Supervisores bancários de dia, atores à noite. Banco de Portugal tem grupo de teatro desde 1994
Um grupo de trabalhadores do Banco de Portugal apaixonados pelo teatro divide o seu tempo entre a supervisão bancária, durante o dia, e longas noites dedicadas à produção de uma peça.
Um grupo de trabalhadores do Banco de Portugal apaixonados pelo teatro divide o seu tempo entre a supervisão bancária, durante o dia, e longas noites dedicadas à produção de uma peça, num trabalho que de amador tem já muito pouco.
O ensaio está marcado para as 18h30, no Auditório do Liceu Camões, em Lisboa, mas os 13 supervisores bancários que fazem parte do Grupo D’Artes e Comédias do Banco de Portugal (GAC) já desligaram os seus computadores há algum tempo e vão chegando com antecedência, trazendo nas malas dos carros as roupas das personagens e os adereços, que vestem e dispõem no palco antes da chegada do encenador.
O GAC, que existe desde 1994 e é composto por trabalhadores, reformados do banco central português ou seus familiares, prepara todos os anos uma peça de teatro para apresentar ao público na primavera, com uma dedicação digna de grupo profissional, tendo já arrecadado alguns prémios em concursos de teatro amador.
Este ano, o espetáculo chama-se “Tchekhoviana – 8 Peças em Um Ato”, de Anton Tchekhov, com encenação de Miguel Loureiro, que se estreia a trabalhar com um grupo amador e que conta com o apoio da atriz Carla Maciel.
“O que nos leva a dedicar ao teatro fora das horas de trabalho? Eu acho que é essencialmente o gosto que temos todos por fazer teatro. Para além disso, é uma forma de aliviarmos um bocadinho todo o dia e o stress do trabalho. Chegamos aqui e esquecemos completamente o trabalho, esquecemos tudo o que há à nossa volta e dedicamo-nos somente ao teatro”, explicou à Lusa Filomena Bispo, que pertence ao secretariado técnico permanente da Comissão de Coordenação à Prevenção de Branqueamento de Capitais e Financiamento de Terrorismo do Banco de Portugal (BdP) e faz parte da direção do GAC.
A relação daqueles colegas atores durante o dia é “muito profissional”, disse Filomena, mas, à noite, quando se encontram para os ensaios, há uma ligação de amizade e cumplicidade que já não dispensam.
Filomena Bispo e Rui Leitão são os dois membros do GAC que assumiram as principais tarefas inerentes à produção de uma peça de teatro, desde a promoção do espetáculo às parcerias e contactos para venda de bilhetes.
“Às vezes não é fácil, são essencialmente horas que se tiram ao sono”, admitiu Filomena. “Nós, claro, temos as nossas responsabilidades durante o dia em termos profissionais, às quais nós temos de dar cumprimento, como é obvio. Depois, muitas vezes, fazemos horas de almoço mais curtinhas, às vezes nem sequer almoçamos, para podermos fazer qualquer coisa para o teatro e, sobretudo, quando chega a esta altura de estarmos a fazer toda a produção do espetáculo, é bastante cansativo, porque nós fazemos tudo”, acrescentou.
Com o aproximar da estreia, os papéis têm de ser decorados e, por vezes, esse é um trabalho que levam para o BdP, onde as horas de almoço são aproveitadas para estudar as falas das personagens.
“Sabemos que somos amadores, não somos profissionais, mas tentamos dar um cunho e entrega de uma tal forma que eu acho que, modéstia à parte, não ficamos atrás de muitas companhias profissionais que temos no país”, disse Filomena.
Tentamos dar um cunho e entrega de uma tal forma que eu acho que, modéstia à parte, não ficamos atrás de muitas companhias profissionais.
Habituado a lidar com profissionais, o encenador, Miguel Loureiro, elogia a “organização muito firme” do grupo amador, com quem começou a lidar através de plataformas de videoconferência, devido às restrições adotadas para conter a pandemia de Covid-19.
“Já há muito tempo que gostava de trabalhar com um grupo não profissional, ou com um grupo de teatro universitário. Nunca fiz nenhum esforço para isso e, no ano passado, […] contactaram-me. Viram trabalhos meus, encenações no Teatro Nacional, o Frei Luís de Sousa, penso eu, a Dama das Camélias, no São Luís, o Molière, também no Teatro Nacional, e gostaram do meu trabalho. […] Juntou-se um bocadinho esta vontade de trabalhar com este universo que eu não conhecia, de todo, e a vontade deles de trabalhar comigo e eu fiquei contente”, disse Miguel Loureiro.
Foi o encenador que sugeriu ao GAC as peças em um ato de Tchekhov, por terem uma grande tradição no teatro não profissional.
“O teatro tchekhoviano é um teatro de estados de alma, ao contrário do que se passava antes na história do teatro, que é um teatro de acontecimentos, de tragédia, daqueles ‘pastelões’ do romantismo do século XIX. Na viragem para o século XX, […] o teatro de Tchekhov vai-se abeirar dos dramas pessoais, da falta de comunicação ou o excesso de comunicação entre as pessoas, mas, portanto, passa para o mundo interior e não tanto dos acontecimentos históricos, exteriores”, explicou o encenador.
A responsável pelos figurinos e cenografia, Maria Inês Santos, é também uma das estreias deste ano, tanto a trabalhar com o GAC, como no seu primeiro grande trabalho a solo.
“Conhecia um dos atores, o Rui Diogo, e ele gostou muito do meu trabalho, já viu algumas coisas e convidou-me a vir cá fazer [figurinos e cenografia] e tem sido uma experiência muito boa”, disse à Lusa a jovem cenógrafa.
Para preparar o cenário “sombrio” e “desleixado” que a peça pede, Maria Inês Santos recolheu adereços e roupas junto da Escola Superior de Teatro e Cinema, dos próprios atores e o que não conseguiu arranjar, fez ela própria.
O GAC vai apresentar o espetáculo “Tchekhoviana – 8 Peças em Um Ato” nos próximos dias 23, 25, 26 e 27 de maio, no Auditório do Liceu Camões, em Lisboa.
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