A atual lei de trabalho não responde de forma cabal aos novos modelos de trabalho. É preciso maior flexibilidade, defende Maria do Rosário Vilhena, diretora de Recursos Humanos da Nestlé Portugal.
Decidiram investir 11 milhões de euros na remodelação da sede em Linda-a-Velha para a transformar num ninho. Depois veio a pandemia. Desde então a Nestlé tem vindo a adiar o regresso ao escritório dos cerca de mil colaboradores, decisões impactadas pela evolução da pandemia que colocou quase uma centena de concelhos em todo o País – entre os quais Oeiras, onde se localiza a sede – em teletrabalho obrigatório.
O regresso será assim feito mal a pandemia o permita, mas não se pretende um regresso em massa ao espaço pensado para um ambiente de trabalho mais colaborativo. Maria do Rosário Vilhena, diretora de Recursos Humanos da Nestlé Portugal, falou com a Pessoas e dá conta dos planos da multinacional e aponta as fragilidades do atual quadro legislativo para responder aos novos modelos de trabalho. “A legislação tem de se flexibilizar muito, sempre protegendo o bem-estar e os direitos dos trabalhadores, porque sabemos que, infelizmente, há organizações que abusam, mas tem de haver essa flexibilização que hoje não encontramos. Continuamos a ter uma legislação dos anos 80, anos 90, que está muito desfasada da realidade”, diz.
Investiram cerca de 11 milhões no edifício sede da Nestlé, uma decisão pré-pandemia. Como adaptaram o espaço para receber os colaboradores em plena crise sanitária?
O estrutural do plano não mudou. Queremos um espaço muito baseado nas atividades e que promovesse novas formas de trabalhar muito mais flexíveis e colaborativas. Não queremos o escritório tradicional, com gabinetes, em que as pessoas estão sentadas numa secretária. O que alteramos com o contexto pandémico foi, sobretudo, o layout em termos de espaço: a disposição das secretárias, as distâncias, os percursos de circulação no edifício, os limites de capacidade das salas.
Já estávamos muito focados no conceito de flexibilidade de trabalho, as pessoas podem trabalhar a qualquer hora, a partir de qualquer lugar, desde que entreguem: acreditamos muito no empowerment e no accountability. Por isso, o espaço de escritório tem de ser visto como um espaço de colaboração. Quisemos que o escritório fosse reposicionado nesse sentido, não para um espaço para onde tenho a obrigação de ir todos os dias, mas para onde vou porque a experiência é agradável e, sobretudo, porque potencia esta nova forma de estar e trabalhar.
O centro de serviços partilhados veio para Linda-a-Velha, o que implicou ter cerca mais 400 pessoas no edifício, e tivemos de reconfigurar o espaço. Alavancamos muito o conceito de trabalho flexível, desk sharing. O edifício tem capacidade para aproximadamente mil pessoas, mas não temos mil secretárias – temos uma desk sharing à volta dos 30% – o que significa que, se vier toda a gente no mesmo dia não vamos conseguir sentar toda a gente. A ideia é precisamente esta: não vir todos os dias.
O teletrabalho deixou de ser obrigatório em todo o País, exceto em concelhos de alto risco. Como estão a planear o regresso?
O regresso ao escritório é o que já temos vindo a planear há bastante tempo e que temos sempre vindo a adiar por causa da pandemia. Mais do que dizer às pessoas para virem num determinado dia, vamos dar a cada equipa a possibilidade de se organizar. Numa primeira fase, cada equipa deve ter no máximo 50% das suas pessoas por dia, temos de garantir as medidas de distanciamento social que implementamos. Já antes trabalhávamos de uma forma em que as equipas se auto-organizam, funcionava lindamente, vamos continuar a acreditar.
Vai haver uma fase de reajuste, até porque as pessoas estavam muito ávidas de regressar ao escritório e do convívio com os colegas, mas para nós a ideia será, até termos imunidade de grupo, andarmos à volta de 50% de ocupação do edifício e depois disso retomarmos as atividades.
Vamos ter uma área exterior muito interessante para trabalhar. Queremos que as pessoas venham, que usufruam do espaço, mas não o façam porque se sintam obrigadas. Na experiência do colaborador ao longo de uma vida tudo se traduz em dizer ‘tenho uma empresa onde as pessoas querem vir trabalhar e onde as pessoas gostam de estar e se identificam com a cultura.
