Raquel Moreira: “A Justiça que é servida fora de tempo não é justiça”

A sócia da Serra Lopes, Cortes Martins dá uma entrevista à Advocatus onde fala da corrupção, da forma como o Governo gere a pandemia e do sensacionalismo na Justiça.

Maria Raquel Moreira — da rubrica de contencioso de hoje — é sócia da SLCM desde 2005, onde é responsável pelas áreas de prática de Contencioso & Arbitragem e Reestruturação & Insolvência.

Tem uma larga experiência em assessoria a clientes de diversos setores de atividade, incluindo instituições financeiras e banca, grandes empresas nacionais e multinacionais e empresas públicas em contencioso civil, comercial e societário. Atua também na construção de soluções tailor-made em processos extrajudiciais e judiciais de revitalização e de insolvência.

As férias judiciais são um tema que é politicamente recorrente. Perante este contexto da pandemia, concorda que deveriam ser reduzidas, de forma a recuperar o tempo perdido? Parece-me uma solução simples mas que terá alguns anti – corpos.

Não creio que a redução do período de férias judiciais seja solução. Desde logo, e acho que tem de se dizer isto, a circunstância de termos uma suspensão legal de prazos não significa que os processos estejam parados. Há uma enorme quantidade de atos processuais que continuam a ser praticados por todos os agentes, sejam advogados, magistrados, agentes de execução ou funcionários judiciais. Nesta última suspensão houve a preocupação de salvaguardar não só a continuidade dos processos urgentes e daqueles em que estejam em causa direitos, liberdades e garantias dos sujeitos, mas também a prática de actos processuais cuja tramitação não esteja especialmente dificultada pelo confinamento. Mas mesmo quando tivemos uma suspensão menos flexível, o que se testemunhou foi precisamente uma vontade generalizada de fazer o que pudesse ser feito, e não foi pouco. Por outro lado, e esta é uma convicção meramente pessoal, julgo que a suspensão das diligências presenciais também criou espaço para que decisões judiciais fossem sendo proferidas em tempos mais curtos, o que também é positivo.

Há uma coisa de que não nos podemos esquecer. A pressão dos prazos recai sobretudo sobre os advogados. Para todos, mas sobretudo para os advogados em prática isolada, é importante haver períodos em que haja a segurança de não correrem prazos, nem haver diligências a participar. E os advogados também têm que parar. Obrigar por decreto o conjunto, grande, de pessoas que trabalham com processos judiciais, e respectivas famílias, a gozar o seu período de férias numa determinada quinzena não me parece aceitável e se não quisermos entrar em demagogias teremos de reconhecer que não são os períodos de férias judiciais que vão comprometer a recuperação de atrasos nos processos, mesmo de atrasos excepcionais.

Fala-se ou falou-se em situações de pre rutura do SNS. E do sistema de Justiça? O que se pode esperar com esta paragem derivada da pandemia?

Não é comparável. Não estamos sequer perto de uma situação que se possa apelidar de pré-ruptura. Com isto não quero dizer que desvalorizo a importância que cada julgamento adiado pode ter para os envolvidos. Há impactos, com certeza que sim, e o contexto pandémico pode ter tornado mais evidente as dificuldades que existem no sistema de justiça. Mas Portugal já regista desde há muito um problema, que diria endémico, com atrasos na Justiça. Teremos colectivamente de encontrar as melhores formas de ultrapassar as dificuldades e julgo que os profissionais que estão no terreno o estão a fazer, empenhadamente e de forma responsável. O recurso aos meios tecnológicos e digitais, que já vinha sendo uma tendência e que de alguma forma foi agora forçado pelos constrangimentos originados pela pandemia, será seguramente uma das vias que poderão contribuir decisivamente para a mitigação dos efeitos directos das suspensões.

Se não quisermos entrar em demagogias teremos de reconhecer que não são os períodos de férias judiciais que vão comprometer a recuperação de atrasos nos processos, mesmo de atrasos excepcionais”

Quem serão as maiores vítimas desta paragem?

