das seguradoras tradicionais.
As grandes companhias do petróleo e gás evitam pagar centenas de milhões de dólares em impostos nos países onde perfuram e exploram petróleo, desviando lucros para seguradoras (e outras filiais financeiras) por si criadas e sediadas em paraísos fiscais.
Em 2018 e 2019, a Shell somou cerca de 2,7 mil milhões de dólares de ganhos isentos de impostos – cerca de 7% do seu rendimento total nesses dois anos – reportando lucros de empresas localizadas na Bermuda e nas Bahamas, as quais empregavam menos de 40 pessoas e cujos resultados são sobretudo gerados a partir de simples movimentos contabilísticos com outras entidades da Shell.
Se a companhia tivesse declarado lucros através da sua sede, na Holanda, teria enfrentado um encargo fiscal a rondar 700 milhões de dólares com base nos 25% da taxa aplicada às sociedades holandesas. A “fatura” teria sido ainda mais pesada se os rendimentos tivessem sido declarados nos países produtores de petróleo, alguns dos quais cobram taxas superiores a 80%.
Só através de duas filiais na Bermuda, onde tem as subsidiárias de seguro e banca – em conjunto empregando três pessoas -, a Shell captou 1,3 mil milhões de dólares naqueles dois anos, indica a agência de informação citando documentos publicados pela petrolífera em 2019 e em novembro de 2020, altura em que a Shell anunciou que deixou de realizar transferências de crédito com origem nas Bermudas, mas “sem explicar porque decidiu cessá-las”, revela uma investigação da agência Reuters.
Richard Murphy, professor de Economia Política na University of London, admite que este tipo de operações existe, desde a sua origem, com intenção fiscal. Os números que mostrados “não fazem sentido”. A elevada rentabilidade das subsidiárias sediadas na Bermuda (reconhecida praça mundial de seguros), juntamente com a forte dependência das receitas provenientes de outras filiais do grupo petrolífero, sugere intuito de “desviar lucros para jurisdições onde paguem menos impostos,” afirmou Murphy.
No caso da gigante holandesa, é referido ainda uma empresa de trading nas Bahamas (Shell Western Supply and Trading Ltd) cujas receitas provêm essencialmente de operações de compra e venda de produtos petrolíferos entre filiais da própria Shell. No entanto, a companhia de origem holandesa nega artifícios que tenham em vista evitar o pagamento de impostos e explicou que a localização das subsidiárias é mais ditada por conveniência operacional e comercial da sua atividade do que por razões fiscais.
A investigação da Reuters baseou-se em relatórios de agências de rating e em informações oficiais que as petrolíferas enviam às entidades reguladoras. A investigação indica que Shell, BP Plc, Chevron e Total detêm entidades subsidiárias – com sede em jurisdições como as Bahamas, Bermuda, Guernsey, Suíça e Irlanda – funcionando como fornecedoras e prestadoras de serviços de banca, seguros e operações de trading (comércio internacional) e que, em troca dos serviços e seguros contratados, essas sociedades subsidiárias (com apenas algumas pessoas ao serviço e praticamente sem atividade que justifique a sua existência), arrecadam lucros gigantescos.
Os esquemas não são ilegais e, segundo sustentam consultores jurídicos, as pessoas que estão nos conselhos de administração destas companhias têm o dever fiduciário de maximizar lucros. Mas, tais operações realçam a capacidade que as petrolíferas internacionais têm para driblar os sistemas fiscais globais e evitar pagar impostos nos países onde realizam atividade principal, explicam académicos especialistas em questões fiscais.
Países como, por exemplo, Angola, Brasil e Trinidad, que dependem muito das receitas do petróleo, tiveram de realizar corte drástico na despesa e aumentar endividamento externo para dar resposta à crise da pandemia, refere a Reuters (conteúdo de acesso livre, em língua inglesa).
A investigação sugere que essas seguradoras cativas – geralmente sediadas onde se favorece o sigilo fiscal e onde a tributação é bastante mais baixa ou mesmo inexistente – absorvem parte importante das receitas obtidas por outras filiais dessas multinacionais. Os contratos de seguro utilizados no esquema incidem frequentemente sobre operações e países onde as receitas são fortemente tributadas para, depois, devolver o lucro sob formas diversas às entidades matrizes dessas companhias.
Os ganhos gerados pelas subsidiárias em jurisdições extraterritoriais são enormes face à reduzida dimensão e escassa atividade operacional que apresentam. Fontes especializadas explicam que a arquitetura e o funcionamento dessas estruturas têm objetivo deliberado de “explorar falhas nos sistemas fiscais”, desfere Raymond Baker, presidente da Global Financial Integrity, uma organização não lucrativa sediada em Washington conhecida pelo combate à evasão fiscal por grandes empresas.
