A fuga de João Rendeiro e o roubo da pasta de dentes

João Rendeiro fugiu do país para evitar ser preso. O antigo banqueiro do BPP estava sujeito à medida de coação mais leve, a mesma que se aplica a quem roube uma pasta de dentes num supermercado.

João Rendeiro, segundo a TVI, terá fugido do país para evitar cumprir as três penas de prisão efetiva a que foi condenado: uma de 3 anos e 6 meses por burla qualificada, uma outra de 5 anos e 8 meses por falsidade informática e ainda uma outra de 10 anos por fraude fiscal.

Poucos minutos depois da notícia, o próprio Rendeiro confirmava ao Sapo24: “Estou no estrangeiro e não vou voltar“. É uma decisão vergonhosa e desavergonhada de João Rendeiro e uma fuga que também cobre de vergonha todo o nosso sistema judicial.

Há mais de 10 anos que João Rendeiro, antigo presidente do falido BPP, está a braços com a Justiça. Os processos foram-se arrastando no tempo, com os advogados de defesa a apresentarem um sem número de recursos, a recorrerem a todas as instâncias e hierarquias imagináveis, e a usarem todas as manobras dilatórias possíveis para tentar adiar o que parecia ser inevitável, a prisão de Rendeiro.

Mas João Rendeiro fugiu da justiça e, aparentemente, foi para um país que não terá acordos de extradição com Portugal. Cumpre-se a tradição e confirma-se aquela velha máxima: nenhum banqueiro é preso em Portugal, um país onde existe uma justiça para ricos, uma para pobres, e uma outra para banqueiros.

Esta fuga de João Rendeiro cobre de vergonha todo o sistema judicial português, porque apesar de condenado a três penas de prisão efetiva, Rendeiro estava até agora sujeito à medida de coação mais leve, ou seja, ao termo de identidade e residência. Como escrevia ontem o jornal Expresso, “a mesma medida aplicada a quem, por exemplo, roube um creme num supermercado”, ou uma pasta de dentes.

Faz sentido que um ex-banqueiro que comete vários crimes e que é condenado a mais de 18 anos de prisão tenha a mesma medida de coação do que uma pessoa que entre num supermercado para roubar uma pasta de dentes? Nesta altura todos os agentes de justiça e todos os deputados que fizeram leis ultra garantísticas estarão a olhar para esta fuga envergonhados e com um sorriso amarelo. E não há pasta de dentes que lhes valha. Só lhes resta tapar a cara, de vergonha.

Como se aplicar a medida de coação mais leve não fosse suficiente, os próprios advogados que representam o BPP já tinham escrito uma carta ao Tribunal da Relação de Lisboa onde alertavam para o perigo de fuga de João Rendeiro: “o anúncio público de pena de prisão, com a duração das penas aplicadas, é apto a criar, por si só, acrescido perigo de fuga relativamente ao arguido João Rendeiro”. Dito e feito.

Aliás, numa entrevista recente à TVI24, e questionado sobre se iria cumprir a pena de prisão a que foi condenado, o próprio Rendeiro deu uma resposta bastante evasiva, que deveria ter feito soar os alarmes daquele tribunal e daquele juiz que achou que seria uma boa ideia aplicar ao ex-banqueiro a medida de coação mais leve.

Este caso tem ainda contornos mais caricatos e embaraçosos para um sistema judicial que bateu no fundo. João Rendeiro, no âmbito do termo de identidade e residência, avisou o tribunal que estaria na Costa Rica entre os dias 15 de julho e 21 de agosto e que entre 13 a 30 de setembro se encontraria no Reino Unido. E que se o quisessem encontrar que contactassem as embaixadas de Portugal naqueles países. Ao que a juíza Tânia Loureiro Gomes respondeu que, “não sendo diplomata nem funcionário adstrito ao serviço diplomático”, não podia apresentar a morada de uma representação diplomática para ser contactado.

O Tribunal pediu então a João Rendeiro que regressasse a Portugal no dia 1 de outubro para que fosse feita uma reavaliação das medidas de coação. Já veio tarde. Rendeiro fugiu. A Justiça faliu.

A mesma justiça que permite a Ricardo Salgado faltar a uma audiência no Tribunal para ir à Sardenha fazer compras e passar férias. A mesma Justiça que permite a Ricardo Salgado uma estratégia de defesa que passa por manobras dilatórias, testemunhas com 102 anos, vários incidentes de recusa, uma alegada demência e até um pedido para pagar pela absolvição.

Mas João Rendeiro e Ricardo Salgado não são a exceção, são a regra. Que o diga o outro ex-banqueiro, Oliveira e Costa do BPN, que morreu sem ter cumprido a pena de 15 anos a que foi condenado, depois de anos e anos com o processo a rebolar na Justiça, de recurso em recurso.

Quando tomou posse, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça criticou o “forte pendor burocrático e garantístico” da nossa Justiça, e afirmou que “o sentimento de descrença no aparelho de Justiça resulta da expectativa frustrada dos cidadãos na resolução rápida de processos criminais de grande envergadura em que, geralmente, são visadas figuras da sociedade com notoriedade pública”.

João Rendeiro fugiu. E com ele fugiu a nossa crença no aparelho de Justiça.

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