Naturalmente que as maiores vítimas serão os cidadãos e as empresas, ainda que admita que esta paragem possa ter repercussões muito negativas para advogados, especialmente de prática individual e com uma atividade muito centrada em contencioso.

O discurso dos atrasos na Justiça é recorrente. Já foram adiadas 50 mil diligências devido à Covid-19. Esta passará agora sempre a ‘desculpa’ para esses mesmos atrasos?

Depende de quem precisar ou quiser justificar-se… Se calhar precisamos de começar a olhar com outros olhos para o que está por detrás desses atrasos, admitir de uma vez por todas que não são as chamadas manobras dilatórias por parte de advogados, embora também as haja, que nos trouxeram até aqui, e contrariar o status quo.

Não é fácil ser PM ou ministra da saúde nesta fase. Mas como avalia a atuação do Governo ao lidar com a pandemia? Estamos reféns das opiniões de demasiados especialistas?

Globalmente, considero que o Governo tem gerido bem a situação. Evidentemente não fez tudo bem, mas isso existe? É preciso ser-se sério e justo na análise do contexto, dos timings e dos níveis de conhecimento em que o Governo tem sido chamado a actuar. Não acho que estejamos reféns das opiniões de demasiados especialistas, embora perceba a razão de ser da afirmação. Seria preferível que houvesse mais consensos na comunidade científica e também menos politização no combate à pandemia por vezes mais focada em apontar erros e culpados do que em contribuir para soluções. Certamente o Governo e todos nós, como país, beneficiaríamos disso, mas o caminho, a meu ver, não é reduzir o número de opiniões e especialistas a ouvir, se estamos verdadeiramente a falar de especialistas. Temos a ganhar com a diversidade de abordagens, de experiência, de conhecimento em geral. Noutro plano, que é o das redes sociais e dos media, concordo que temos demasiado ruído, muitas vezes desinformação propriamente dita, mas essa é outra questão.

As diligências feitas à distância são uma miragem, um discurso enganoso do poder político? A Justiça ainda não é suficientemente tecnológica?

A Justiça ainda não é suficientemente tecnológica, mas é crescentemente tecnológica. A experiência de audiências, que não as audiências de julgamento propriamente ditas, feitas por videoconferência tem sido positiva, creio, e deveria ficar para futuro. Quanto à realização de audiências de julgamento admito que não deva ser regra, porque são muito importantes as leituras e avaliações em matéria probatória que a presença física das partes e das testemunhas permite, mas pode ainda assim recorrer-se aos meios digitais em determinadas situações, o que aliás não é novidade porque a regra no processo civil para inquirição de testemunhas fora da comarca já é há muitos anos a videoconferência. Podem é simplificar-se procedimentos e, claro, deve haver investimento em meios e na formação dos agentes.

Dá-se ao “luxo” de poder recusar casos?

Um advogado que não tenha condições de recusar casos não é um advogado livre e tem comprometido um dos valores mais importante da profissão, se não o mais importante, que é a independência.

O facto de estar integrado num escritório de grande dimensão, corta-lhe as vazas para aceitar alguns clientes?

Quanto maior for a estrutura, maior será a capacidade de lidar com mais casos e clientes. Mas, é evidente, também são maiores as possibilidades de existirem conflitos de interesses. Na SLCM temos procedimentos sólidos que previnem situações de conflitos de interesse, mas por via da dimensão haverá seguramente exemplos mais problemáticos nessa matéria do que a SLCM.

Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?

Não, o contencioso sempre foi tradicionalmente uma das áreas core da SLCM e tem nos seus três sócios fundadores grandes referências.

O contencioso já foi mais valorizado do que é?

Não tenho essa percepção. Creio que o contencioso nunca perderá importância, até como forma, muitas vezes última, de resolver conflitos. E os conflitos são inerentes à condição humana e à vida em sociedade

E as boutiques nesta área fazem sentido?

