Apesar das críticas, Isabel Camarinha continua a defender as celebrações do 1º de Maio nas ruas, em plena pandemia, e avança que se repetirão este ano. Diz que apoios às empresas estão mal dirigidos.
A pandemia travou as greves, mas ficou longe de adormecer a luta dos trabalhadores, garante a secretária-geral da CGTP. Em entrevista ao ECO, Isabel Camarinha conta que 2020 foi um ano de atividade “muito intensa” e sublinha que as celebrações do 1.º de Maio — que geraram muitas críticas — deram um impulso “fundamental” a esse movimento. Em 2021, o Dia do Trabalhador será, portanto, novamente comemorado nas ruas, assegura a responsável.
Em ano de pandemia, Isabel Camarinha critica as opções tomadas pelo Executivo de António Costa, considerando que as medidas extraordinárias ficaram marcadas pelo desequilíbrio e insuficiência. Prova disso, diz a sindicalista, é o corte salarial que ainda se mantém como consequência da adesão ao apoio à família. E acrescenta que, para as empresas, “há muitos apoios”, mas também estão “mal dirigidos”, deixando micro, pequenas e médias empresas em apuros.
Sobre os salários, a secretária-geral da CGTP defende que o aumento da retribuição mínima garantida e das remunerações em geral é “uma emergência” e salienta que isso ajudaria até as próprias empresas, ao dinamizar o consumo.
Em conversa com o ECO a propósito do primeiro ano de mandato, Isabel Camarinha ataca também o Governo no que diz respeito ao teletrabalho, apontando atrasos na aplicação do que já está no Código do Trabalho e frisando que continuam em falta orientações claras sobre esta matéria.
Menos de um mês depois de assumir a liderança da CGTP, foram detetados os primeiros casos de Covid-19 em Portugal e a pandemia deflagrou. Como é que a crise sanitária moldou o seu primeiro ano como secretária-geral desta central sindical?
Tem sido difícil para a nova direção que foi eleita no congresso, como tem sido difícil para todos os portugueses, porque nenhum de nós estava preparado para uma coisa como a que aconteceu. Na CGTP, a nova direção acabou por nem sequer ter tempo para, digamos, assentar arraiais, mas tínhamos já a caracterização feita da situação do nosso país, as prioridades traçadas. A verdade é que a epidemia veio acentuar as necessidades que os trabalhadores e o país têm. Não veio alterá-las, propriamente, do ponto de vista das orientações mais gerais. Agora, obrigou-nos a uma resposta que ninguém pensava que ia ter que dar.
À CGTP foi necessário adequar o funcionamento, a nossa forma de atuar, de intervir, de fazer a nossa atividade, no sentido de garantir a resposta às necessidades dos trabalhadores.
As respostas têm sido muito insuficientes, muito desequilibradas, porque favoreceram muito as grandes empresas, deixando os trabalhadores com cortes no salário e no desemprego.
Em maio do ano passado, já estava Portugal em pandemia, disse ao ECO que o principal desafio do mercado laboral era a falta de apoios adequados. Entretanto, o Governo lançou mais apoios. Continua a considerar que a falta de apoio é o maior desafio? Ou há outro que se sobreponha agora como o mais complicado?
Tivemos praticamente um ano em que quase um milhão e meio de trabalhadores teve cortes salariais. Já para não falarmos do modelo de baixos salários, da precariedade, dos horários longos e desregulados, do desinvestimento nos serviços públicos e de uma legislação laboral que, em vez de proteger os trabalhadores, o que faz é que haja quase uma igualdade entre trabalhadores e empregadores, o que não é verdade.
O nosso 1.º de Maio deu um impulso muito grande [à luta dos trabalhadores], mas também, ao longo do ano, os trabalhadores nos locais de trabalho, nas regiões e em ações mais convergentes convocadas pela CGTP têm vindo a exigir as suas reivindicações e a necessidade de respostas aos problemas e ao futuro. As respostas têm sido muito insuficientes, muito desequilibradas, porque favoreceram muito as grandes empresas, os grandes grupos económicos, deixando os trabalhadores com cortes no salário e no desemprego.