Informação da AM Best (agência de rating de referência nos seguros), mostra que a Jupiter Insurance (seguradora cativa da BP), ao serviço do universo da antigamente designada British Petroleum (atual BP), registou cinco anos consecutivos de forte desempenho em subscrição e resultados operacionais, dispondo de 6500 milhões de dólares em numerário disponível no final de 2018, um balanço robusto.
A BP subcontrata a gestão de seguros a uma corretora sediada em Guernsey (jurisdição offshore no Canal da Mancha). A Jupiter Insurance Ltd, que dispõe de seis diretores e nenhum empregado, representou 14% dos ganhos anuais globais consolidados pela BP nos últimos exercícios. No período compreendido entre 2009 e 2013, intervalo em que se deu o desastre económico ambiental causado pelo acidente da plataforma Deepwater Horizon (Golfo do México), causando danos estimados em 70 mil milhões de dólares, os pagamentos desembolsados pela Jupiter não ultrapassaram 1,5 mil milhões. No mesmo período, o rácio de perdas manteve-se sempre inferior a um limiar de 15% relativamente ao valor dos prémios de seguro, indicava informação produzida pela AM Best, em 2014.
As seguradoras cativas detidas por petrolíferas mostram-se muito mais lucrativas do que as cativas das companhias de seguro tradicionais. Isso explica-se, em boa parte, por gastarem muito menos a indemnizar sinistros do que o que arrecadam com a cobrança de prémios às empresas irmãs (o universo BP conta centenas de empresas filiais distribuídas pelo mundo).
David Nicholas porta-voz da BP, disse que a Jupiter “tem residência fiscal no Reino Unido e, portanto, está sujeita ao regime fiscal britânico”. Mas, segundo a agência de notícias – que cita dados de entidades governamentais britânicas -, a seguradora da BP não pagou qualquer imposto britânico em 2019. A BP, que assume não se envolver em arranjos artificiais de planeamento fiscal, defende que compensou o rendimento tributável da Jupiter com perdas de outras filiais com sede no Reino Unido, um procedimento considerado típico. De resto, 98% das reservas da cativa eram transferidas para a BP International Ltd, (sediada em Londres e empresa-mãe da seguradora) a título de empréstimos. Em troca, a BP pagava juros pelo crédito, contribuindo ainda mais para os rendimentos (quase não tributados) da Jupiter.
Além da Shell e da BP, a agência de notícias refere outras petrolíferas cujas situações de transparência estão mais ou menos documentadas, mas que também detêm as suas próprias seguradoras. São os casos da norte-americana Chevron (Heddington Insurance Ltd, sediada na Bermuda), a francesa Total (Omnium Reinsurance Company, sediada na Suíça) e a italiana Eni SpA (Eni Insurance DAC, com sede na Irlanda).
A problemática dos paraísos fiscais (e a pressão internacional para os forçar a cooperar no combate à evasão), é preocupação antiga nas cimeiras G7 ao G20 (países mais industrializados e maiores economias), merecendo a atenção e ação específica (para coordenação internacional ao nível de políticas fiscais) por parte da Organização para a Cooperação Económica e o Desenvolvimento (OCDE).
A denúncia pública da estratégia fiscal de multinacionais – visando nomeadamente as práticas de elisão fiscal, erosão da base tributável e a transferência de lucros -, também não é tema novo e, há muito que a Platform, uma organização londrina que mistura ativismo ambiental, social, arte e investigação não poupa a indústria petrolífera como alvo do seu escrutínio. Uma publicação da coleção Platform Briefing já denunciava, há sete anos, a “competência” das petrolíferas no jogo do planeamento fiscal agressivo e da designada elisão fiscal. De acordo com o documento, as petrolíferas estruturam-se, elas próprias, no sistema internacional, com a arquitetura que melhor serve para fugirem aos impostos sem incorrerem em ilegalidade.
As majors do petróleo e gás apresentam vantagens intrínsecas na sua estratégia de maximização de ganhos e redução da contribuição devida aos orçamentos dos Estados com que se relacionam. Operando cadeias logísticas e de produção, transformação e distribuição em diferentes níveis e localizações, o setor oil & gas recruta peritos em contabilidade fiscal para se dedicarem às transações intragrupo e maximização do lucro. Perceber o funcionamento dos fluxos que servem a manipulação dos preços de transferência, e a necessidade de inflacionar custos, torna-se tarefa quase impossível sem a colaboração da própria companhia, sustentam outras fontes.
Exemplificando, a Platform refere no mesmo documento que, sozinha, a BP contava perto de 1600 entidades subsidiárias, muitas sediadas em jurisdições (paraísos fiscais) e territórios onde não se vislumbra atividade ligada à indústria petrolífera. Na maioria, são meras “caixas de correio” (shelf companies ou “sociedades fantasma”, na literatura especializada também designadas como Special Purpose Entities – SPE), são administradas por escritórios de advogados também offshore ao serviço dos esquemas fiscais utilizados.
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