É muito difícil prestar uma boa assessoria jurídica sem competências específicas nas diversas áreas do direito, quando o direito acompanha necessariamente a complexificação da realidade e das relações jurídicas. O contencioso interage com todas essas áreas sendo, por isso, importantíssimo ter uma rede de advogados especialistas em muito mais do que direito processual. Mas a inversa também é verdadeira, exige-se a um advogado de contencioso que domine muito mais do que direito processual, o que obriga a um esforço contínuo de aprendizagem e de aprofundamento de conhecimentos em áreas muito distintas.

Considero que o Governo tem gerido bem a situação. Evidentemente não fez tudo bem, mas isso existe? É preciso ser-se sério e justo na análise do contexto, dos timings e dos níveis de conhecimento em que o Governo tem sido chamado a atuar”

Já foi ameaçado ou insultado em tribunal?

Quem nunca?

Qual foi o caso em que saiu do tribunal e pensou “saí-me mesmo bem!”? Sem falsas modéstias.

Não acho que seria uma advogada realizada se conseguisse identificar “esse” caso.

A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública. Como explicar ao cidadão comum que não é esse o caminho?

Formar/informar. Esse binómio que nos falha tantas vezes. O que vende é o sensacional e por isso usa-se e abusa-se da comunicação de assuntos do foro da Justiça. A lógica mediática obriga a compactar e a simplificar, o que prejudica o rigor e, por vezes, a verdade, levando à formação de perceções e de convicções muitas vezes erradas. Tem que haver mais preocupação em transmitir às pessoas a visão de dentro do Direito. A dos princípios, a que nos protege enquanto indivíduos e enquanto comunidade. As pessoas estão sentadas no sofá de sua casa a julgar, mas sem terem todos os dados, tendo apenas aqueles que recebem através dos media e o sentimento muito humano de retribuição. Depois, há pouco investimento na formação de jornalistas, mesmo os que se dedicam especialmente a estes temas. É muitíssimo frequente assistirmos a erradas utilizações de termos jurídicos, mesmo em meios de comunicação de referência.

Como é a sua relação com a magistratura. É do tipo de advogado conflituoso, diplomata, respeitador ou mais provocador?

Temos papeis diferentes. Mas nas relações com magistrados, como em qualquer outra relação, sou respeitadora. Não concebo relações interpessoais sem respeito.

Se fosse ministro da Justiça quais seriam as suas três prioridades?

Não sei se seriam prioridades no sentido que me está a pedir que identifique, até porque não me imagino nessa situação e não tenho a pretensão de ter receitas de sucesso para a resolução de problemas graves que subsistem desde há muito e para além dos mandatos dos sucessivos decisores.

Mas diria que uma das coisas cruciais seria, desde logo, encontrar forma de ter Justiça feita em tempo. A Justiça que é servida fora de tempo não é justiça. Tem-se feito caminho neste particular, mas tem que ser possível fazer muito mais, e sem ser à custa dos prazos que são sempre os mesmos a ter de respeitar.

Gostava também de ter uma Justiça de maior proximidade. Desinstalar, no bom sentido, os senhores juízes, sobretudo nalgumas áreas do direito em que faria todo o sentido que o juiz saísse do edifício do tribunal e conhecesse mais de perto a realidade que está a julgar. A proximidade gera confiança.

E creio que seria importante assistir-se a uma revolução cultural no campo das relações entre os diversos protagonistas. Entre outros desvirtuamentos, ainda há uma certa cultura de degraus, de uma certa subserviência ao juiz, de distanciamento e inacessibilidade, que persiste e que atrapalha. O respeito deveria ser o grande, e suficiente, regulador.

E bastonário da Ordem dos Advogados?

Ainda há muitas assimetrias entre as diversas advocacias, se posso dizer assim, que se praticam, que deveriam ser esbatidas, embora reconheça a dificuldade em consegui-lo, porque tributárias de um problema maior que é o das próprias assimetrias do país.

Por outro lado, acho que precisamos de uma Ordem dos Advogados mais presente nas grandes discussões nacionais, porque é uma voz importante na construção permanente e na defesa do Estado de Direito. E uma Ordem dos Advogados que comunique melhor.

As novas gerações de advogados são sempre também uma preocupação, no bom sentido. Garantir-lhes um acesso justo, sem deixar de se ser exigente com a observância dos valores da profissão.