Os trabalhadores precários foram quase todos despedidos logo no início da pandemia. O que colocávamos era a necessidade de garantir todos os postos de trabalho, proibindo os despedimentos com base no surto epidémico. Ora, isto não aconteceu. Houve alguma limitação dos despedimentos para as empresas que estavam a receber apoios, mas não abrangiam os trabalhadores com vínculos precários, que foram, como sabemos, os primeiros a serem mandados embora pelas empresas. A verdade é que, ao longo deste ano, as medidas não foram suficientes. Naturalmente que a luta obrigou a alterações.
Por exemplo?
Temos agora, por exemplo, o pagamento do lay-off a 100%, até três salários mínimos, o que já é uma garantia que os trabalhadores que estão em lay-off têm a sua retribuição total. Mas a verdade é que estiveram nove meses sem que isso acontecesse.
Temos ainda trabalhadores em teletrabalho com situações discriminatórias em relação aos que estão nos locais de trabalho, até nesta medida de apoio extraordinário às famílias. Já no ano passado tínhamos dito que era inaceitável que os trabalhadores que estavam a dar apoio aos filhos por causa do encerramento das escolas [sofressem cortes salariais]. Agora, quando voltou a repescar-se essa medida, voltámos a colocar que era impossível manter a situação como a do ano passado. O Governo acabou por alterar um bocadinho, mas é sempre curto. Nunca vai até ao final da necessidade que existe. Não se compreende. Ainda por cima incoerentemente, porque todas as medidas que existem de apoio à família no nosso quadro legal vão até aos 12 anos.
Acredita que o Governo ainda tem abertura e disponibilidade para dar esse passo “extra” no apoio aos pais, como têm defendido?
Continuamos a dizer que o Governo deve alterar [o apoio]. A questão do pagamento deve ser retroativa ao início do encerramento das escolas, em janeiro. Depois, não alargar a todos o pagamento a 100% também não faz sentido, até por uma questão de justiça e homogeneidade. Se os trabalhadores em lay-off recebem o salário a 100%, porque é que estes trabalhadores têm de ter um corte salarial de um terço?
Se há o reconhecimento que é preciso pagar a 100% a retribuição, então paga-se a todos, não é só a alguns. Até porque não estamos em momento de estar com medidas que, de forma até um pouco demagógica, querem melhorar igualdade de género. Somos, obviamente, pela igualdade, o que consideramos é que não é este o momento para estar a fingir, quase, que estamos a criar uma discriminação para melhorar esta situação da partilha, quando sabemos a realidade que existe nos locais de trabalho, a dificuldade que muitos trabalhadores têm.
Para a CGTP, não faz sentido, então, haver alternância entre progenitores para se conseguir a majoração do apoio à família?
Exatamente. [O apoio a 100%] devia ser para todos. Não é nesta medida que se vai conseguir melhorar a situação da igualdade de género e da partilha entre os pais. É preciso estar sempre a lutar, a exigir, a insistir para conseguir que as medidas melhorem um pouco, enquanto para as empresas há muitos apoios, mas também mal dirigidos, porque as micro, pequenas e médias têm, muitas delas, dificuldades em aceder aos apoios. Isto é, de facto, não ir ao encontro das necessidades concretas quer dos trabalhadores, quer das empresas. Com a nossa reivindicação, foi havendo alguma diferenciação entre as grandes empresas e as mais pequenas, mas mesmo assim há milhares de empresas em dificuldades e milhares de trabalhadores que correm o risco de ficar no desemprego, se o Governo não alterar as opções.
Acredita que foi por causa dessa falha no desenho dos apoios que os despedimentos coletivos dispararam em 2020, apesar das medidas extraordinárias? Ou porque não foram definidas regras mais rígidas contra os despedimentos nas empresas que receberam os apoios extraordinários?