Um número significativo dos trabalhadores nos EUA pensa demitir-se caso a empresa não lhe desse a possibilidade de um modelo híbrido de trabalho. O que estão a fazer para tornar o espaço escritório apetecível para o regresso?
O modelo híbrido para nós era uma realidade (antes da pandemia) e as nossas pessoas estavam mais do que habituadas. Tenho colegas que me dizem que têm gente que não quer vir (para o escritório): eu tenho o problema contrário, tenho toda a gente a querer vir e não os posso ter. Passa muito por ter um espaço que permita às pessoas terem um dia a dia integrado. O espaço de trabalho não é só mais um espaço de trabalho. Por isso, aqui temos diferentes valências, como um espaço para crianças, salas de relaxamento, de mindfullness.
As pessoas perceberam as vantagens dos modelos híbridos, mas também aprendemos muito sobre os potenciais riscos deste trabalho mais flexível. É nisso que temos de nos focar.
As pessoas hoje em dia não conseguem compartimentalizar a vida, o trabalho não é das 9h às 17h. Durante o dia há muitos eventos e o edifício tem de permitir às pessoas viver a sua vida. Este espaço foi criado a pensar nas necessidades específicas de cada um. Foi um espaço desenhado a partir do indivíduo, do que são as suas necessidades e, ao longo do dia, oferece espaços que permitem às pessoas fazer o que precisam. Nesse sentido, o espaço torna-se muito convidativo, porque se for para o escritório não tenho de estar todo o dia num espaço fechado. Posso reunir no jardim, trazer o meu pet, passeá-lo no jardim, a meio da manhã fazer uma massagem de relaxamento no espaço de wellness ou ter um momento mindfullness. Ao termos um espaço integrado que permite isso tudo, acho que as pessoas vão sentir-se bem e querer vir. O espaço não pode limitar a liberdade individual de cada um, tem de potenciar o que cada um quer fazer.
A pandemia obrigou a olhar para novos modelos de trabalho e, ao mesmo tempo, ouvimos muitos discursos de um regresso ao ‘velho normal’. Haverá esse retorno ou a pandemia teve essa capacidade de transformação radical dos modelos de trabalho?
A pandemia só veio acelerar uma transformação que já se estava a viver nas empresas. Veio demonstrar aos mais céticos que há muitas coisas que é possível fazer sem ter as pessoas no escritório, sem um horário rígido das 9h às 17h, se acreditarmos na equipas e no que são capazes de fazer quando são autónomas. É um erro as organizações e as empresas que acreditam poder ter formas mais estruturadas ou mais tradicionais de organizarem o trabalho ou até os horários, porque, de facto, é irreversível.
As pessoas perceberam as vantagens dos modelos híbridos, mas também aprendemos muito sobre os potenciais riscos deste trabalho mais flexível. É nisso que temos de nos focar: em como é que asseguramos que as pessoas efetivamente descansam, o direito a estar desconectados do telefone, do WhatsApp, do computador – tudo isto veio criar uma enorme pressão sobre as pessoas -, como ensinamos às nossas pessoas como gerir o seu tempo de uma forma eficaz e, sobretudo, como, enquanto organização, repensamos os processos e as formas de trabalhar para o novo mundo digital. Quando se fala em digitalização pensa-se ‘ah dou um laptop a toda a gente e todos passam a trabalhar’. Não. É preciso repensar o que fazemos, como fazemos, tirar o máximo dos nossos processos. É um momento excelente para questionarmos tudo o que fazemos, pensarmos onde está o desperdício e inovar.
Toda a gente precisa de um salário, uma forma de pagar as contas, mas as pessoas procuram muito mais, procuram uma identificação cultural, uma satisfação, um sentido de realização, uma oportunidade de crescimento. As empresas vão ter de ser capazes de se reinventar. O risco de não se reinventar é perder a atratividade.
A grande questão que se coloca é a da legislação. A legislação portuguesa neste momento em termos de enquadramento laboral não está desenhada para este novo mundo da flexibilidade, da capacidade das equipas se auto-organizarem, da auto-responsabilização. Enquanto não tivermos esse enquadramento vai ser muito mais difícil progredir, vamos estar sempre condicionados. Não quero violar a lei. Mas para mim, definitivamente, pensar que o mundo vai ser o que era antes é um pressuposto que nunca vai acontecer e quem não se adaptar rapidamente vai ter grandes problemas em reter e atrair talento.