E, finalmente, se fosse PGR?

Ainda que esta seja uma responsabilidade que se possa considerar partilhada, procuraria acabar com os mega processos. Tornam-se ingeríveis para todos os que neles trabalham e são a melhor forma de não haver decisões em tempo útil.

Prestaria atenção à instrumentalização que é feita dos processos e da informação relativa aos mesmos.

Qual foi ou é para si o melhor ministro/ministra da Justiça desde o 25 de abril?

Curiosamente, não consigo encontrar um nome que considere que tenha marcado decisivamente a Justiça.

Precisamos de uma Ordem dos Advogados mais presente nas grandes discussões nacionais, porque é uma voz importante na construção permanente e na defesa do Estado de Direito. E uma Ordem dos Advogados que comunique melhor”

Estamos (Portugal) muito obcecados com a corrupção?

Com os níveis de corrupção conhecidos não acho que seja uma questão de estar obcecado. Fala-se muito de corrupção porque infelizmente há razões de sobra para insistir no assunto. Claro que é preciso mais do que falar, é preciso ser-se intolerante com a corrupção em qualquer das suas formas, mesmo as que parecem inofensivas.

Se pudesse escolher, em que jurisdição (europeia ou mundial) trabalharia e porquê?

Na portuguesa. Porque apesar de todos os problemas que tem é a minha e aquela que, ainda que minimamente, gostaria de conseguir influenciar positivamente.

Os advogados têm horizontes mais abertos que os magistrados (juízes ou procuradores)?

Claro que não. Pessoas podem ter horizontes mais abertos que outras pessoas. É só.

As decisões judiciais – de primeira ou segunda instância – são muito dependentes ou influenciadas pelo mediatismo?

Admito que no processo crime possa ter a sensação que sim, que às vezes as magistraturas possam sentir o peso da pressão social e dos media. Nas outras jurisdições não creio.

Mudaria as regras dos advogados poderem falar de casos concretos, de forma a que o vosso trabalho fosse mais compreendido?

Os processos não devem ser discutidos, muito menos julgados, em praça pública. Simplesmente, nalguns casos a cobertura mediática é de tal ordem e com tais deficiências e enviesamentos que se pode tornar necessário equilibrar as posições e informar. Sublinho o informar.

Gostaria que houvesse uma instância totalmente independente – com maioria de não magistrados – que avaliasse a ética e imparcialidade de um magistrado. Um canal direto entre cidadãos, advogados e magistratura?

Sinceramente, acho que essa figura não faz falta. Mas seria interessante talvez poder escolher os tribunais em que se iniciam acções. Pelo menos nalguns tipos de processos. Imagine um processo de insolvência, em que por definição não há duas partes em confronto. Não seria interessante que o processo corresse numa comarca em que uma sentença de verificação e graduação de créditos não demorasse oito anos a ser proferida? É um exemplo de como por vezes não são necessárias grandes reformas ou investimentos avultados para resolver situações concretas de atrasos na Justiça.

A prestação de contas dos nossos magistrados é necessária?

O princípio da irresponsabilidade dos juízes é necessário. Mas o sistema de avaliação deveria ser muito mais rigoroso. E a actuação disciplinar também. São desvalorizados/desculpabilizados comportamentos de senhores magistrados que são totalmente inaceitáveis e o cidadão fica desprotegido.

Arbitragem versus tribunais. Este meio de justiça privada vai engolir os tribunais, mais cedo ou mais tarde?

Tenho muitas dúvidas. Se tivesse que acontecer, penso que já teria acontecido. Ainda há uma abordagem muito elitista à arbitragem. Talvez injusta, mas há.

A arbitragem tem enormes vantagens e está muito pouco aproveitada. Várias razões contribuirão para isso, entre elas a ideia que se tem quanto ao custo, e que acho que hoje em dia nem sequer tem razão de ser. E também é preciso reconhecer que se o tempo é uma bandeira quando se fala de Justiça, também é verdade que num processo de partes quase sempre uma delas ganha com um desfecho que não seja rápido…

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