Ambos. Consideramos que devia ter havido uma proibição total dos despedimentos, que deve haver, porque precisamos manter o emprego para garantir que, na retoma, vamos desenvolver a nossa economia. Ora, para isso é preciso emprego e salários que deem poder de compra aos trabalhadores. É preciso garantir a totalidade dos salários a quem está em medidas de apoio, como o aumento geral dos salários. Só isso é que vai fazer com que a nossa economia se desenvolva. Tivemos esse exemplo recentemente, no período a seguir à troika. O aumento geral dos salários é uma emergência, é fundamental. Só isso irá fazer com que haja aumento do consumo, haja incremento do mercado interno.
Sobre esse aumento das remunerações. Em 2021, o Governo decidiu reforçar o salário mínimo nacional. A CGTP defendia até um aumento maior do que o que foi posto em prática. Não teme que esse aumento resulte num aumento do desemprego, uma vez que as empresas estão fragilizadas, sobretudo entre os mais jovens?
De forma alguma. Isso é um argumento completamente falacioso que as empresas e os patrões acenam. O custo dos salários nas despesas gerais das empresas é uma parcela bastante reduzida. Por outro lado, não é um aumento de 30 euros por mês que vai alterar a situação financeira das empresas. O que consideramos é que as empresas precisam de apoios — aquelas que efetivamente necessitam –, que não podem ser à custa da Segurança Social ou da Taxa Social Única (TSU). Mas o aumento do salário mínimo, tal como o aumento geral dos salários, vai ter reflexos positivos na economia, no escoamento de produtos, na produção, na venda. Portanto, as empresas vão ganhar com isso. Aliás, se ouvir com atenção as empresas mais pequenas, os próprios patrões dizem que é importante aumentar os salários para aumentar o consumo. Para nós, esta questão dos salários é fundamental. Depois, é a questão da precariedade e da valorização das carreiras.
O Governo atrasou-se a pôr em prática aquilo que já está na lei, sobre o teletrabalho.
Falou dos abusos que existem no contexto do teletrabalho. Há praticamente um ano que o teletrabalho é uma realidade. O Governo identificou a necessidade de mais regulação e até já disse que está a trabalhar nela, por via do Livro Verde do Futuro do Trabalho, mas até agora não há propostas. A CGTP considera que há atrasos?
O Governo atrasou-se a pôr em prática aquilo que já está na lei. A nossa legislação já diz que os trabalhadores em teletrabalho têm de ter as mesmas condições que os trabalhadores que estão nos locais de trabalho. O que exigimos e defendemos é que os trabalhadores que estão em teletrabalho não podem ter um acréscimo nas suas despesas por estarem a trabalhar a partir de casa e têm de ter as condições para realizar o seu trabalho.
Com a nossa persistência, acabou por se introduzir que os trabalhadores que não tivessem condições podiam recusar o teletrabalho. A promiscuidade entre trabalho e vida pessoal aumenta exponencialmente para os trabalhadores com salários mais baixos. E esta questão de se poder recusar por falta de condições habitacionais é muito importante.
Depois, a questão das despesas. Para nós, foi sempre clarinho que tem de ser as entidades patronais a suprir esse aumento das despesas dos trabalhadores, sejam elas quais forem. A regulação pode vir a clarificar coisas que as empresas e que até a própria Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) interpretam de uma forma que não é a da CGTP. Urgente, urgente tinha sido o Governo logo ter acionado os mecanismos para que a ACT, com orientações claras, interviesse sempre que fosse necessário.
Os inspetores da ACT dizem que até agora não têm orientações sobre o acréscimo das despesas dos trabalhadores em teletrabalho. A CGTP tem questionado o Governo e que resposta tem recebido?
O Governo fez umas declarações em que dizia que, relativamente à internet e às comunicações, tinha de ser a empresa a pagar, mas depois isto tudo nunca fica completamente claro e alimenta as interpretações que as empresas fazem da lei. Tem de haver orientações claras de interpretação da lei. O trabalhador não pode ser prejudicado por estar em teletrabalho. Para nós, não há dúvidas. A que é haver orientações por parte do Governo há ACT para que a ACT faça cumprir nesse sentido, mas não tem acontecido, por mais que haja insistência. Há, de facto, intenções [da parte do Governo] de regulamentar melhor o teletrabalho, mas não há ainda nenhuma proposta, nem projeto que conheçamos nesse sentido.