Como é que as empresas se renovam se se mantiverem nesse desejo nostálgico de voltar ao passado?
Julgo que aí vai haver um grande movimento de resistência interna. E, como tudo, vai fazer com que as empresas percam a sua atratividade. Não podemos continuar agarrados a modelos que não fazem sentido para uma geração que queremos atrair ou para as formas de trabalhar que fazem sentido no mundo de hoje. Quando contrato hoje um jovem muitos perguntam se podem fazer uma licença sabática. Se lhe disser não imediatamente acabei de perder a pessoa. Se um polaco me perguntar se no mês de Natal pode trabalhar todo o mês a partir da Polónia, desde que assegure o trabalho, se lhe disser não vou ter um problema, não vou atrair, nem reter esta pessoa.
Toda a gente precisa de um salário, uma forma de pagar as contas, mas as pessoas procuram muito mais, procuram uma identificação cultural, uma satisfação, um sentido de realização, uma oportunidade de crescimento. As empresas vão ter de ser capazes de se reinventar. O risco de não se reinventar é perder a atratividade. Não basta hoje ser um Top 10, ser reconhecido ao nível dos shareholders como tendo um grande volume de capital ou ser uma leading company em termos de volume de vendas. Isso é atraente, mas não é o fator decisivo. Decisivo é a cultura, forma de estar, a forma como as pessoas se identificam connosco e como acham que vir trabalhar todos os dias é apenas mais uma dimensão da sua vida deles, veem trabalhar porque gostam e não porque são obrigadas.
Disse que o atual quadro legal não era o mais ajustado. O que falta então?
Falta flexibilização. A nossa legislação continua agarrada a muitos formalismos e padrões e formas muito estruturadas e tradicionais de trabalhar. Hoje cada vez mais temos pessoas que equacionam porque não hão-de ter mais do que um empregador. Temas que a legislação tem de dar respostas. Há limites – e tem de haver – ao tempo que dedico ao meu trabalho, mas porque é que necessariamente tenho de ter um trabalho das 9h às 17h? Se para mim é melhor trabalhar do almoço até às 20h, porque que não fazer isso sem que implique um regime de trabalhador noturno? Porque é que se trabalhar ao fim de semana, por me ser mais conveniente, tenho de ter horas extras? São questões que se colocam e que, do ponto de vista das empresas, condicionam muito, porque temos noção dos limites em que estamos a operar. A própria estrutura, enquadramento dos contratos não fazem mais sentido. É preciso regras, mas, cada vez mais, o endurecimento das regras dos contratos a termo, da forma como podemos recorrer a um contrato a termo, de prestação de serviços tudo complica imenso. Muitas vezes quando falamos com pessoas mais jovens não percebem porque não podemos fazer algo que eles próprios querem.
Cada vez mais as pessoas nos perguntam porque não podem estar no Brasil e trabalhar para empresa em Portugal, com um contrato cá em Portugal? Temos um problema laboral e um fiscal. São questões que têm vir já para a mesa e serem resolvidas já.
A legislação tem de se flexibilizar muito, sempre protegendo o bem-estar e os direitos dos trabalhadores, porque sabemos que, infelizmente, há organizações que abusam, mas tem de haver essa flexibilização que hoje não encontramos. Continuamos a ter uma legislação dos anos 80, anos 90, que está muito desfasada da realidade. Um exemplo concreto: trabalho remoto internacional. Cada vez mais as pessoas nos perguntam porque não podem estar no Brasil e trabalhar para a empresa em Portugal, com um contrato cá em Portugal? Temos um problema laboral e um fiscal. São questões que têm vir já para a mesa e serem resolvidas, porque senão cada um vai encontrar a sua solução e, com isso, vamos colocar as partes em risco porque não as estamos a proteger da melhor maneira e não vamos estar a garantir uma igualdade no acesso ao mercado de trabalho. A legislação laboral não pode esconder a cabeça na areia e dizer que não vai tratar do tema.
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“Continuamos a ter uma legislação laboral dos anos 80, muito desfasada da realidade”, diz diretora de RH da Nestlé Portugal
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