Na ausência dessa regulamentação e até pelo que já disse sobre os apoios, que nota dá a este Governo na proteção dos trabalhadores, neste contexto pandémico?
Os trabalhadores lutam porque precisam, não lutam porque lhes apetece. Os trabalhadores sentem que não há respostas e lutam para as exigir, sejam elas da empresa, do Governo ou da Assembleia da República. Isto responde à sua pergunta. Se considerássemos que o Governo estava a agir como devia, não tínhamos necessidade de mobilizar os trabalhadores no sentido de exigirem essas respostas que não estão a ser efetivamente dadas.
2020 foi um ano marcado pela quebra do recurso às greves. A CGTP disse que, apesar disso, a luta dos trabalhadores estava em crescendo. Que outras formas de protesto adotou a CGTP? E como está a evoluir o número de trabalhadores sindicalizados em Portugal?
Os sindicatos da CGTP mantiveram-se, desde o primeiro minuto, ativos e intervenientes para defender os direitos e interesses dos trabalhadores, garantindo que a atividade sindical se continuava a desenvolver, mesmo que em condições diferentes. A luta foi muito intensa ao longo deste ano, muito dela dentro dos locais de trabalho, com plenários, cadernos reivindicativos, abaixo-assinados, greves. Houve menos greves, porque alguns setores não podiam fazê-las, outros estavam fechados. Realizamos um conjunto vastíssimo de ações. Fizemos o nosso 1.º de Maio, fizemos uma semana de luta em junho e conseguimos muitos resultados. Isto é importante para os trabalhadores perceberem que, organizando-se e lutando, resistem e conseguem obter resultados, melhorando até as suas condições de vida e trabalho.
Conseguimos reintegrar muitos trabalhadores que tinham sido despedidos por terem vínculos precários, provando que ocupavam postos de trabalho permanentes, que é uma realidade que é transversal a todos os setores de atividade. Conseguimos impedir despedimentos coletivos e que houvesse aumentos salariais em muitas empresas. Conseguimos até reduzir horários de trabalho, nalgumas empresas, que é um objetivo que temos também. É curioso que, nas empresas em que houve redução do horário, em muitos casos, a própria empresa veio reconhecer que aumentou a produtividade e isso é demonstrativo que um trabalhador com salário baixo, com horários longos e desregulados, sem possibilidade de conciliar a sua vida profissional com a vida pessoal, submetido a ritmos de trabalho muito intensos produz muito menos do que um trabalhador com um horário que lhe permite compatibilizar a sua vida pessoal com a profissional e que tem um salário que lhe permite não só fazer face às despesas. A vida não pode ser só trabalho. Há vida para além do trabalho e os trabalhadores têm direito a ela.
Em maio de 2020, a CGTP celebrou o 1.º de Maio nas ruas, com manifestações simbólicas, e as críticas fizeram-se sentir. Continua a defender essas celebrações?
Temos vindo a fazer um conjunto vastíssimo de ações maiores do que o 1.º de Maio de 2020. O 1.º de Maio de 2020 foi fundamental. Não foi para a CGTP acenar uma bandeirinha, foi para colocar na rua, denunciar, exigir respostas a uma situação em que, dois meses passados do início da epidemia, os trabalhadores estavam a sofrer uma ofensiva brutal de corte de salários, de despedimentos, de salários em atrasos, de violação dos seus direitos aos mais diversos níveis, como os horários e férias.
Nunca houve por parte de nenhuma entidade governativa, ou fosse o que fosse, a dizer que não se podiam realizar [as ações da CGTP], porque não o podiam fazer. A Constituição não permite que haja impedimento de um direito, que é fundamental.
Portanto, 1.º de Maio deste ano será nas ruas?
Será nas ruas.
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“1.º de Maio deste ano será nas ruas”, diz secretária-geral da CGTP
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